Monday, July 28, 2008

A MINHA TIA RITA

“A generosidade perdeu o direito à cidadania, pelo que existe um enorme défice de personalidades não-normalizadas. Torna-se necessário e urgente falar desse tipo de pessoas.”
Maria Assis.

A minha tia Rita era casada com um polícia sinaleiro, daqueles de capacete branco e bastão da mesma cor. Morava ela no Bairro Alto, na Rua da Barroca, e era amiga de todas as pequenas dessa rua e ainda da rua de cima e também da rua de baixo.
A Tia Rita ia lá a casa todos os meses ver “os seus meninos” – que éramos nós. E trazia prendas para todos. Também para os crescidos.
O marido dela, o meu Tio Abílio, era um homem muito grande, pachorrento e vermelhusco. Ela era pequenina e rabina. Ela e ele moravam numa casa minúscula, melhor dizendo, acanhada. A divisão maior era o quarto com a cama, que o ocupava quase todo, tapada com uma colcha espanhola e, junto às almofadas, um boneco sentado: um polícia sinaleiro. Ela era portanto possuidora de dois sinaleiros: um de carne e osso e outro de papelão pintado, com capacete e bastão. Um bom trabalho de miniaturização, já que as suas faces tinham duas rosetas vermelhas e os olhos bolbudos e pouco listos tal como o Tio Abílio.
A Tia Rita era uma santa criatura. Solidária, fraterna, amiga de toda a gente. Atendia a todas as pequenas com aflições, aconselhava e adinheirava. Ajudava a vestir as que iam para festas e, quando se deslocava aos armazéns da Calçada dos Cavaleiros, ali à esquerda de quem sobe, comprava sapatos para elas e para todos nós. Por estas e não por outras, levava uma tareia todos os meses quando dizia ao marido que já não tinha dinheiro do salário que ele lhe depositava religiosamente nas mãos, guardando um muito pouco quase nada para ao seus gastos pessoais que, na verdade e segundo ela, eram insignificantes.
À chuva, vento, sol abrasador, frio de tremer os ossos, aquele homem cumpria o seu mister compenetrado e uma vez eu vi-o a trabalhar. Saia da escola 64 em São Mamede e ele lá estava a dirigir o trânsito naquele cruzamento. Fiquei parado a vê-lo gesticular. Era impressionante. Enorme, braços para um lado, braços para o outro, apito de partida de comboio, e os carros a gasolina e a electricidade a obedecer. Disse ao colega da escola que estava ao meu lado:
- Aquele é meu tio.
- Ó tio!!! – berrou logo ele irreverente. Era o Bernardo, claro. O maior bronqueiro da turma a quem o professor, o senhor Júdice, passava largos raspanetes, mas nunca lhe bateu. Aliás, nunca bateu a ninguém.
Fosse pelo berro do Bernardo, fosse por qualquer outra razão, o meu Tio Abílio olhou para a nossa esquina e viu-me. Continuando a comandar o trânsito, sorriu e disse-me adeus. Ele sabia que todos gostávamos mais dela do que dele, mas não se importava. Era um homem pachorrento. Só perdia esta característica quando a mulher lhe gastava a féria a uma velocidade supersónica, que ela também não era assim tão gorda que durasse por aí além.
Com pena das tareias que ela levava, a minha avó, sua irmã, um dia disse-lhe para ela lhe entregar a féria e que lhe daria um tanto por semana para governo da casa. A Tia, limpando a lágrima que lhe escorria do olho negro, disse que estava bem, que era melhor, lá isso era.
E o trato fez-se. No começo do mês seguinte foi lá a casa a Tia Rita e entregou à avó o dinheiro do mês. Ficámos todos contentes. A nossa querida Tia ia começar a saber governar a casa e não apanhava mais do Tio.
No sábado da semana seguinte, lá passou por casa aos beijos aos “meus meninos” e levou a parte salarial combinada. Mas, no sábado seguinte não apareceu. Especulou-se muito sobre o que teria acontecido, especulação que terminou logo no domingo de manhã, quando abrimos a porta da rua e lá estava o Tio Abílio, enorme mas acanhado, não queria entrar mas entrou e disse logo à minha avó e cunhada dele, que vinha buscar o dinheiro remanescente.
- A senhora não a está a ajudar. Ela arranjou dívidas até ao pescoço, por todo o bairro. O dinheiro que a senhora me vai dar não chega para as liquidar. – e via-se no olhar que a tinha já tosado.
Por isso sempre gostei muito da minha Tia Rita e esta é uma maneira simples de o dizer. Amo-a e admiro-a desde criança. Se não fosse assim, como poderia estar aqui a escrever sobre ela com lágrimas nos olhos?

Álvaro Belo Marques

(In TempoLivre – Inatel)