Tuesday, January 31, 2006

10 - O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

6.
Bone morava na Avenida Iorque, perto da Ponte Queensboro,
num luxuoso apartamento de solteiro. Eram já nove e meia da
noite quando chegou, mas sabia exactamente o que o esperava.
Sentados em cadeiras e almofadas, vários jovens conversavam,
alguns fumavam e todos bebiam Coca-cola.
Muito bem educadinhos, saudaram em coro:
- Muiiito boooa noiiite, senhooor Cheeefe!
- Hoje tenho muita pressa. Vamos rápido às contas.
O mais velho, talvez 14 anos registados na igreja do bairro,
adiantou-se.
- Está tudo aqui - e entregou a Bone um saco de plástico. -
Fornecemos os clientes habituais e o Sigesmundo Freud engatou
mais três: uma professora de instrução primária, uma lésbica
contorcionista e um dos adjuntos do Mayor. A semana rendeu quase
o mesmo: oito mil cento e trinta e dois.
- Muito bem. Freud vai ser promovido a Intermediário de
Primeira. Retirem a vossa percentagem e levem da cozinha as
Colas, as pastilhas elásticas e os Playboys. Há um exemplar para
cada. Amanhã não há distribuição. Venham cá na sexta buscar as
doses habituais para o fim-de-semana, mais as dos três novos clientes.
Freud estava nervosíssimo. Tinha doze anos muito louros e uma
fisionomia que lembrava um apito. Adiantou-se e disse:
- Estou com um problema, Chefe.
- Qual é? - Perguntou Bone, distraído com mais altos assuntos.
- Um adjunto do Mayor quer ter relações comigo.
- Isso é contigo e com ele. A América é um país livre e democrata.
- Pois, Chefe.
Quando as encantadoras crianças saíram, Bone, sem ligar ao saco
com o dinheiro, pegou no telefone. Na dúvida, consultou as Páginas
Amarelas. Sim, lá estava a empresa Tom & Jerry, Limitada. Marcou.
Uma suave voz feminina respondeu:
- Tom and Jerry Killers, Limitada. Uma empresa ao seu serviço a
qualquer hora do dia ou da noite.
- Boa noite, Ofélia.
- Alooouuuu.... ossinho querido.... (1)
- Liga-me ao Hamlet.
- Sim... amoooor...
Esperou apenas três segundos.
- Tá?! Hamlet?
- Sim...
- Preciso falar-te. Tenho um problema. Aliás, explica-se em poucas
palavras.
- Palavras... palavras... palavras...
- Ouve, porra! Ouve!
- Ouvir e encontrar o infinito das coisas...
- Tá bem. Quero comprar uma gargantilha para uma pequena
deliciosa.
- E o rei, fazendo o câmbio com cuidado, disse: "Dez mil dólares."
- Espera, Hamlet. Vais fazer essa encomenda de borla, percebes?
Nem um cêntimo.
- Era o que eu previa. Lastimável! E quem é a tua querida?
- A mulher com um olho de vidro.
- Tá... bem, mas é a última cena do último acto. Já paguei o
suficiente em dor e sacrifícios, como diria a rainha, ao ver Polónio
trespassado.
- Adeus, Hamlet.
- Ofendeste gravemente a minha honra.
Click.
__________
(1) - No original "dear little bone".
_______________________________________
***
Leitor: os seus comentários serão bem-vindos.
(Está bem assim, Milu?)
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Friday, January 27, 2006

* Quem tem interesse sentimental (ou outro) por Moçambique,
aconselho uma visita periódica ao blog do jornalista moçambicano
Machado da Graça: http://ideiasdebate.blogspot.com/
* De vez em quando é de ler o blog:
http://bomba-inteligente, blogspot.com/

Wednesday, January 25, 2006

9. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

4.
Nessa noite o canal 14 transmitiu um filme com um
inspector da Judiciária francesa chamado Mallet, ou
Montê, ou Maigret, uma coisa assim.
Um homem ranhosamente humano. No fundo feli -
císsimo por não ter filhos e ser casado com uma atrasa-
da mental.
Amante das árvores e dos diversos estados do tempo,
poderia bem ter ido para meteorologista. Um caso per-
dido. Um piegas, que gostava mais dos criminosos e de
copinhos de calvados do que da esposa. Se não fosse ins-
pector de crimes, já tinha por certo sido internado numa
clínica psiquiátrica.
E o Rockfeller a comê-lo com os olhos, reclinado num
dos sofás da sua sala. Que bom ser Gillet, ou Maigret ou
lá o que era!

5.
O Inspector-Chefe Rockfeller entrou calmamente no
seu gabinete, tirou o sobretudo, sentou-se e acendeu o
cachimbo. Pegou então no telefone para pedir sandes e
cerveja recordando-se, porém, que eram apenas nove da
manhã. Mas do outro lado responderam. Então perguntou:
- O Bone está com algum trabalho? Não? Então que
venha falar comigo.
- Sim, senhor.
- Oiça. A partir de hoje é "sim, patrão".
- Mas... o meu patrão é a cidade de Nova Iorque...
- O seu patrão sou eu. Se não acredita, pode passar pela
tesouraria, receber os dias que trabalhou e procurar outro
emprego. Quer?
- Não... patrão.
Desligou satisfeito. Levantou-se e foi até à janela, mirar
inteligentemente a paisagem. Um pensador. Um honen pro-
fundo. Um homem que ia ao fundo das questões e das almas.
Aquela gentinha que transitava lá em baixo pelo cais eram
seres amorfos, inferiores, sem preocupações existenciais.
Uns merdas, portanto.
Uma pancada na porta interrompeu os seus profundos
pensamentos.
- Entre - disse com ar cansado e, saindo lentamente da
posição de observador do mundo circundante, virou vagaro-
samente a cabeça, em virtude desta se encontrar repleta de
problemas.
- Mandou-me chamar?
- Mandei.
Sentou-se também lentamente, como se o seu peso tivesse
autentado com o cargo e responsabilidade. Pegou no cachimbo
e permitiu, paternalista:
- Sente-se, Bone.
- Obrigado - ele sentou-se.
- Você é filho de um médico legista, não é?
- Sim, senhor.
- E como vai a Mary, a sua encantadora mulher?
- Bem, muito obrigado, senhor inspector. Acabou com apro-
veitamento o curso de decoração de jardins interiores. - E
pensou, deliciado, que era solteiro.
- Óptimo, óptimo. Mandei-o chamar... bem... que tem agora
entre mãos?
- Droga e roubo de tecnologia de ponta. Nada de urgente.
- Encarregue-se, então, do "caso da mulher com um olho de
vidro". O arquivo tem todos os dados. Diga ao Morris que fui
eu que autorizei a consulta.
- O capitão Morris e a maior parte dos colegas não se apre-
sentou hoje ao serviço... ainda. Estiveram, estivemos ontem
numa farra até às tantas.
- Quem fez anos desta vez?
- Bem...
- Foi alguém promovido sem meu conhecimento?
- É que comemorámos o rebentamento do Tell.
- Hum... percebo... quando sair, diga ao guarda aí de fora
para me ir buscar uns cachorros e duas cervejas... o dia
promete.
- Sim, senhor.
- Preferia que me chamasse patrão.
- Sim, patrão.
Que puta!

Monday, January 23, 2006

8. Por entre os ulmeiros

O meu quarto tem uma parede totalmente ocupada por uma
paisagem de ulmeiros, o que lhe empresta uma maior profundidade.
Ela está coberta com um papel que a minha senhoria não se recorda
se veio da Suíça se dos Estados Unidos da América.
Quando vim ver o quarto para "alugar a um estudante", como rezava
o anúncio do jornal, com serventia de cozinha e de casa de banho, fiquei
imediatamente preso à paisagem da parede. Não me recordo bem se fui
respondendo à senhora em termos convenientes, mas sei que o aluguei
imediatamente. E logo fiquei ansioso por me mudar para lá, sem qualquer
outra explicação a não ser aquela parede. A minha idade e a seriedade do
meu comportamento devem ter determinado a rápida aceitação da minha
candidatura a inquilino.
Agora é aqui que passo grande parte do meu tempo, a descansar, a
olhar para a paisagem ou a ler.
A paisagem representa o Outono. Há, para venda, segundo a senhoria,
as quatro estações do ano, mas ela tinha decidido comprar o Outono talvez
por se conjugar melhor com a sua actual idade e estado de espírito. Do outro lado
da paisagem, na parede em frente dela, está a minha cama. No centro uma mesa
redonda onde, por vezes, como e estudo. A disposição do quarto é, pois, assim:
quando se entra, à esquerda está a paisagem ocupando, do chão ao tecto, toda a
parede. Em frente uma janela de correr com varanda envidraçada, seguida de
parede. À direita a cama, encostada a um pequeno roupeiro. Na parede onde habita
a porta, encontra-se uma pequena mesa com um receptor de televisão e uma
aparelhagem de rádio e de cêdês. Por cima uma estante. A janela de correr,
que dá para uma varanda, tem vidros duplos, o que me permite receber os ruídos
distantes de maneira diluída, quase divina, adivinhatória.
Aqui construí o meu universo. Com apenas três disciplinas para fazer, a fim de
completar tardiamente um curso iniciado há vinte anos, a fatia grande do tempo é
passada no quarto onde, suave mas diariamente, vai crescendo a minha solidão.
Uma solidão tão física, tão sólida, tão concreta que, muitas vezes, para me
movimentar, tenho de a empurrar para que me deixe passar em paz e sem
atritos e feridas inúteis.
Vivo aqui vai já para dez anos. Aluguei o quarto para um ano e três disciplinas
universitárias e fui-me deixando ficar para contentamento dos três: da senhora, de
mim e do quarto que, agora, já está calmo e sem muitas vibrações negativas. Julgo
mesmo que começou a gostar de mim a partir do momento em que afirmei alugá-lo.
Como o vale entre os seios de uma mulher, os ulmeiros descem por duas ravinas
e encontram-se em baixo, num estreito carreiro - talvez um leito já seco de ribeira.
As folhas, nas extremidades das ramadas, apresentam-se com aquele castanho-
-dourado tão belo, quando o Sol está prestes a pôr-se ou a erguer-se. A perspectiva
está num plongé não muito pronunciado, o que atira o caminho para um fundo
invisível, indescoberto. Um caminho que vem ao nosso encontro mas do qual não
divisamos a procedência. Parece e é o términus natural das duas colinas acastanhadas
pela terra e pelas folhas dos ulmeiros. Pela claridade entre as ramadas, adivinha-se
que o Sol estará à direita, para lá da nossa visão e os seus raios atravessam os
intervalos entre os ramos, diminuindo de intensidade para Oeste, já que considero
que o Norte se encontra ao centro, entre a parede e o tecto. E o Sol emerge de Oriente
todas as manhãs quando acordo. E ali fica, a meio caminho. Não indiferente; apenas
aguardando.
Deitado a ler, tenho sempre perante mim aquela paisagem grandiosa e vivida.
Habituei-me muito a ela e, à noite, já não fecho totalmente as cortinas, para que ela
receba a ténue claridade que vem do exterior. Fico deitado horas e horas a olhar para
esta paisagem. É uma atracção a que não desejo fugir; pelo contrário, pretendo
entregar-me a ela de corpo e alma. A nossa identificação foi total quando, num dia de
forte ventania no exterior, os ulmeiros começaram a abanar ligeiramente e eu vi algumas
folhas caírem por entre as ramadas e sobre o caminho. Contrariado, pensei no trabalho
que iria ter no dia seguinte para recolher todas aquelas folhas velhas, antes mesmo de
ter compreendido que os ulmeiros abanavam com o vento, apenas para me saudar.
Muitas vezes, deitado, olho para o fundo impronunciado do carreiro e imagino
ver a minha vizinha atravessar a parede para me cumprimentar e perguntar como vão
os estudos, pois eu sabia já que alguém viria um dia por aquele caminho estreito por
entre os ulmeiros. Sabia e aguardava. Todas as noites esperava que tal acontecesse.
Foram muitas em que não me dormi, esperando. Uma noite ocorreu-me dar um pouco
de música àquela paisagem tão identificada comigo, que já estava interiorizada, que já
pertencia ao meu passado e presente, sem contudo lhe adivinhar o futuro. Procurei e
encontrei As quatro estações, de Vivaldi, interpretação da Orquestra de Câmara de
Wurttemberg, dirigida por Jorg Faerber. Coloquei o Outono. Deitei-me a olhar a
paisagem e começaram todos a aparecer. Os dançarinos, eles e elas, a bailar pelas
colinas abaixo, de maneira festiva e alegre. E continuei a ver os bêbados a dormir e
depois os caçadores, num allegro bem sentido. Coloquei outra vez a suite e fui ter com
os bailarinos, os bêbados e com os caçadores e diverti-me com eles, e bebi com eles,
tanto que o dia nasceu comigo a dormir sobre o tapete do quarto. Inexplicavelmente,
não havia em qualquer lugar vestígios daquela orgia nem da caçada.
E o que eu esperava, já com ansiedade, aconteceu então.
A partir daquela noite festiva, comecei a ser visitado por vários amigos e familiares.
Estou deitado a ler e oiço um pequeno restolho e passos ligeiros pelo caminho, olho e
vejo quem se aproxima, me cumprimenta e pára para falar comigo. Algumas pessoas
vêm para me ralhar e atezanar a tranquilidade. Umas falam de amor. Outras não.
Algumas vêm apenas para conversar ou ver-me. Uma noite pensei: "de que maneira
me verão? Que imagem lhes estarei a dar?" Então agora, quando alguém chega,
sento-me na cama frente aos ulmeiros. Assim ficarei mais educado, mais civilizado a
falar-lhes. Passo também as mãos pelo cabelo; ajeito-me.
E veio quem eu esperava, para me dizer, sorridente, que bem sabia que nunca me
formaria em Medicina, pois que não era muito inteligente. Que sempre fora um
medíocre e que nem para enfermeiro teria perfil, quanto mais médico. E veio, mas esse
uma única vez, um velho contar-me histórias mais falsas que as juras de Judas,
fazendo-se humor e gargalhada. Perante o meu esguardo, retirou-se afirmando que eu
estava na mesma. Que esperava ele? Que fosse outro? Possivelmente.
Aproveito muitas vezes estas visitas para mandar recados. Ou melhor, tenho sempre
mandado o mesmo: que digam ao meu avô, o marinheiro, que morreu varado pela fome,
que venha falar comigo. Mas ninguém sabe dele. Não perco porém a esperança. Sei que
ele há-de vir um dia. Possivelmente até já terá vindo, mas não reconheceu no corpo,
no bigode, nas rugas e no cabelo branco, o rapazinho magro e feioso que ele sentava no
colo, enquanto contava histórias dos Mares do Sul, de Hiroshima e de uns homens
chamados bolkivistas.
Por vezes, quando oiço barulho no caminho, abro um olho e vejo quem está lá. Por
duas ou três vezes já aconteceu voltar a fechá-lo, fingindo dormir, pois tal companhia
não me alegraria, nem me retiraria da solidão em que me encontro.
Nos últimos dias, como é natural, tenho-me preparado para acompanhar os amigos
que me vêm ver. Aguardo o momento oportuno para sair da cama e meter pés ao
caminho na sua companhia, subindo o carreiro e descobrir, finalmente, onde ele se
espraia: numa clareira florida ou num pântano.
Aguardo uma noite amena, luminosa e suave. Porei então o Outono e, com o Allegro
da caçada, partiremos, de braços dados, caminho arriba, sem nada nos bolsos nem
reservas no espirito. Talvez apenas a esperança de encontrar o meu avô e que ele me
sente de novo no seu colo.
(do livro Scrabble)

Friday, January 20, 2006

7. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)


3.
Estava o Inspector-Chefe Rockfeller
limpando cuidadosamente o nariz com o
mindinho da mão esquerda, quando o
avisam pelo telefone, que o detective
particular Tell desejava falar-lhe.
- Mande entrar essa besta - ordenou
gentilmente.
Guilherme Tell entrou, sentou-se,
cruzou uma perna sobre a outra e acendeu
um cigarro. Tudo calmamente. Cuidadosamente.
- Guilherme Tell... que nome! - Rosnou o Inspector Rockfeller.
- Que quer, amigo Tim. O meu pai gostava muito de música...
- Bem... Uma coisa é positiva: você teve um pai e, pelos vistos,
conheceu-o! Mas, o que quer daqui?!
Tell ia a afagar o bigode quando se recordou que o tinha rapado no
mês anterior.
Rockfeller estava óptimo. Na noite anterior tinha visto na televisão
uma série policial e gostara do estilo do inspector televisivo. Estava
agora a tentar copiar a sua dureza, a sua agressividade.
- Recebi uma chamada telefónica de uma mulher que diz ter um olho
de vidro.
- Coitadinha...
- Pois...
E Tell, já nervoso, continuou:
- Disse apenas que a segunda pessoa que rebentaria seria eu.
- Óptimo! Óptimo! Até que enfim! Deus é grande! E justiceiro...
Aleluia!
E Tell magoado:
- Custa-me ver como os velhos amigos me tratam...
- "Velho amigo" era o seu tio! Pronto! Já me deu o recado. Agora
pire-se, que tenho mais que fazer.
- E eu?!
- Você, Tell? Vá actualizar o seguro de vida e reservar espaço na
"Colina da Saudade"... se sobrar alguma coisa de si.

Nessa noite Tell afogou as mágoas num cabaré italiano inqualificável,
dançando e bebendo com uma bela mulher, de trinta e tal anos, mas de
olhar um pouco fixo. Às seis da manhã do dia seguinte, em plena rua 43,
Guilherme Tell rebentava estrondosamente, sujando tudo.
Uma porcaria.
_______________________

Thursday, January 19, 2006

6. A mais pequena história "Sobre Música"

O operário da fundição, com gesto preciso e extrema precaução,
acabou o êmbolo da espoleta, pequena peça que vai actuar no fulminante
e este no percurtor da granada.
Acabou, nesse dia, a peça 12 617.
É uma peça bonita e reluzente, bem torneada, de forma elegante.
Poderia ser o pistão de uma trompete, mas no Iraque há cada vez menos trompetistas.
(do livro Histórias do Arco-da-Velha - 1)
_______________________

Tuesday, January 17, 2006

5 - O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

2.
Guilherme Tell fritava, naquela amena manhã, os seus habituais doze ovos de pomba, início de um pequeno-almoço tardio. Aos amigos e colegas dizia que, para manter a forma, comia todas as manhãs doze ovos, mas esquecia-se de clarificar que os ovos eram de pomba e fritos.
O telefone tocou. Fez um ar de enfado, como já tinha visto na televisão a certos heróis e atendeu, enquanto o café derramava, abundante e espumoso, da cafeteira para o fogão e deste para o sobrado.
- Tou!
- Hoje serás tu. A mulher do olho de vidro não perdoa. Rebentarás como o Gustav. Pum! - Voz de homem.
- E se tu fosses merda?!
Click. Desligaram.
Tell vestiu-se, comeu os ovos e arrumou a velha browning na sovaqueira. Assim mesmo.
________________
(Do livro de Ed B. Silverman)

Monday, January 16, 2006

O LENÇO

História para ser lida às crianças, à noite, para elas adormecerem melhor e reconfortadas pela bondade e justiça humanas, mais eficaz que uma oração, um copo de leite ou uma mezinha.
Pode ser lida pelo pai, pela mãe ou pelos dois em conjunto, o que dará melhor e mais profundo ensinamento sobre o amor entre os homens de boa-vontade.
___________________
O pintor estava no Castelo de S. Jorge com a filha, tentando vender um quadro aos turistas que por ali pasmavam.
Ele tinha o direito de estar com a filha aos sábados e domingos, pois a ex-mulher ficara com a tutela alegando que ele era um desgraçado sem rendimentos fixos ou ambulantes. Ela era advogada e mexeu bem os cordeleis com os colegas e juízes e assim ficou com a miúda que agora, neste dia, tem cinco anos já prontos.
O pintor não sabe o que fazer à vida para a melhorar e para poder ficar com a miúda, pois gostam muito um do outro. E isso vê-se bem.
Ela trouxe um lencinho de cor vermelha que a mãe lhe pôs ao pescoço, pois já calculava que o pai não tinha lenço vermelho nem de qualquer outra cor e ali no castelo há sempre um vento de leste, que também pode ser de oeste e a miúda, para agradar ao seu amado pai, colocou o lenço vermelho sobre o canto esquerdo do quadro (uma natureza bastante morta), num arranjo vistoso.
Um casal de pasmas com olhos azuis e cabelos amarelos apontou e o pintor disse cem euros. Eles que não com a cabeça e, por gestos, disseram que não era o quadro que lhes interessava mas o lenço. O pintor, com gestos, disse que o lenço era dele e que não, não, não era para vender, percebem? Que o quadro sim e que, abrindo os dedos da mão direita, poderiam ser cinquenta euros, com a moldura. E os pasmados perguntam se vem o lenço também. O pintor diz que não. A menina já chora. Os pasmados, abanando a cabeça criticamente, vão-se embora olhando o rio lá em baixo.
O pintor não aguenta mais. Dá à miúda o lenço e um beijo.
E atira-se cá para baixo como qualquer sarraceno a fugir dos cristãos.
(do livro Scrabble)
PS - O meu amigo e jornalista Machado da Graça, quando acabou de ler esta estorinha, disse-me não gostar do final. Que seria bem mais razoável e lógico o pintor ter pegado nos turistas e tê-los projectado da muralha lá para baixo, continuando o seu domingo bem-disposto com a filha.

Saturday, January 14, 2006

3 - O caso da mulher com um olho de vidro

Sempre que tiver disponibilidade, colocarei no blog um capítulo do livro policial (título acima) da autoria de Ed B. Silverman. Nada melhor para definir este policial do que ler a nota introdutória com atenção. Espero que goste.
_____________________
Tudo nesta novela parte da imaginação
do autor, o que não significa que algumas
personagens não se pareçam extraordinariamente
com outras da vida real.
Quanto a isto não há nada a fazer.

SOBRE O AUTOR
Como é natural, houve correspondência trocada entre o Editor e o Autor. Dessa correspondência, com remetente de Austin - Texas -, escolhemos as passagens que reproduzimos, pensando que elas melhor enquadram a novela e, obviamente, o relacionamento autor/leitor.
Antes, porém, pensamos não ser despropositado informar o leitor de que Ed B. Silverman se estreou, no campo da ficção, com esta novela, pois julgamos saber ter várias obras publicadas sobre a sua especialidade: antropologia. Estas sem pseudónimo.
(...) "Com este trabalho pretendi escrever uma novela antipolicial, em que as situações ou fossem estereotipadas e/ou ridículas e/ou satíricas. É óbvio que estou farto de autores policiais, com excepção apenas para três contemporâneos e dois clássicos.
"Mas cometi alguns erros, como notará. Na primeira parte:
- sangue a mais e tiros a menos, e
- pouco consumo de uísque.
"Na segunda parte tento rectificar, pois que é básico em cada novela policial, dever haver um consumo mínimo de 18 garrafas de uísque. Meto, pois, uísque e tiros em quantidades compensatórias.
(...)
"Quanto à minha biografia, não lha posso dar. Invente você uma para mim, fazendo-me passar pela redacção de um grande jornal diário, aos 24 anos de idade (o que é quase verdade) e descubra-me uma vida atribulada em várias partes do mundo (o que é quase mentira)."
O editor
_______________
PRIMEIRA PARTE
1.
Maureen, a esbelta de olho de vidro, fechou suavemente a porta do seu apartamento, enquanto Gustav alcançava a rua.
Gustav olhou para um lado e para o outro à procura de um taxi e, nisto, explodiu.
Não, não lhe atiraram com uma bomba. Não fora atingido de fora para dentro, mas de dentro para fora.
Rebentou em milhões de bocadinhos, como se possuísse no estômago uma ogiva nuclear.
Todos vocês sabem que, em vida, não se aproveitava muito do Gustav mas, após o seu rebentamento, nada mesmo, mas mesmo nada se aproveitou dele.
Levaram quinze dias - os bombeiros e a polícia -, a limpar os prédios e as respectivas montras. Uma porcaria pegada. Ah sim, um sapato ficou intacto, infelizmente. Aquando da explosão, o tal sapato fez um percurso em linha recta a um palmo do chão, colhendo, num ouvido, o cachorro da Brown & Sons, a charcutaria da esquina.
(Brown & Sons era para disfarçar; o Brown e os sons eram todos italianos.)
O cachorro ficou completamente surdo. Dias mais tarde morreu atropelado.
_____________

2 - A mais pequena estória sobre crianças

Os pássaros só podem cantar em sossego
antes do despertar da insuportável
espécie humana.
Mal os homens acordam, os passarinhos
não podem terminar, sem sobressaltos, o seu canto.
Lin Yutang
Quando chega a Primavera, os homens cortam os troncos
disponíveis das árvores e deitam-nos para o chão.
Quando chega a Primavera, as crianças escolhem alguns ramos,
com eles fazem fisgas e, com estas, matam os pássaros
que pousam nos troncos livres.
Se os homens na Primavera não cortassem os ramos, as crianças
subiriam às árvores e esganariam os pássaros que não soubesses voar.
Contemos, pois, com a fraca pontaria das crianças.
(do livro Histórias do Arco-da-Velha-1)

Friday, January 13, 2006

O bobo da corte

Habitualmente o bobo da corte está apaixonado pela rainha. O bobo da corte ou é feio, ou anão, ou marreco, ou desdentado, ou disforme ou os cinco predicados juntos.
Ele pretende agradar a uma única pessoa mas, para não se fazer muito notado, dirige-se a todas e ao marido da rainha, o rei que, também habitualmente, lhe bate ou olvida. Há casos na História em que, descobrindo todo o jogo, o rei o manda decapitar. Para se entreter, claro.
O bobo da corte senta-se normalmente aos pés da rainha como um gato ou um cão. E aguarda. Diz parvoices e aguarda. Faz chalaças e aguarda. Mima tudo e todos e olha de lado para a sua senhora a ver se ela ri - aguarda. Faz rimas toscas, dá cambalhotas, mostra a corcunda, ou as gengivas, ou as pernas em arco, para gozar com as suas deformidades e para gozar com os outros - os da corte -, para gozarem todos, enfim. Sublima-se com os seus defeitos físicos e aguarda.
Às vezes a rainha, distraída, deixa cair sobre ele um olhar amistoso e até já houve casos em que lhe passou levemente a mão pela corcunda. Distraidamente, está claro. O bobo da corte, à noite na sua cela, recorda-se dessas pérolas preciosas e chora e bate nas paredes e agonia-se e clama e cospe mágoas por entre as gengivas nuas.
O bobo da corte de todos e a todos responde nada. Diz chalaças. Rebola como um arco de criança, mete os dedos na boca e alarga-a ou tira a cabeleira empoada e, à frente de todos, finge limpar o rabo com ela. A corte aclama, o rei agonia-se, a rainha ri e absolve com esse riso. O frade confessor nada faz ou diz, pois tem medo - já que o bobo da corte sabe sempre de mais e é sempre um infeliz que com tais gestos se vinga. Que o confessor durma com o pajem do rei, ora bem, pajem rima com ninguém e bobo de corte rima com desnorte.
Na noite adulta, o bobo da corte - sério como convém -, despe-se. Tira a cabeleira, os postiços, afaga os artelhos doloridos, limpa as lágrimas de raiva e vai-se a dormir. Deita-se na enxerga estreita e dura. Pelas bandas da cavalaria, na ala Leste, escapa-se um riso breve e fresco e irónico e divertido de donzela. Um cavalho relincha. O confessor, ainda acordado, pede, sem muita convicção, perdão a Deus. A rainha banha os braços e os seios com águas perfumadas. O rei, na sua ala, vai-se entretendo a despir uma aia. Essa.
O bobo vira-se para a parede de pedra e adormece.
(do livro Scrabble)