Wednesday, August 19, 2009

A FILHA DO POLACO


Pastoreava às vezes a estante do meu padrinho quando tinha dezasseis anos (idade que os rapazes nunca têm - passam dos catorze logo, de um salto, para os dezoito), quando vi os cinco volumes muito alinhadinhos de A Filha do Polaco, de um senhor chamado Campos Júnior.
Na altura, esfomeado, devorava com lombada e tudo, o Ponson du Terrail e mais o Dumas Pai quando o apanhava a jeito. Enxergar, pois, A Filha do Polaco, assim de repente, foi um milagre que na altura não relacionei com um livro largo de peito e de amplos dourados que se encontrava no final da prateleira, talvez pelo seu porte e ar abastado.
Atirei-me (literariamente) à filha do dito senhor e, no espaço de alguns dias, devorei-a completamente. Não sobrou nada. Trata o livro de um romance de amor, um romance histórico, decorrendo aqueles amores inflamados (portanto contrariados) durante as Invasões Francesas, com maiúsculas que logo saberão porquê.
O meu padrinho comprara esta obra em fascículos, com direito, no seu final, a encadernação grátis. A sogra dele, a minha avó algarvia, por seu lado, recortava o folhetim diário de O Século, que depois cosia com carinho agulha e linha - e não lia.
Na escola eu era um péssimo aluno a História. Tinha dificuldade em decorar datas, nomes e, na altura, não sabia para quê tanto ingrediente entrosado e de difícil explicação. E depois as árvores genealógicas - para mim gene-ilógicas, pois tudo se casava por interesse, primos com primas e coisas assim. A História era para mim um tormento. Mais o professor. Um parvalhão de óculos, que os tirava e olhava para as raparigas nas carteiras e perguntava: "Não tenho uns olhos bonitos?" Obviamente diziam que sim. (Eu e os outros rapazes agoniados.) "O que me atrofia e inferioriza é a vista cansada", adiantava penoso.
Literalmente acabada a filha do senhor polaco, voltei um dia à estante e retirei o tal livro largo de peito e com efeitos dourados. Comecei a folheá-lo e sentei-me. E comecei a lê-lo. E era uma maravilha de imaginação e de poesia, com imensas gravuras e capitulares arrendadas a ouro, cheias de beleza e imaginação.
Levei quase um mês a ler este livro poético, eu, que devorara em quatro dias as cerca de duas mil páginas de O Conde de Monte Cristo! Mais As Danadas de Paris, (às escondidas, emprestadado pelo meu pai, um boémio esquerdista), mais os Vinte Anos depois, A Mão do Finado, etc.
O exame de História dividia-se em duas partes: uma, a Antiguidade Clássica; a outra, História Contemporânea (mas não muito pormenorizada por causa da ditadura).
A primeira parte levei-a bem com o Egipto, aí com um dez vírgula zero um ou coisa parecida. Depois os três inquisidores passaram para a História Contemporânea e um deles disse-me assim: "Diga lá o que sabe sobre as Invasões Francesas."
Ai, Michel! Foi uma alegria e um ver se te avias! Já ultrapassara o tempo há muito quando me mandaram calar. Brilhante. Verdadeiramente brilhante para um aluno que, literalmente, não sabia fosse o que fosse de História. Nota final catorze.
Foi um milagre.
Na altura atribuí o acontecimento à influência do livro de largo peito e com efeitos dourados, eu, um agnóstico com documento passado pela Junta de Freguesia. Mas que houve coisa, houve.
O livro cheio de dourados, de ilustrações belíssimas e de capitulares de sonho, chamava-se A Bíblia Sagrada.