Tuesday, August 22, 2006

BRASIL - Hoje

Do sociólogo José Luís Cabaço, divulgamos hoje uma "Carta" do Brasil, com sua autorização mas a devida vénia também, já que é uma honra para o meu blog ter colaboradores deste gabarito.

Das terras de Zumbi e Tiradentes


NO QUINTAL DO MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA




O Museu é um regalo para os olhos e os sentidos, dizem todos quantos já o viram. Chama-se o Museu da Língua Portuguesa e é apresentado como uma experiência inédita a nível mundial: um museu sobre um idioma.
Infelizmente, ainda não tive ocasião de percorrer os seus espaços e me maravilhar, a opinião é unânime, com a sua organização, com a impecável metodologia didática e com os recursos tecnológicos surpreendentes que o tornam vivo, interactivo, atraente, uma experiência única.
Foi construído nesta megalópole que dá pelo nome de São Paulo, numa zona empobrecida da cidade, a Estação da Luz, e inaugurado no passado dia 20 de Março. Quem lá esteve falou-me também com emoção da presença numerosa e interessada de jovens brasileiros, e não só, que o visitam diariamente.
Mas o objectivo desta crónica não é o de falar do Museu que, como disse, não conheço, mas sim de uma reportagem publicada no conceituado jornal O Estado de S. Paulo (popularmente conhecido como “O Estadão”) na qual se indicam erros primários na pequena parte dedicada aos países africanos onde se fala português, isto é, na parte que fala de nós.
Segundo aquele quotidiano, a edição do texto é da responsabilidade de um jornalista local, o qual teria trabalhado sobre material compilado pelo Prof. Ivo Castro, chefe do departamento de Lingüística da Universidade de Lisboa. Porquê lingüistas a falar de História é a primeira pergunta que se põe! E porquê, precisamente, um português quando sobre Angola há angolanos especializados, sobre Moçambique historiadores moçambicanos, sobre Timor professores timorenses, etc, etc.?
Mas a questão torna-se mais preocupante quando, lendo o artigo, nos deparamos com as respostas dadas pelo Prof. Castro às questões levantadas pela repórter.
Vejamos alguns exemplos:
Na informação sobre Angola está escrito que a guerra civil terminou em 1999. Como é do conhecimento geral, o trágico conflito prolongou-se até 2002, quando, em Fevereiro, Savimbi morreu em combate o que conduziu à assinatura do acordo de paz entre o governo e a Unita a 4 de Abril desse mesmo ano.
O Prof. Castro justifica a “sua” data (e transcrevo do jornal): “A guerra civil de Angola não acabou num dia certo. Muitos angolanos consideram que o conflito terminou em 2002 mas também alguns pensam que o primeiro ato foi a retirada das tropas da ONU em 1977. Pelo meio, o processo teve muitas peripécias. Importante é que a guerra civil esteja mesmo acabada”.
Transcrevi palavra por palavra porque qualquer forma de discurso indirecto era susceptível de conduzir o leitor, muito justamente, a pensar que eu poderia estar a manipular a declaração, tão incrível que ela é.
Se o critério do Prof. é o do “abandono” das tropas da ONU em 1997, e quem tem boa memória sabe que esse facto ocorreu por pressão do governo angolano denunciando parcialidades e ingerências, com que base estabeleceu, unilateralmente, que a guerra terminou em 1999?
Vamos admitir a hipótese, que reputo de pouco provável, que o Prof. Castro tem critérios próprios sobre como e quando terminam os conflitos militares . Será que, para ele, o fim da II Guerra Mundial ocorreu a 2 de Fevereiro de 1943, dia da rendição nazi em Estalinegrado, que os historiadores do conflito consideram o momento decisivo da inversão dos destinos da guerra? Ou a 6 de Junho de 1944, quando as forças aliadas ocidentais efectuaram o decisivo desembarque em solo europeu? Ou será que reconhece, e então o critério é diferente do usado para Angola, que o fim da II Guerra Mundial foi declarado a 2 de Setembro de 1945, quando o Japão, última potência do Eixo em combate, assinou a sua incondicional rendição a bordo no couraçado Missouri? Que pensaria ele de um linguista moçambicano que inventasse publicamente uma data para o fim da II Guerra Mundial e, contestado, respondesse que o importante é que a guerra tivesse mesmo acabado?
Para além da incongruência histórica, e foi rigor histórico que lhe foi pedido pela consultoria, a sua resposta demonstra uma total falta de respeito por quantos angolanos morreram entre 1999 e 2002 e pela nação angolana que, ainda há poucos dias - no passado dia 4 - celebrou, governo e oposição (incluindo a Unita), o aniversário do acordo de paz em data que, por deputados do MPLA e da Unita, foi decretada como feriado nacional.
Mas não fica por aqui a sobranceria do reputado Prof. de linguística em relação a Angola. Da referida informação consta que a língua portuguesa é falada em Angola por 40% da população. Este dado que, segundo o jornal, surpreenderia os angolanos visitando o museu, contraria as cifras angolanas que apontam para um número bem mais alto. Argumentou, em resposta, o Prof. Castro:
“Sem dúvida, isso acontecerá num futuro talvez não muito distante. Mas não conheço nenhuma estatística que aponte para tal número nos dias de hoje. As estatísticas não são fiáveis em Angola, sendo prudente proceder por analogia com Moçambique: neste país, há poucos anos, calculava-se que 40% dos moçambicanos falavam português. Este mesmo número encontro em várias fontes aplicado a Angola”.
Deveríamos, talvez, ficar gratos ao Prof. pela confiança nos dados das nossas estísticas, mas a indignação pelo desrespeito aos irmãos angolanos não nos permite tal reconhecimento. Não podemos ficar indiferentes perante o facto de, para o Prof. Castro, todas as fontes serem boas e “fiáveis” com excepção das fontes que estão “no terreno”... E com que base se estabelece a analogia entre Angola e Moçambique, países com dois percursos históricos tão diferentes? Porque ambos fomos colonizados por Portugal? Quero estar certo de que não terá sido com base em outros silogismos e generalizações tão correntes no passado!
Pela informação do museu “aprendemos” que a independência de S. Tomé e Príncipe ocorreu em 1974 e que, erro que não é tratado na referida peça jornalística, o país é conhecido, pasmem, por produzir “açúcar e especiarias”... Os dados santomenses - que continuam insistindo que o país proclamou a sua independência em 12 de Julho de 1975 e que, embora em crise, o cacau é ainda a sua principal produção agrícola - não são, pelo vistos, igualmente “fiáveis”. O Prof. Castro não revela, porém, que fontes alternativas inspiraram as informações que produziu para o Museu.
Ficamos a “saber”, ainda (ou o Museu não fosse didático), que a Guiné Bissau ficou independente em 1975 e não em 1973. Instado sobre a dúvida da repórter, o Prof. explica:
“A independência da Guiné ocorreu quando o ocupante colonial partiu, em 1975”.
A História, porém, dá uma versão diferente e fala da proclamação da independência em 24 de Setembro de 1973, no seu reconhecimento pelas Nações Unidas em Novembro desse ano e no posterior reconhecimento pelo novo governo português, saído da chamada Revolução dos Cravos, em 10 de Setembro de 1974. Que fontes terão indicado ao distinto linguista o ano de 1975? O “ocupante colonial” não terá alterado a natureza da sua ocupação depois da proclamação da independência? E que “ocupante colonial” continuou no território depois do reconhecimento por Portugal?
Mas a pouca atenção do Prof. não se cinge às antigas colónias africanas. Também Timor-Leste não escapa ao seu “rigor metodológico” e no Museu consta que a língua oficial é o português, sem qualquer menção ao tetum.
Volto a transcrever O Estadão:
“Escrevi que o português é língua oficial em Timor-Leste, mas não a única”, justifica Ivo Castro, confirmando que o erro ocorreu na hora da adaptação de seu texto.
Daqui é, pois, legítimo inferir que os restantes erros (ou interpretações) são da exclusiva responsabilidade do Prof. Castro e não ocorreram “na hora da adaptação do seu texto”.
Este trabalho jornalístico e principalmente as respostas do chefe de departamento de Linguística da Universidade de Lisboa sugerem, finalmente, algumas interrogações:
a) Até quando, no âmbito da CPLP, se continuará a considerar que a opinião mais abalizada sobre as antigas colónias portuguesas é a opinião de especialistas (?) de Portugal? E as nossas Universidades? E os nossos investigadores? E os Centros de Estudos no Brasil que se dedicam aos países africanos?
b) Quando no Brasil, país com profundas raízes africanas, se começará, de facto, a encarar as relações com as instituições públicas e privadas dos membros não europeus da CPLP como relações com organismos de estados independentes, deixando de as ver como relações tuteladas e mediadas por Portugal?
c) Até quando a nossa História continuará a ser uma “história por analogia”, na feliz expressão do Prof. ugandês Mahmood Mamdani?
d) Quando se começarão a descolonizar as consciências depois de os territórios se terem libertado?
e) Até quando os nossos governos hesitarão em tomar a peito esta batalha diplomática e política pela nossa dignidade, unindo-se para protestarem veementemente contra a falta de respeito pelas nossas lutas, pelos nossos heróis, pela nossa História?


José Luís Cabaço

Friday, August 11, 2006

Pedido satisfeito

Pedi à Ana Cardoso Pires (e ela acedeu), que me deixasse publicar aqui o seu conto, tão recente que ainda está morno da sua feitura.
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foste o responsável por eu descobrir que sou claustrofóbica

I
Hoje, entre as 8 e as 9 da manhã, fui visitar-te ao emprego. Não estavas muito mais novo, o que me surpreendeu vagamente. Mas talvez o ambiente, animado de juventude e movimento, instalações modernas a dar para o fácil de manter e sem qualquer prurido de pós-pós decoração, talvez o ambiente, pensei, te estivesse a fazer bem, porque falavas a toda a gente com centelhas nos olhos e entusiasmo na voz. Aquela coisa antiga de fazer a festa com quase nada, só o coração.
Passaram uns senhores alentados, transpirando dinheiro no perímetro dos cintos, de riso bonacheirão. Despediram-se de ti com familiaridade, não excessiva mas firme. “Clientes…!”, disseste. Dos bons, estava implícito no tique malandro e confortado do olho esquerdo.
– Vamos! Vou levar-te a um sítio.
Não era uma ordem. Não era uma proposta. Era a evidência de quem sabia que seguiria o teu entusiasmo nem que fosse ao aterro do lixo.
Não sei se falámos pelo caminho. Mas andámos em passo rápido e gaiato, quase saltitante. Ali perto, abria-se um arco gótico alto, entrada de uma muralha antiga, enquadrando um trecho de uma frente de casario tipo Alfama, mas contínuo, sem vielas a separar os edifícios de formas irregulares. Seguimos para a direita, por uma estrada circular, entre o muro branco ou amarelo descorado e as fachadas. As bermas, que serviam de passeios, eram de calçada portuguesa; a zona de circulação de carros também, mas tinha sido coberta por um vago alcatrão. Não passou nenhum carro por nós. A rua desembocava num largo amplo de geometria estranha e, de repente, havia ruelas tanto para a direita como para a esquerda e em frente. E gente; numa azáfama de feira medieval, para um lado e para o outro, com cestas e sacos nos braços, dando-se tempo para falar com cada conhecido. Não se percebia o que faziam, cá ou lá. Era apenas um ambiente de geral bonomia e descontracção, como figurantes de um filme em intervalo de rodagem.
Virámos na primeira à esquerda. Era uma rua a subir, típica de mouraria. Ou de judiaria. Nessa altura, tu ias a falar, em grande gesticulação, mas não sei a propósito de quê. Como na anedota, fascinou-me a música, mas esqueci-me da letra.
– Vamos almoçar!
E levaste-me a par, com mão firme de dançarino nas minhas costas, por uma porta estreita, à direita. Abria ela num átrio do género dos vãos de escada, relativamente estreito e comprido, cortado a mais de meia largura por um balcão. Do tecto e da parede da direita, pendiam na penumbra semiformas de objectos. Em pele, diria eu. Talvez induzida por algum cheiro, mas que não era marcante. Sim, vendiam correias. E tiras de couro. Se calhar, até um daqueles aventais de que tanto gosto, que tinham os sapateiros quando cortavam sola no colo, com a faca igual à que lamentavelmente perdi e que era do meu pai, quiçá do meu avô. A despropósito, naquele balcão soturno lidava uma rapariga miudinha, loira flamejante, de cabelo encaracolado e sorriso luminoso. Era mesmo a única fonte de luz, tirando a esquadria da porta, que nós tapávamos em grande parte.
Vindos do fundo, passaram por nós, um após outro, os teus clientes obesos, que cumprimentaram de novo com boa disposição e cumplicidade. Saíram e encaminhaste-me pelo espaço que deixaram vago. Não sei como, ultrapassaste-me e meteste por uma porta à esquerda. Estranhei o sítio, porque o balcão acabava encostado à parede do fundo, que tinha uma espécie de janela. Mas que era afinal um género de passa-pratos, porque, do outro lado, estava uma rapariga parecida com a do balcão, mas com olhos tristes, sentada à mesa de tampo grande de liós de uma cozinha. Não me pude deter a focar melhor o que se passava, porque a porta por onde tinhas passado, que abria para dentro, se escancarou, para deixar sair dois homens magros, de fato e chapéu, com ar de judeus ortodoxos. Simpáticos, queriam dar-me passagem, mas não havia espaço. Encolhi-me eu contra a parede do fim do balcão e eles passaram. Um terceiro ficou para trás, num corredor com a largura do acesso, cruzou-se comigo para sair e apontou para a esquerda, por trás da porta, entrefechando-a: “É por ali”.
Com a porta fechada, o corredor quase sem luz seguia por apenas um par de metros. E tinha ainda a estrangulá-lo um móvel pobre, de linhas antigas, dos anos 50 (já devia dizer 1950, pois é, mas sei que também só viveste nos 1900…), com um televisor muito antigo em cima. Da parede do fundo, em tabuado canelado de um azul-turquesa muito feio, berrante, saíram mais dois judeus parecidos com os anteriores – ou talvez não, que um era capaz de ter só o solidéu e não o chapéu de feltro. O recorte da porta era muito baixo e apenas consegui ver que abria para uma escada a pique. Na realidade, não vi a escada; só uma parede branca, logo ali, e os vultos que surgiam no soluço dos degraus. Fiquei escudada na largura do televisor, enquanto passaram em fila indiana por mim, com um sorriso de simpatia.
Mas, quando me aproximei para abrir a porta de onde tinham saído, ela ganhou novas dimensões, diminuindo assustadoramente. Agora, tinha uma altura de não mais de 70 cm, por pouco mais de largura, e abria para cima, do lado de dentro. Percebi que tinha de deslizar directamente para os degraus, como quem abastece as caves de lenha ou de carvão. E entrei em pânico! Subiu-me uma enorme angústia, senti que estava a engordar, a engordar, e que ia ficar entalada na portinha diminuta. Então, pensei que aquele cenário só podia ser assim porque era um ponto de fuga, em caso de assalto à casa. E que, se acontecesse algo enquanto eu estava entalada, a loira da cozinha tinha certamente instruções para empurrar a televisão e o móvel contra a portinha, para a camuflar. E eu ia ter de ficar naquela aflição sem fazer ruído, senão denunciava o esconderijo e as pessoas que estavam lá em baixo. E comecei com falta de ar.
Tinha de sair dali! Mas tu estavas de certeza algures lá no fundo à minha espera para almoçar. E não passava ninguém a quem pudesse pedir que te desse recado de que me ia embora, só porque não conseguia descer a escadinha. Não sei o que me angustiava mais, se a sensação de claustrofobia, se o ir estragar o teu entusiasmo do dia e da perspectiva de me levares a um local único – como aquele.
Venceu a claustrofobia e fugi.
Quando ia a passar pela rapariga esfusiante, a caminho da luz agora intensa do quadro da rua, aflita, duplamente aflita, acordei. Eram 9 horas.

II
Fiquei espantada de me saber claustrofóbica. Nunca me dei a tais alergias, mas é bom que me vá preparando para não ser surpreendida…
Não me apetecia levantar da cama. Revi a chegada ao teu emprego, o arco da muralha, a rua a subir, o balcão na penumbra. Eram correias, sim. Coleiras? Chapéus também, completos e em peças. Peles em bruto, muito macias, de recortes irregulares. Calfe, diria a minha tia Celsa, que tinha as melhores luvas de pele de que tenho memória. Queria perguntar à miúda do balcão se aquele vulto, mais adiante, era do tal avental de cabedal grosso de que me recordo vagamente da infância.
Ela não esperou a pergunta:
– É isso mesmo. Fazemos em molde, para cada cliente. Nunca deixa de ter procura...
E o sorriso radioso, outra vez a iluminar o espaço, dando maior definição às sombras dependuradas. Aumentando a confusão do expositor.
– Vá, vá lá.
E apontou-me, convidativa, a porta à esquerda, já minha conhecida. Voltei a passá-la e a esbarrar no móvel com o obsoleto aparelho de televisão. Aproximei-me do postigo que abria para cima. “E se vem alguém a subir para cá?”
Espreitei para dentro. A escada era de alvenaria, bastante a pique, mais a prumo do que as escadas rolantes do Parque e com degraus mais estreitos. Não vinha gente, mas subiam vozes animadas do fundo e havia uma luz bastante contrastante com a do local onde me encontrava. De repente, ouvi o ruído de uma porta pesada sobre os gonzos e subiu uma lufada de ar fresco. Uma saída normal, lá na fundura. Ia para me interrogar sobre como era possível, numa colina a subir, haver uma porta dois andares para baixo a dar na rua, mas subiram mais dois judeus de chapéu (só agora reparava o que havia de estranho em todos: faltavam-lhes as patilhas kosher encaracoladas!), desviei-me e aos pensamentos que só complicavam a situação, e entrei com os pés para a frente. Literalmente.
Engraçado que não era nada difícil. A grande intensidade da luz afastava a parede, a inclinação do tecto acompanhava a dos degraus de tão perto que não deixava ter medo de me baldar pelas escadas abaixo, o rabo apoiava num degrau enquanto o pé procurava o seguinte no vazio, mas sem qualquer incerteza de o encontrar.
Eram mesmo dois andares para baixo. A meio da escadaria, à esquerda, abria um corredor baixo, tapado por uma porta de madeira a uns dois metros (como nas casas trogloditas, ocorreu-me, talvez pelo contraste da luz branca com o azul-alfazema da madeira). Continuei a descer, sem ver nada para baixo, com os olhos por detrás das mamas, incrivelmente salientes. Quando o tecto recuperou uma forma abobadada horizontal, a porta pesada, de aldraba, que tinha suspeitado lá de cima estava agora ao meu alcance, não fosse mais um par de judeus aguardarem que eu acabasse a descida. Pela primeira vez, o patamar era um espaço relativamente amplo. Sorrimos uns para os outros, desviaram-se para me dar entrada para a passagem (sem porta) à direita, como que assegurando-se de que entrava, e continuaram a bloquear o acesso à saída.
Entrei no que era uma espécie de refeitório. Com má acústica – as vozes ecoavam numa confusão de abóbadas cruzadas. Havia um balcão no canto em frente da entrada. E mesas corridas, paralelas ao balcão, que se repetiam indefinidamente, tanto quanto a vista e a atenção deixavam ver.
Lá estavas na segunda mesa, com o mesmo ar super-animado, achando a minha demora tão natural que nem a comentaste. Mantinhas conversas descontraídas com os utentes das mesas próximas. E ias petiscando coisas várias, que se iam sucedendo.
– Já viste isto? Que tal?
– Não sabia… Tantos judeus…
– Porque não? São como os tipos da pesada: só se vêem à noite.
Recomeçaste a conversar sem letra, mas com uma música, uma inspiração, fascinantes. Lembro-me que nada explicava estarmos ali, eram conversas paralelas. Àquele mundo paralelo. De vez em quando, chegavam mais petiscos. Com ar exótico, de apresentação pouco cuidada mas exalando cheiros de especiarias magnificamente doseadas. Verdadeiramente apetecíveis. Mal lhes toquei. Fiquei que tempos a sorrir, de cotovelo apoiado na mesa, segurando-me o queixo, embalada pelo som modelado, encantatório das tuas histórias entusiásticas, mímicas, coloridas.
O tempo passava e, muito de vez em quando, virava-me para ver se a porta do patamar estava livre. Nunca estava… E eu retomava o presente da tua voz, mal comendo o tempo todo, ainda que sem sacrifício.
Enquanto não se esclarecesse se havia uma saída directa para a rua, não me arriscava a engordar aquele centímetro que me havia de deixar em pânico, entalada na escada do alçapão.



Boa Fé, 9 de Julho de 2006