Friday, September 28, 2007

CARTA A UM DIRECTOR DE PUBLICAÇÃO PERIÓDICA

Senhor Director,
Excelência,
Leitores letrados:

Eu, e devagarinho em voz baixa, venho pedir-vos que me dêem o azimute, o atalho, a estrela-guia, o raio do ocaso denunciador do acaso.
Concretamente o que vos quero pedir -­­­- e sei que é muito --, é que me ensinem a viver em Portugal. Pronto. É só isto.
Explico para melhor se furtarem. Eu estou exilado em Portugal. E não vou citar os exilados célebres em todo o mundo, ao longo da História com histórias, para que melhor o reposteiro chamado cenário se firme lógico e directo. Cada um com o drama do seu exílio e não há dois iguais. Assim é que é: cada um com o seu.
O primeiro problema do exilado é o idioma. Parece aqui, sem conversas mais, não haver dificuldades, mas há. Não falo a mesma língua dos indígenas. Há uns códigos estranhos. Há uns neologismos obnóxios, misto Bairro da Urca (Rio de Janeiro) e Bairro da Musgueira (Lisboa). Bem tento aprender. Esforço-me por isso, mais por necessidade do que por prazer e a prova é esta: escrevo e falo mal português. Vocês já o perceberam.
Ou por falta de alguns dentes da frente ou por idiomanizar de diferente maneira, as pessoas que me ouvem franzem as sobrancelhas, respiram fundo, chegam-se para a frente, olham-me para os lábios tentando a tradução simultânea, põem mão atrás da orelha e ficam-se aparvoadas pois nada disso lhes deu o discurso. “Será branco? ET ou humanóide?”
Frustrado, recolho ao interior: “Não tem importância. Não é nada. Até amanhã.”
Outro problema do exilado é o de obter o green card. A substância, pois então, que um homem não vive só do prazer de ouvir as últimas novidades em disco, através das paredes que o ligam, e não separam, da vizinha do lado.
Então, recorda-se de dinastias distantes e procura os respectivos aios – hoje já conselheiros do reino, ministros bem firmes, barrigudinhos anafados ou anafarrados, como quiserem, qu´eu nisto em português (como já disse), tresleio, sendo a sintaxe q.b., há dentes a menos e cês (com e sem cedilha) a mais, lutando desigualmente contra os dois esses e o infiltrado obnóxio, rancoroso, camaleão de nascença, vira-casacas, de vários valores qual deputado da Assembleia Nacional da República, o chamado xis.
E os imperadores anafarrados dizem que não, que os tempos são outros (Quais?), a idade, pois claro, a idade. E os putos, pá, e os putos?! A nova geração homem, essa é que precisa de comer; tu não. Tu, o que precisas é de morrer, sem alarde nem despesa. E, o conselho amigo vem logo, gentil e gratuito: experimenta guarda-nocturno – já ninguém quer ser guarda-nocturno. A desculpa de não ter espada e de sofrer dos brônquios não a alcatifa, não ajuda. Olha, sabes, já estou atrasadíssimo. Apita. Depois falamos. Eu pago a conta. E com este pagar de conta, sentem-se quites. Já não devem nada. Mesmo quando estiveram seis meses em Paris, a estudar anatomia comparada com uma empregada da Gallimard, e nós pagando rendas e demais coisinhas – são rosas, senhor, são rosas ­­­--, e ficamos distantes, assim, olhando para cima e para baixo da rua e do céu. O tempo e o facto ajudam-nos a atravessar para o outro lado, onde nos aguarda uma velha e a paragem modulada.
Depois, para o exilado – eu --, há o problema da cultura. A chamada integração cultural. O Marcel Mauss aqui a puxar-me pela manga e eu a ouvir o corridinho do Algarve sem gostar. E o fado detestado (canção “torpe e dissolvente”, como disse dele um poeta que fez fados) e a lembrar-me do zoore, da makway, das noites de sábado com as timbilas fazendo cânones, fugas, contrapontos de tão grande beleza que o céu tropical mudava de cor, de sentido e de velocidade, a Cruzeiro do Sul vestia-se de tules e a Estrela Polar ia lá abaixo ver a irmã e ficava parva, parva, parva de contente. E agora aqui, na integração, a sentir xutos e pontapés não só na sintaxe musical como na letra, a tentar ouvir prosódia canhestra de quem não conhece acentuações. Nem música. Nem poesia. Nem o poente do Sol em ritmos do contraponto ao rítimo do coração e, portanto, à vida.
Sou exilado em Portugal. Mas sou nascido em português. Comi as dinastias, os rios, os afluentes, as invasões francesas. A dona Urraca, o 1640, os vândalos, os suevos, e outros cabrões já esquecidos, os principais países produtores de juta, ouro, prata, cobre, manganésio, fosfatos, azeite, vinho, cortiça e bacalhau. Estudei todos. Agora nos testes para emprego querem que afirme quem são os maiores produtores de facturas falsas na Europa, de produtores de televisão, de bisnagas de pasta para os dentes já com desinfectantes lá dentro, como funciona um telemóvel, quais os deputados com processos na Judiciária, o que é a ROM e o que é a RAM e, quase ao ouvido, a pergunta-chave, aquela, a íntima, a definitiva (e eu a pensar que me vão perguntar se sou homossexual), “que Word Processor costuma utilizar?” Respondo a tudo. De bom modo. Depois é fatal, vêem duas seguidas. Primeira: Qual é o seu partido? Segunda: Qual é, actualmente, o programa da TV com o mais alto score?
Fico sem emprego.
E sem felicidade existencial.

O terceiro ponto do exilado é a Paciência.
O exilado tem de possuir, acima de tudo, a resistência física para enfrentar o frio, a fome e os derivados. Paciência, ou seja, ser pacientemente paciente. Explico melhor.
Quando procura, humildemente, impressos para a declaração da declaração do declarado abaixo assinado, espera de olhos postos no chão, com a entrega seminária-católica de um convento de trapistas. Se, depois, já na meta, tem de correr à rua a prospectar trocadilhos, deve fazê-lo pacientemente calmo.
Quando, como exilado no seu país, vai a arquivos buscar provas (tão raras, tão caras, tão morosas que parece efectuadas em papiros), de que realmente existe, nasceu onde disse, e lhe perguntam com zanga forte “O que é que quer? Não encontrámos nada, pronto!” e nós, pacientemente, só dizemos que “não queremos já nada, nada, passámos por aqui por acaso e lembrámo-nos de…”
Quando vejo o hemiciclo dos sábios e donos do poder, com cadeiras a abarrotar de ausências e oiço o energúmeno com pedregulhosa gramática, de pé, fingindo-se convincente, saio às arrecuas e peço desculpa ao polícia por ser um pobre exilado, trangalho sem dentes e pronto para confessar o que todos quiserem. Paciência.
Fico assim sem graça nem ânimo neste “lugar mal frequentado”, olhando para a Tapada de Benfica, evidentemente já poluída. Não sei se choro ou não. (Convinha que vos dissesse que sim, dor-espectáculo da moda, mas não tenho a certeza.)
Só tenho a certeza de quão difícil é ser-se exilado no país onde se nasceu.
Algum de vocês me poderá dizer, por gentileza, o que devo fazer?


Álvaro Belo Marques