Tuesday, October 23, 2007

"A FILHA DO POLACO"

Pastoreava às vezes a estante do meu padrinho quando tinha dezasseis anos (idade que os rapazes nunca têm - passam dos catorze logo, de um salto, para os dezoito), quando vi os cinco volumes muito alinhadinhos de A Filha do Polaco, de um senhor chamado Campos Júnior.
Na altura, esfomeado, devorava com lombada e tudo, o Ponson du Terrail e mais o Dumas Pai quando o apanhava a jeito. Enxergar, pois, A Filha do Polaco, assim de repente, foi um milagre que na altura não relacionei com um livro largo de peito e de amplos dourados que se encontrava no final da prateleira, talvez pelo seu porte e ar abastado.
Atirei-me (literariamente) à filha do dito senhor e, no espaço de alguns dias, devorei-a completamente. Não sobrou nada. Trata o livro de um romance de amor, um romance histórico, decorrendo aqueles amores inflamados (portanto contrariados) durante as Invasões Francesas, com maiúsculas que logo saberão porquê.
O meu padrinho comprara esta obra em fascículos, com direito, no seu final, a encadernação grátis. A sogra dele, a minha avó algarvia, por seu lado, recortava o folhetim diário de O Século, que depois cosia com carinho agulha e linha - e não lia.
Na escola eu era um péssimo aluno a História. Tinha dificuldade em decorar datas, nomes e, na altura, não sabia para quê tanto ingrediente entrosado e de difícil explicação. E depois as árvores genealógicas - para mim gene-ilógicas, pois tudo se casava por interesse, primos com primas e coisas assim. A História era para mim um tormento. Mais o professor. Um parvalhão de óculos, que os tirava e olhava para as raparigas nas carteiras e perguntava: "Não tenho uns olhos bonitos?" Obviamente diziam que sim. (Eu e os outros rapazes agoniados.) "O que me atrofia e inferioriza é a vista cansada", adiantava penoso.
Literalmente acabada a filha do senhor polaco, voltei um dia à estante e retirei o tal livro largo de peito e com efeitos dourados. Comecei a folheá-lo e sentei-me. E comecei a lê-lo. E era uma maravilha de imaginação e de poesia, com imensas gravuras e capitulares arrendadas a ouro, cheias de beleza e imaginação.
Levei quase um mês a ler este livro poético, eu, que devorara em quatro dias as cerca de duas mil páginas de O Conde de Monte Cristo! Mais As Danadas de Paris, (às escondidas, emprestadado pelo meu pai, um boémio esquerdista), mais os Vinte Anos depois, A Mão do Finado, etc.
O exame de História dividia-se em duas partes: uma, a Antiguidade Clássica; a outra, História Contemporânea (mas não muito por causa da ditadura).
A primeira parte levei-a bem com o Egipto, aí com um dez vírgula zero um ou coisa parecida. Depois os três inquisidores passaram para a História Contemporânea e um deles disse-me assim: "Diga lá o que sabe sobre as Invasões Francesas."
Ai, Michel! Foi uma alegria e um ver se te avias! Já ultrapassara o tempo há muito quando me mandaram calar. Brilhante. Verdadeiramente brilhante para um aluno que, literalmente, não sabia fosse o que fosse de História. Nota final catorze.
Foi um milagre.
Na altura atribuí o acontecimento à influência do livro de largo peito e com efeitos dourados, eu, um agnóstico com documento passado pela Junta de Freguesia. Mas que houve coisa, houve.
O livro cheio de dourados, de ilustrações belíssimas e de capitulares de sonho, chamava-se A Bíblia Sagrada.

Saturday, October 13, 2007

DÁRIO VIDAL

Foi com muita alegria que vivi a exposição de Dário Vidal na Galeria Municipal em Algés.
A pausa para a Publicidade - ou ela própria -, deu a Dário Vidal uma nova têmpera quer na forma e no conteúdo quer na cor. Há os cabelos brancos da sabedoria, em todos os eus trabalhos.
As "caixas" são autênticas obras-primas de concepção e execução.
Espera~se nova exposição.

DÀRIO VIDAL


Thursday, October 04, 2007

O LENÇO

HISTÓRIA PARA SER LIDA ÀS CRIANÇAS, À NOITE, PARA ELAS ADORMECEREM MELHOR E RECONFORTADAS PELA BONDADE E JUSTIÇA HUMANAS, MAIS EFICAZ QUE UMA ORAÇÃO, UM COPO DE LEITE OU UMA MEZINHA.
PODE SER LIDA PELO PAI, PELA MÃE OU PELOS DOIS EM CONJUNTO, O QUE DARÁ MELHOR E MAIS PROFUNDO ENSINAMENTO SOBRE O AMOR ENTRE OS HOMENS DE BOA-VONTADE.


O pintor estava no Castelo de S. Jorge com a filha, tentando vender um quadro aos turistas que por ali pasmavam.
Ele tinha o direito a estar com a filha aos sábados e domingos, pois a ex-mulher ficara com a tutela alegando que ele era um desgraçado sem rendimentos fixos ou ambulantes. Ela era advogada e mexeu bem os cordeleis com os colegas e juízes e assim ficou com a miúda que agora, neste dia, tem cinco anos já prontos.
O pintor não sabe o que fazer à vida para a melhorar e para poder ficar com a miúda, pois gostam muito um do outro. E isso vê-se bem.
Ela trouxe um lencinho de cor vermelha que a mãe lhe pôs ao pescoço, pois já calculava que o pai não tinha lenço vermelho nem de qualquer outra cor e ali no Castelo há sempre um vento de leste, que também pode ser de oeste, e a miúda, para agradar ao seu amado pai, colocou o lenço vermelho sobre o canto esquerdo do quadro, num arranjo vistoso.
Um casal de pasmas com olhos azuis e cabelos amarelos apontou e o pintor disse dez contos. Eles que não com a cabeça e, por gestos, disseram que não era o quadro que lhes interessava mas o lenço. O pintor, com gestos, disse que o lenço era dele e que não, não, não era para vender, percebem? Que o quadro sim e que, abrindo os dedos da mão direita, poderia ser cinco contos, com a moldura. E os pasmados perguntam se vem o lenço também. O pintor diz que não, só a moldura. A menina já chora. Os pasmados, abanando a cabeça criticamente, vão-se embora olhando o rio lá em baixo.
O pintor não aguenta mais. Dá à miúda o lenço e um beijo.
E atira-se lá para baixo como qualquer sarraceno a fugir aos cristãos.