Monday, December 31, 2007

ALENTEJO SEM FIM

Mão amiga ofereceu-me “Alentejo sem Fim”, livro de contos de João Luís Nabo.
Se outro mérito não tivesse, este livrinho fez-me recordar dois bons amigos já na outra margem do rio: Antunes da Silva e Manuel da Fonseca.
O livro foi de estreia (2004) e não conheço mais nada do escritor. Ele foi-me oferecido pelo título, pois que troquei, com grande felicidade, décadas de cidade por um pequeno monte alentejano equidistante de Évora e de Montemor.
Os contos (editados pela Editorial Tágide):
Certa estrutura de alguns contos fazem-me lembrar O.Henri – e isto é positivo. O conto “As Botas de Cristal” é bonito e, por isso, falso. Lastimo (e possivelmente o autor também) que tudo nele seja mentira: o mestre sapateiro chamado Celestino, o professor Abílio, o padre Elias e até os dois miúdos não existem na vida real. Infelizmente.
“A Aposta” tem um enredo que, há cerca de 20 anos, meu pai me contou. Passava-se, na sua versão, com um estudante de Coimbra, ficando a capa presa pelo prego na porta da igreja. Não tem mal algum. Antes João Luís Nabo dar-lhe letra de forma e estrutura escorreita (como está) do que andar como estorinha pelas bocas do mundo a entreter serões bocejantes nas salas de estar.
Se me fosse dada a missão de escolher, entre eles, um único para concurso literário, não hesitava n’ “O Funeral de Dona Capitolina”, pelo tema e pela forma cuidada com que está desenvolvido. Um bom conto.
Uma boa short story é “O Diário”. Talvez o final contrapontista do autor fosse desnecessário, por demasiados lugares comuns.Talvez.
É, pois, um livro que se lê com muito agrado. Gostava de ler mais obras do autor. Tenho sempre medo de obras únicas promissoras, como “Nós matámos o cão tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana.
A capa. É verdade, a capa.
Parece-me que a janela tem caixilharia em alumínio anodizado. Será?
Se é realmente alumínio, então o livro poderia chamar-se “Alentejo com fim à vista”.

Friday, December 14, 2007

VOCÊS ESCOLHEM O FINAL


O SAXOFONISTA


O Cláudio trabalhava numa firma de distribuição de correio e de encomendas mas sempre que tinha um tempinho livre, ia com o seu saxofone para o pé do Joelzinho, um mendigo do bairro, andrajoso e com as pernas torcidas como se as tivessem partido quando estava numa posição do Yoga. O Joelzinho era muito estimado no bairro mas Cláudio, por ser pobre, pouco o podia ajudar. Só tocando.

Ele sentava-se ao pé de uma grande árvore e estendia a mão.
O saxofonista amador punha-se então sentado a seu lado, num tronco horizontal da árvore e tocava. Nesses dias a receita do Joelzinho subia em flecha. Não podia era ser em todos.
Uma tarde de dueto – um pedia e o outro tocava -, disse o Joelzinho:
- Você, Cláudio, não pode tocar outras coisas?
- Não gosta do meu reportório?
- Não é isso.
- Então o que é?
- Está aqui um gajo, todo empenado, que só ouve do ouvido esquerdo, e você senta-se ao lado desse ouvido e toca invariavelmente as mesmas coisas… podia, ao menos, tocar do lado do outro…ou mudar de reportório…
Cláudio pensou, olhando para o instrumento. Depois disse:
- Eu já toquei o concerto para saxofone e orquestra de Aaron Copland, nos bons tempos…
- Você desculpe-me, Cláudio, mas o Aaron Copland nunca escreveu um concerto para saxofone e orquestra.
- Como é que você sabe, Joelzinho?
- Eu fui professor de Música.
- Foi professor de Música?! Você?!
- Não foi bem de música… fui professor de História da Música…
- Você foi professor de História da Música e está aqui a pedir esmola?!
O saxofone também olhou, admirado.
- É.
- Conte lá, puxa! Como é que você chegou até aqui.
- É simpático da sua parte não dizer “desceu até aqui”. Mas o caso ou acaso é que…
Meteu a mão no esfarrapado casaco e tirou uma pastilha de mentol. Com a mão boa, desembrulhou-a e meteu-a na boca. Chupou um bocadinho e contou:
- Dava aulas e apaixonei-me por uma aluna muito mais nova. Gabriela. Foi uma paixão doida. Passámos a viver juntos e éramos muito felizes. Depois tive um acidente de viação. Fiquei todo quebrado e ela morreu. Levei seis meses no hospital para recuperar… recuperar isto que você vê. Mas tive logo que fugir no dia da alta do hospital pois o pai da Grabriela queria matar-me. Não o podia enquanto eu estava rodeado de médicos, enfermeiros e seguranças. Mas depois podia. O hospital está a mais de mil e quinhentos quilómetros daqui. Vim com o dinheiro do seguro que logo acabou.
- Essa é obra, amigo! Há quanto tempo foi isso? O desastre.
- Há oito anos, 4 meses e seis dias.
- E a culpa foi sua?
- Foi de ambos. Estávamo-nos a beijar.
- Áh!
- Sei que ele tem vindo atrás do meu rasto. Um dia apanha-me.
- Nem pense isso! Ele já se esqueceu.
- Ele era de ideias fixas como um touro e disse uma coisa em que acreditei: “Eu vou até ao fim do mundo para o liquidar!” Não disse “matar”. Disse “liquidar”, o que demonstra muito mais determinação.
O Cláudio tinha de fazer e viu também que o concerto de hoje já estava estragado. Abriu o estojo e guardou o saxofone. Levantou-se e sacudiu as calças das notas que tinham caído do instrumento e que, por isso, não foram tocadas. Depois pisou-as sem dar por isso.
Foi quando o Joelzinho se agitou e disse alto:
- E é precisamente hoje.
O saxofonista viu logo um homem possante a aproximar-se deles com uma carabina na mão.
- É o pai da Gabriela – disse o Joelzinho, sem necessidade.

1º. Final
Imediatamente o Cláudio se pôs à sua frente, enquanto o outro disparava. Caíram. O povo da rua agarrou o homem e desarmou-o, esperando pela polícia.
Joelzinho estava vivo mas não se podia mexer com o peso do Cláudio em cima dele.
Porque o saxofonista estava morto com um tiro em pleno peito.

2º. Final
Imediatamente o Cláudio se pôs à sua frente, com o estojo contra o peito seguro pelas duas mãos. O touro disparou e o Cláudio caiu sobre o Joelzinho. O povo da rua agarrou o homem e desarmou-o, esperando pela polícia.
Joelzinho estava vivo mas não se podia mexer com o peso do Cláudio em cima dele. Cláudio então levantou-se a custo, olhando horrorizado para o estojo desfeito e o saxofone furado pela bala que era para Joelzinho.
Ficou vivo mas sem saxofone.
(Estorinha inédita. Ilustração do site gifmania.com.pt)

Saturday, December 08, 2007

SANDOKAN, O TIGRE DA MALÁSIA

Andávamos a preparar há um mês o primeiro folhetim radiofónico da Rádio Moçambique. Várias sugestões foram consideradas, ponderadas, relidas. A nossa memória foi buscar ao sótão, entre poeiras e teias de aranha, logo à entrada, Ponson du Terrail, Victor Hugo, o pai e o filho Dumas, Jules Verne, além de outros. No meio ou entretanto, vinham achegas de todos os lados, sugestões, pareceres, e perguntas. Muitas. Tema moderno ou antigo? Político ou aventuroso? Com muitos beijos à mistura como nos filmes de aventuras ou não?
Finalmente, fizemos uma ampla lista que apresentámos vaidosos à consideração superior. Tendo ela decidido e bem por uma obra e autor não citados na longa e estafante lista: Sandokan, O Tigre da Malásia, de Emílio Salgari.
Toda a equipa ficou tão contente com esta escolha como se tivesse de novo descoberto a penicilina. Possuía tudo o que era necessário; todos os ingredientes clássicos e imortais: amor, intriga, ciúme, traição, morte, luta contra os poderosos, combates marítimos, tiros, beijos, arrebatamentos patrióticos e amorosos, tendo até um toque de cultura ocidental com a Pérola de Labuan, uma menina inglesa de alta estirpe e estonteante beleza, a estudar o Fur Elise, de Beethoven, no piano que havia na mansão do governador inglês. Querem melhor?
Reuniu-se então uma equipa para fazer a adaptação, nela figurando o poeta e jornalista Leite Vasconcelos que, com muito humor, dizia que pertencia à Frelima, a Frente de Libertação da Malásia. Por esta sua graça, foi-lhe atribuído o papel de Lord Brooks, que desempenhou com muita elegância e, obviamente, “british style”.
Muitas e interessantes situações ocorreram durante as gravações mas uma das mais relevantes foi a fuga pela floresta de Sandokan, seguido de perto, se bem me lembro, por Tremal-Naik. Ele, para conseguir correr, tinha de abrir caminho à catanada à direita e à esquerda, vigorosamente. Fomos então gravar, comandados pelo sonoplasta Carlos Silva, para a zona de eucaliptos nos terrenos da Feira Internacional. Aliás, do outro lado da rua. Então, o que é que o povo viu, parado, espantado, confuso e boquiaberto? Um respeitável senhor de cabelo branco, à frente, com um ferro na mão a dar pancada nas árvores à direita e à esquerda, um técnico de som a captar com um gravador portátil, um ajudante e, a fechar, o realizador. Todos berravam, arfavam, corriam às voltas das árvores e suavam… As pessoas assistiam e por certo pensavam que éramos doidos ou que se tratava do ritual de uma nova seita contra a natureza, pois pancada nas árvores não faltava.
Um menino dos seus dez anos que vinha pelo trilho dos eucaliptos com uma gaiola de pássaros na mão, estava estático, sem saber se deveria agachar-se para não ser visto ou atirar a gaiola fora e desatar a fugir com quanta força tivesse. E os olhos dele por certo já tinham visto muita coisa ruim.
Conseguimos fazer a gravação antes da chegada da polícia.
Contudo, a mais “significativa” situação passou-se no último andar da Rádio Moçambique: no enorme salão de festas, que permitiu a gravação de um som necessário ao longo de vários episódios, principalmente nas abordagens e no final das reuniões com Sandokan. Como se necessitava de muitas vozes (não sabíamos ao certo quantas pessoas levava um parau), o mesmo sonoplasta já referido foi buscar todo o pessoal masculino da discoteca, mais os companheiros que foi encontrando pelo caminho. No final eram cerca de 30 ou mais os tigres que, bem-dispostos, fizeram a abordagem ao salão de festas.
Estes candidatos a lugar-tenente de Sandokan, tinham de berrar várias vezes, a plenos pulmões, “Morte aos Ingleses”, com mais gana e força que o povo português nas ruas, em 1891, aquando do ultimato.
E começou-se a gravação, com várias repetições, como sempre acontece. Estava tudo a ir bem quando alguém se lembrou de que tínhamos as janelas todas abertas, para não haver eco, e do outro lado da rua estavam os Ingleses, por certo a tomar chá gelado na sua Embaixada, rodeada de jardins copiados de Kensington. Parámos precisamente quando à porta surgiu a cabeça de um segurança, com a arma na mão, a olhar espantado e ofegante para nós. Tinha ouvido, no piso térreo, os nossos berros e subido as escadas a correr.
Explicámos o que se passava e o porquê daquela gritaria. Compreendeu perfeitamente, mas afastou-se a abanar a cabeça e a murmurar: “Morte aos Ingleses? Porquê?”

(In TempoLivre, revista do Inatel. Ilustração do Google)

Wednesday, December 05, 2007

SERÁ PARA TODA A VIDA?


Um frigorífico novo é como uma nova paixão. Há pétalas de flores que pousam em nós, música ao longe com violinos, e borboletas que voam à nossa volta. Quando chegam amigos ou familiares, levam-se à cozinha e apresenta-se-lhes o novo habitante. Com vaidade. Abre-se-lhe a porta. Explica-se o que o vendedor explicou. Passa-se o antebraço pelo fecho para se lhe retirar as impressões digitais e dar-lhe mais forte brilho. Hein?! Um espanto, não é? Reparem como o espaço está todo aproveitado, como num ovo! E que bonito...olha aqui.
Um ano depois nem se lhe dá os bons-dias. E quando não há leite, ainda se lhe atira com a porta à cara. Por isso, quando me disseram que aquele frigorífico GE era “para toda a vida”, pensei “que desgraçado”. Ele e eu. Termo-nos de aturar toda a vida. Apesar disso, foi para nossa casa. E ele, calmo, bem-educado e bem-parecido, foi-se deixando ficar.
Os ciclos do frigorífico foram-se fazendo, tal como a vida foi correndo, as filhas nascendo e logo no dia seguinte pedindo dinheiro para cadernos, tempos em que acreditávamos nas estações do ano tal como Vivaldi. Depois uns saíram para ir ali, outros para ir acolá, novas vidas a construir-se em viveiros distantes, favos da mesma colmeia mas separados, não esquecendo, pelo meio, o inefável estudo de piano e as guerras em todo o lado.
Passados quarenta anos, continuava o frigorífico precisamente no mesmo sítio. Em algumas zonas com as marcas da idade: erupções castanhas na pele, fecho sem brilho prateado, marcas redondas na parte superior, onde jarras viveram bocejando, anos em equilíbrio estável mas por vezes trémulo. Mas não se queixava. Depois foi desligado da parede e a porta ficou dois dedos aberta “para arejar”. Assim ficou, com as entranhas às escuras e ele de braços caídos, espectante.
Quando uma das filhas disse que ia comprar um frigorífico, lembrei-lhe:
– Tens o da mamã.
– Está tão velho...
– Não trabalha?
– Muito bem, mesmo.
– Então...
E o frigorífico para toda a vida foi à oficina para automóveis do senhor João, numa localidade próxima de Frielas e este, com muita sabedoria e talvez um pouco de ternura (quero acreditar que sim), pintou-o como se fosse um automóvel. Ficou lindo. Novo. Sem rugas, brilhante. Uma plástica completa. Até se ria quando o fomos buscar.
Pois na nova casa da filha, ele passou a ser a estrela da companhia. Nem os móveis chineses rivalizavam com aquele old fashion frig. As visitas entravam na cozinha e ficavam paradas a olhar embevecidas e ele, qual mordomo inglês ou guarda da rainha, imperturbável, digno, mas sorrindo de contente.
De vez em quando eu tinha oportunidade de estar a sós com ele e dizia-lhe, fazendo-lhe uma festa cúmplice, estás bonito e trabalhas bem. E ele modestamente respondia-me, baixinho, faço o que posso...
A Terra deu mais umas voltas, talvez contrariada.
Vieram mais três guerras novas mas não se acabando senão com uma das antigas, que os fabricantes de armamento e os grandes políticos também têm de viver, coitados.
E o frigorífico para toda a vida, por razões várias, viajou para a Praia das Maçãs e ficou mudo e quedo na garagem de uma moradia, na companhia da tralha. Aquela que todos conhecemos. Perdeu então o seu porte erecto, digno. E, para não dar nas vistas, encolhia-se quando o carro entrava para se abrigar. Já não queria fazer-se notado e talvez pensasse que estava para breve o seu fim.
Foi quando a Terra deu mais umas voltas e se precisou no Alentejo de um frigorífico. Para mim. E foi com emoção que lhe fechei a porta na Praia das Maçãs, o embrulhei num enorme cobertor (daqueles que nos protegem dos raios) e o levei até um modesto e pequeno monte entre Évora e Montemor-o-Novo.
Está ali, na cozinha a olhar-me. Eu, aqui do computador, vejo-o de vez em quando estremecer. Não sei se é do final de um ciclo ou de prazer. Já nos conhecemos e estimamos há 48 anos. E penso às vezes que, quando a Terra der uma determinada volta e eu for obrigado a retirar-me, ele ficará ali ou para toda a vida ou aguardando que alguém lhe feche os olhos.

Monday, December 03, 2007

OS GRANDES SAFARIS AOS GALA-GALAS

A minha vizinha e amiga Leonor, ouvindo-me falar de olho a luzir em gala-galas, quis saber mais sobre o bicho. Escrevi este textinho que agora recuperei, porque estou numa da infância. Tende lá paciência!




Eu tinha oito anos e vivia com os meus irmãos mais velhos e com os pais em Lourenço Marques, antiga capital de Moçambique e às vezes eu ouvia eles dizerem que iam caçar gala-galas.
Ficava ansioso por os acompanhar, mas não me levavam. Eu era o mais novo e uma menina era a mais velha. Explico melhor: éramos quatro irmãos - e a mais velha era uma menina. Portanto, eu, o mais novo, era assim uma coisa, como um gato ou um cão, que se estima e a quem se faz festas e se dá beijinhos mas não importância.
Quando os gloriosos guerreiros voltavam dos safaris, eu ia ver o que tinham caçado e era sempre nada - e eu, por vingança, ficava todo contente.
Mas uma vez eles disseram “vem daí”, generosidade afectiva que bem me soube. E lá fui todo contente.
Ora bem. Primeiro, como se caça gala-galas? É importante que vocês saibam como é mas, primeiro que tudo, o que é um gala-gala?
Pois um gala-gala é um simpático lagarto de grande cabeça verde-azul, que atravessa as ruas a grande velocidade, que mantém sempre a cabeça bem erguida, como se fosse um bicho importante e que, se lhe cantarmos, ele dança todo contente. Não acreditam? É verdade!
Vamos então à caça.
Como se caça um gala-gala? Com uma sarabatana. Mas que coisa é essa? Fazemos assim: arranjamos uma cana direitinha, furamos os nós interiores com um arame ou um ferro, sopramos bem e temos o chamado tubo. Depois pedimos à mãe umas agulhas e arranjamos daquele papel muito fininho, papel de seda. Com bocadinhos deste papel fazemos cones muito bem enrolados e, na extremidade, põe-se a agulha. Era a “bala”.
Depois metia-se a “bala” no “cano” que, neste caso era a cana, e estávamos prontos a ir à guerra e a matar rinocerontes, leões e... os pobres gala-galas.
Como dispara? É assim: uma ponta da cana (a que tem lá dentro a “bala”) encosta-se à boca. A outra extremidade da cana aponta-se ao animal selvagem que queremos abater e, enchendo o peito de ar, sopramos com quanta força tenhamos. E lá vai a mortalha com a agulha na ponta, direita ao alvo. Não é verdade! Pelo menos no caso dos gala-galas, nunca ia direita ao alvo; nunca acertava!
Eu não tinha idade para possuir uma arma tão importante como uma sarabatana, mas fui todo contente com os meus irmãos.
Andámos pelos subúrbios toda a manhã, com os meus irmãos gesticulando para mim, impondo silêncio, caminhando devagar como os cães perdigueiros, “disparando balas mortíferas”, que voavam habilidosamente por entre as árvores sem atingir qualquer alvo, os gala-galas fugindo a rir como uns perdidos, e depois regressámos a casa sem glória nem troféus.
Fomos mais vezes. Várias vezes. Uma com dois vizinhos. Uma autêntica batida aos gala-galas. Um safari cuidadosamente preparado entre quinta-feira e sábado, com ensaio das sarabatanas, prática de tiro ao alvo e escolha criteriosa das melhores agulhas da nossa mãe e das mães dos outros corajosos caçadores. Escolheram-se canas, fizeram-se “balas” em quantidade, soprou-se a valer pelas canas. Uma aventura muito bem preparada. Ir-se-ia para mais longe nesse sábado: iríamos para a zona do Instituto de Meteorologia, onde, segundo um rapaz que era filho, precisamente, de um meteorologista, havia mais gala-galas do que em qualquer outro ponto de Moçambique.
Pois nada! Felizmente ninguém, alguma vez, caçou um gala-gala. Andámos lá até às tantas, não caçamos nada e, quando chegámos a casa mais tarde que tarde, não tivemos direito ao almoço, sábio castigo da mãe. Fim do grande safari!

(Pois, como já dissemos, o gala-gala dança. Se um grupo de crianças rodear um gala-gala e, ao ritmo de palmas, lhe cantar
“Gala-gala lhokuene
Gala-gala lhokuene”,
ele agitará o tronco de um lado para o outro e abanará a cabeça sempre bem levantada.)

Friday, November 30, 2007

Kruger Park

Uma das muitas fotos tiradas pelo jornalista Machado da Graça aos seus amigos leões no Kruger Park. Eles, conhecendo-o bem, já se põem em posição fotogénica.

Thursday, November 29, 2007

UM ANIMAL COM PRESTÍGIO


O meu amigo Machado da Graça, jornalista em Moçambique, vai quase todas as semanas ao Krugar Park cumprimentar e trocar impressões com os animais seus habitantes. Mais por gestos que por palavras, pois os bichos só falam inglês e afrikander. Este amigo, chamado-se João, passa a John ali no parque.
Pois sabendo da minha grande amizade e admiração pelo Gala-Gala, mandou-me duas fotos deste simpático lagarto. Não tenho a certeza mas parece que ele,
na foto, lhe pergunta por mim. Não se admirem. Escrevi um dia um livrinho intitulado "As aventuras do gala-gala Bisnaga", que teve duas edições de 7.500 exemplares cada! É obra.
Quando era miúdo e o mais novo a tribu, ia com os meus irmãos "à caça dos gala-galas", plural desnecessario pois nem um se apanhava, felizmente. Com as mortalhas Ziz-Zag do pai e os alfinetes e agulhas da mãe, fazíamos os projectéis da zarabatana, esta um segmento de cana, por vezes tubos de plástico, restos de instalações eléctricas na zona.
Partíamos manhã cedo, pela fresca e regressávamos à hora da comida, suados e esfomeados e, claro, sem qualquer troféu de caça.
Ao Machado da Graça, homem de mil aventuras e habilidades, os meus agradecimentos pela foto que, com a vista já cansada que agora tenho, não sei exactamente se é o Bisnaga se o filho, o Bisnaguinha.

Wednesday, November 28, 2007

FORA DE PRAZO

Pelos meus 16/17 anos aquele terreno à entrada de Cascais, chamava-se a Ribeira das Vinhas e era baldio. Então, alternada e periodicamente, ali se instalava um Luna Park (denúncia bacoca de um provincianismo latente, dolorido e ambicioso) e um circo: o Circo Rentini. Todo em chapa ondulada, com mais correntes de ar que o Inferno de Dante (e mesmo sem ser o dele) e onde, nos entreactos actuava, com a sua viola, a irmã do Camilo de Oliveira, a Zurita de Oliveira, cheia de talento e de outras coisas boas que sobressaíam à vista, mesmo desarmada.

Pois durante os Luna Parks, eu e o meu gang, lá íamos às tômbolas, tiros ao alvo, bola no cubo, argolinha em garrafa e etc., a todos os jogos que davam prémios. Nunca recebi nenhum. Nessa altura eu tinha um cão aloprado chamado Fox e uma cabra bondosa e terna chamada Shéhérazade. O cão ia connosco; a cabra ficava numa quinta no alto da Ribeira das Vinhas, portanto em terreno sobranceiro ao Luna. Ao não receber qualquer prémio, ficava possesso e cheio de raivas pequenas e vingava-me apostando com os amigos que tinha uma cabra chamada Shéhérazade e que ela respondia quando a chamava. Desacreditavam. Então fazia a aposta e gritava, a plenos pulmões: “Shéhérazade!” E logo se ouvia lá em cima o seu gentil mas sonolento Mé!!!!! Aí ganhava qualquer coisa; a aposta...

Depois casei e, no Verão, os fins-de-semana comportavam a Feira Popular, na zona das panelas, pois bem delas precisávamos para a caverna. Ao fim de três ou quatro anos saiu-nos uma cadeira de praia, que deve ter ficado mais cara que uma Luís XV, estofada a brocado.

Na quarta dinastia, nos últimos dez anos, cenários do época actual, respeitosamente todas as semanas lá vai o dinheiro para o Totoloto e mais o Jack (nome próprio da simpática figura). Pois saíram duas vezes um três, mas cheios de requintes de malvadez, com aproximações que nos levam a pensar, “na próxima é que é” e, afinal, não é, e deveria haver um prémio para quem acerta ao lado e até já estou habituado, nos correios, a vislumbrar a fila que anda melhor para a frente, meto-me nela com a tontura do génio, e fico para trás de todas as outras filas porque na “minha” houve alguém que, ao conferir o troco, ou a carta registada que não aparece, etc.

Depois de tudo isto, de toda esta vida longa de deuses de costas voltadas, hoje, domingo, hoje Dezembro, hoje de tempo ruim e deprimente, com um telejornal que abre com 5 - cataclismos/assassinatos - 5 , toca o telefone e uma voz falando brasileiro me informa aqui o cara que sou vencedor de uma promoção dos telemóveis Optimus, pelo que devo, no prazo de meia hora, telefonar para o número tal e tal.

Estão a ver, não é? Já não tenho a Shéhérazade para me vingar. Isto não pode ser. Isto é um terrível e dramático engano. Os deuses já estão de frente para mim? Mas será? Foi o efeito da sonda que não aterrou ainda em Marte? Passeio pela casa, olho para o espelho, converso comigo e resolvo ir “aos apanhados”.

Ligo para o tal número e digo (passa a discurso directo):

– O senhor Silva disse para ligar para aí...

– Estamos a fazer uma promoção. O senhor vai receber um telemóvel Mitsubishi, sem encargos mensais e com cartão recarregável, como oferta da Optimus, desde que não tenha mais que 65 anos.

– Tenho.

– Então não recebe o telemóvel.

Percebi que a moça tinha ficado com pena. Deve ser uma moça gentil.

Afinal está tudo certo. Confere. A partir dos 65 estamos fora de prazo. Já não somos rentáveis numa campanha promocional. A agência ou o sublime director de marketing esquece que, ao marginalizar este grupo etário, está a marginalizar a maior fatia humana nacional e que, em termos de rentabilidade, não só o velho utiliza o tele, como o pode oferecer a familiares ou amigos, havendo sempre o retorno. Ele não sabe isso porque é novo e só leu nos livros e ainda não sabe ler na vida.

Claro que a sua atitude vem em complemento de tudo o resto, no que se refere à política nacional. Somos seres para abater, fora de prazo. Por isso nem desta vez a sorte me calhou. A sonda que aterre em Marte, de uma vez!

– Shéhérazade!!!!!!!!!
(In TempoLivre - Inatel)

Tuesday, October 23, 2007

"A FILHA DO POLACO"

Pastoreava às vezes a estante do meu padrinho quando tinha dezasseis anos (idade que os rapazes nunca têm - passam dos catorze logo, de um salto, para os dezoito), quando vi os cinco volumes muito alinhadinhos de A Filha do Polaco, de um senhor chamado Campos Júnior.
Na altura, esfomeado, devorava com lombada e tudo, o Ponson du Terrail e mais o Dumas Pai quando o apanhava a jeito. Enxergar, pois, A Filha do Polaco, assim de repente, foi um milagre que na altura não relacionei com um livro largo de peito e de amplos dourados que se encontrava no final da prateleira, talvez pelo seu porte e ar abastado.
Atirei-me (literariamente) à filha do dito senhor e, no espaço de alguns dias, devorei-a completamente. Não sobrou nada. Trata o livro de um romance de amor, um romance histórico, decorrendo aqueles amores inflamados (portanto contrariados) durante as Invasões Francesas, com maiúsculas que logo saberão porquê.
O meu padrinho comprara esta obra em fascículos, com direito, no seu final, a encadernação grátis. A sogra dele, a minha avó algarvia, por seu lado, recortava o folhetim diário de O Século, que depois cosia com carinho agulha e linha - e não lia.
Na escola eu era um péssimo aluno a História. Tinha dificuldade em decorar datas, nomes e, na altura, não sabia para quê tanto ingrediente entrosado e de difícil explicação. E depois as árvores genealógicas - para mim gene-ilógicas, pois tudo se casava por interesse, primos com primas e coisas assim. A História era para mim um tormento. Mais o professor. Um parvalhão de óculos, que os tirava e olhava para as raparigas nas carteiras e perguntava: "Não tenho uns olhos bonitos?" Obviamente diziam que sim. (Eu e os outros rapazes agoniados.) "O que me atrofia e inferioriza é a vista cansada", adiantava penoso.
Literalmente acabada a filha do senhor polaco, voltei um dia à estante e retirei o tal livro largo de peito e com efeitos dourados. Comecei a folheá-lo e sentei-me. E comecei a lê-lo. E era uma maravilha de imaginação e de poesia, com imensas gravuras e capitulares arrendadas a ouro, cheias de beleza e imaginação.
Levei quase um mês a ler este livro poético, eu, que devorara em quatro dias as cerca de duas mil páginas de O Conde de Monte Cristo! Mais As Danadas de Paris, (às escondidas, emprestadado pelo meu pai, um boémio esquerdista), mais os Vinte Anos depois, A Mão do Finado, etc.
O exame de História dividia-se em duas partes: uma, a Antiguidade Clássica; a outra, História Contemporânea (mas não muito por causa da ditadura).
A primeira parte levei-a bem com o Egipto, aí com um dez vírgula zero um ou coisa parecida. Depois os três inquisidores passaram para a História Contemporânea e um deles disse-me assim: "Diga lá o que sabe sobre as Invasões Francesas."
Ai, Michel! Foi uma alegria e um ver se te avias! Já ultrapassara o tempo há muito quando me mandaram calar. Brilhante. Verdadeiramente brilhante para um aluno que, literalmente, não sabia fosse o que fosse de História. Nota final catorze.
Foi um milagre.
Na altura atribuí o acontecimento à influência do livro de largo peito e com efeitos dourados, eu, um agnóstico com documento passado pela Junta de Freguesia. Mas que houve coisa, houve.
O livro cheio de dourados, de ilustrações belíssimas e de capitulares de sonho, chamava-se A Bíblia Sagrada.

Saturday, October 13, 2007

DÁRIO VIDAL

Foi com muita alegria que vivi a exposição de Dário Vidal na Galeria Municipal em Algés.
A pausa para a Publicidade - ou ela própria -, deu a Dário Vidal uma nova têmpera quer na forma e no conteúdo quer na cor. Há os cabelos brancos da sabedoria, em todos os eus trabalhos.
As "caixas" são autênticas obras-primas de concepção e execução.
Espera~se nova exposição.

DÀRIO VIDAL


Thursday, October 04, 2007

O LENÇO

HISTÓRIA PARA SER LIDA ÀS CRIANÇAS, À NOITE, PARA ELAS ADORMECEREM MELHOR E RECONFORTADAS PELA BONDADE E JUSTIÇA HUMANAS, MAIS EFICAZ QUE UMA ORAÇÃO, UM COPO DE LEITE OU UMA MEZINHA.
PODE SER LIDA PELO PAI, PELA MÃE OU PELOS DOIS EM CONJUNTO, O QUE DARÁ MELHOR E MAIS PROFUNDO ENSINAMENTO SOBRE O AMOR ENTRE OS HOMENS DE BOA-VONTADE.


O pintor estava no Castelo de S. Jorge com a filha, tentando vender um quadro aos turistas que por ali pasmavam.
Ele tinha o direito a estar com a filha aos sábados e domingos, pois a ex-mulher ficara com a tutela alegando que ele era um desgraçado sem rendimentos fixos ou ambulantes. Ela era advogada e mexeu bem os cordeleis com os colegas e juízes e assim ficou com a miúda que agora, neste dia, tem cinco anos já prontos.
O pintor não sabe o que fazer à vida para a melhorar e para poder ficar com a miúda, pois gostam muito um do outro. E isso vê-se bem.
Ela trouxe um lencinho de cor vermelha que a mãe lhe pôs ao pescoço, pois já calculava que o pai não tinha lenço vermelho nem de qualquer outra cor e ali no Castelo há sempre um vento de leste, que também pode ser de oeste, e a miúda, para agradar ao seu amado pai, colocou o lenço vermelho sobre o canto esquerdo do quadro, num arranjo vistoso.
Um casal de pasmas com olhos azuis e cabelos amarelos apontou e o pintor disse dez contos. Eles que não com a cabeça e, por gestos, disseram que não era o quadro que lhes interessava mas o lenço. O pintor, com gestos, disse que o lenço era dele e que não, não, não era para vender, percebem? Que o quadro sim e que, abrindo os dedos da mão direita, poderia ser cinco contos, com a moldura. E os pasmados perguntam se vem o lenço também. O pintor diz que não, só a moldura. A menina já chora. Os pasmados, abanando a cabeça criticamente, vão-se embora olhando o rio lá em baixo.
O pintor não aguenta mais. Dá à miúda o lenço e um beijo.
E atira-se lá para baixo como qualquer sarraceno a fugir aos cristãos.

Friday, September 28, 2007

CARTA A UM DIRECTOR DE PUBLICAÇÃO PERIÓDICA

Senhor Director,
Excelência,
Leitores letrados:

Eu, e devagarinho em voz baixa, venho pedir-vos que me dêem o azimute, o atalho, a estrela-guia, o raio do ocaso denunciador do acaso.
Concretamente o que vos quero pedir -­­­- e sei que é muito --, é que me ensinem a viver em Portugal. Pronto. É só isto.
Explico para melhor se furtarem. Eu estou exilado em Portugal. E não vou citar os exilados célebres em todo o mundo, ao longo da História com histórias, para que melhor o reposteiro chamado cenário se firme lógico e directo. Cada um com o drama do seu exílio e não há dois iguais. Assim é que é: cada um com o seu.
O primeiro problema do exilado é o idioma. Parece aqui, sem conversas mais, não haver dificuldades, mas há. Não falo a mesma língua dos indígenas. Há uns códigos estranhos. Há uns neologismos obnóxios, misto Bairro da Urca (Rio de Janeiro) e Bairro da Musgueira (Lisboa). Bem tento aprender. Esforço-me por isso, mais por necessidade do que por prazer e a prova é esta: escrevo e falo mal português. Vocês já o perceberam.
Ou por falta de alguns dentes da frente ou por idiomanizar de diferente maneira, as pessoas que me ouvem franzem as sobrancelhas, respiram fundo, chegam-se para a frente, olham-me para os lábios tentando a tradução simultânea, põem mão atrás da orelha e ficam-se aparvoadas pois nada disso lhes deu o discurso. “Será branco? ET ou humanóide?”
Frustrado, recolho ao interior: “Não tem importância. Não é nada. Até amanhã.”
Outro problema do exilado é o de obter o green card. A substância, pois então, que um homem não vive só do prazer de ouvir as últimas novidades em disco, através das paredes que o ligam, e não separam, da vizinha do lado.
Então, recorda-se de dinastias distantes e procura os respectivos aios – hoje já conselheiros do reino, ministros bem firmes, barrigudinhos anafados ou anafarrados, como quiserem, qu´eu nisto em português (como já disse), tresleio, sendo a sintaxe q.b., há dentes a menos e cês (com e sem cedilha) a mais, lutando desigualmente contra os dois esses e o infiltrado obnóxio, rancoroso, camaleão de nascença, vira-casacas, de vários valores qual deputado da Assembleia Nacional da República, o chamado xis.
E os imperadores anafarrados dizem que não, que os tempos são outros (Quais?), a idade, pois claro, a idade. E os putos, pá, e os putos?! A nova geração homem, essa é que precisa de comer; tu não. Tu, o que precisas é de morrer, sem alarde nem despesa. E, o conselho amigo vem logo, gentil e gratuito: experimenta guarda-nocturno – já ninguém quer ser guarda-nocturno. A desculpa de não ter espada e de sofrer dos brônquios não a alcatifa, não ajuda. Olha, sabes, já estou atrasadíssimo. Apita. Depois falamos. Eu pago a conta. E com este pagar de conta, sentem-se quites. Já não devem nada. Mesmo quando estiveram seis meses em Paris, a estudar anatomia comparada com uma empregada da Gallimard, e nós pagando rendas e demais coisinhas – são rosas, senhor, são rosas ­­­--, e ficamos distantes, assim, olhando para cima e para baixo da rua e do céu. O tempo e o facto ajudam-nos a atravessar para o outro lado, onde nos aguarda uma velha e a paragem modulada.
Depois, para o exilado – eu --, há o problema da cultura. A chamada integração cultural. O Marcel Mauss aqui a puxar-me pela manga e eu a ouvir o corridinho do Algarve sem gostar. E o fado detestado (canção “torpe e dissolvente”, como disse dele um poeta que fez fados) e a lembrar-me do zoore, da makway, das noites de sábado com as timbilas fazendo cânones, fugas, contrapontos de tão grande beleza que o céu tropical mudava de cor, de sentido e de velocidade, a Cruzeiro do Sul vestia-se de tules e a Estrela Polar ia lá abaixo ver a irmã e ficava parva, parva, parva de contente. E agora aqui, na integração, a sentir xutos e pontapés não só na sintaxe musical como na letra, a tentar ouvir prosódia canhestra de quem não conhece acentuações. Nem música. Nem poesia. Nem o poente do Sol em ritmos do contraponto ao rítimo do coração e, portanto, à vida.
Sou exilado em Portugal. Mas sou nascido em português. Comi as dinastias, os rios, os afluentes, as invasões francesas. A dona Urraca, o 1640, os vândalos, os suevos, e outros cabrões já esquecidos, os principais países produtores de juta, ouro, prata, cobre, manganésio, fosfatos, azeite, vinho, cortiça e bacalhau. Estudei todos. Agora nos testes para emprego querem que afirme quem são os maiores produtores de facturas falsas na Europa, de produtores de televisão, de bisnagas de pasta para os dentes já com desinfectantes lá dentro, como funciona um telemóvel, quais os deputados com processos na Judiciária, o que é a ROM e o que é a RAM e, quase ao ouvido, a pergunta-chave, aquela, a íntima, a definitiva (e eu a pensar que me vão perguntar se sou homossexual), “que Word Processor costuma utilizar?” Respondo a tudo. De bom modo. Depois é fatal, vêem duas seguidas. Primeira: Qual é o seu partido? Segunda: Qual é, actualmente, o programa da TV com o mais alto score?
Fico sem emprego.
E sem felicidade existencial.

O terceiro ponto do exilado é a Paciência.
O exilado tem de possuir, acima de tudo, a resistência física para enfrentar o frio, a fome e os derivados. Paciência, ou seja, ser pacientemente paciente. Explico melhor.
Quando procura, humildemente, impressos para a declaração da declaração do declarado abaixo assinado, espera de olhos postos no chão, com a entrega seminária-católica de um convento de trapistas. Se, depois, já na meta, tem de correr à rua a prospectar trocadilhos, deve fazê-lo pacientemente calmo.
Quando, como exilado no seu país, vai a arquivos buscar provas (tão raras, tão caras, tão morosas que parece efectuadas em papiros), de que realmente existe, nasceu onde disse, e lhe perguntam com zanga forte “O que é que quer? Não encontrámos nada, pronto!” e nós, pacientemente, só dizemos que “não queremos já nada, nada, passámos por aqui por acaso e lembrámo-nos de…”
Quando vejo o hemiciclo dos sábios e donos do poder, com cadeiras a abarrotar de ausências e oiço o energúmeno com pedregulhosa gramática, de pé, fingindo-se convincente, saio às arrecuas e peço desculpa ao polícia por ser um pobre exilado, trangalho sem dentes e pronto para confessar o que todos quiserem. Paciência.
Fico assim sem graça nem ânimo neste “lugar mal frequentado”, olhando para a Tapada de Benfica, evidentemente já poluída. Não sei se choro ou não. (Convinha que vos dissesse que sim, dor-espectáculo da moda, mas não tenho a certeza.)
Só tenho a certeza de quão difícil é ser-se exilado no país onde se nasceu.
Algum de vocês me poderá dizer, por gentileza, o que devo fazer?


Álvaro Belo Marques

Thursday, August 30, 2007

A ERA DO DESPERDÍCIO

Há um medicamento dos laboratórios Boehringer Ingelheim chamado Spiriva, que tem o preço de venda ao público de 46,66 Euros, participando o Estado em 32,20 Euros.

O medicamento apresenta-se em cápsulas que, para serem utilizadas, se necesita de um dispositivo de inalação verdadeiramente bem concebido e fabricado, em plástico colorido e óptima apresentação. Este dispositivo, nada frágil, dura mais que as 30 cápsulas que vêm na embalagem. Quer dizer, quando o doente termina a caixa, ainda o dispositivo se encontra em perfeito estado operacional.

Calculo ou imagino que este dispositivo deva custar, pelo menos, 50% do preço total do medicamento. Com duas embalagens tipo A e B, uma com o dispositivo e outra sem, deixava-se ao doente a possibilidade de solicitar do seu médico a receita com a opção correcta. Ganhava o Estado e o doente. Ganhava menos o laboratório fabricante. Mas como esta nossa sociedade é do desperdício, de cada vez (todos os meses) que se compra o Spiriva, lá vem o dispositivo a maior parte das vezes desnecessário.

Podia também ser o dispositivo vendido à parte, sem receita médica. assim o laboratório fabricava uma embalagem só com as cápsulas e o utente decidia no momento da sua compra, com a colaboração do farmacêutico, a aquisição, ou não, do dispositivo.

Mas não, não pode ser. Esta nossa sociedade não o permite. Há que produzir objectos, muitos, e deitá-los fora. Mesmo na Saúde há desperdício.

Wednesday, August 22, 2007

CAGLIOSTRO - preciosa e bem humorada biografia

"Conde Cagliostro, o último alquimista", de Iain McCalman é um dos mais recentes títulos da Pergaminho e em boa hora. Leitura aliciante e uma riqueza impressionante de pormenores e de ligações a grandes e conhecidas figuras da época. O Boston Globe afirma: "A divertida biografia de um patife deslumbrante." Na verdade, lê-se de um fôlego e não se apaga a luz. Ficamos presos à narrativa, dele e de Casanova, quando se cruzam. Um livro que vou gostar de reler daqui a uns meses.

Tuesday, August 21, 2007

CÁ VAMOS CANTANDO E RINDO...

Os três noticiários das televisões generalistas abriram às 13:00 com a notícia mais importante para o país: o treinador do Benfica tinha sido substituído.
Hoje a Televisão paga por todos nós, anuncia das 20:55 à 01:55 programas com um único tema: futebol.
Não é de pensar a sério o que está (ou não) a fazer a RTP para melhorar o índice educacional e civilizacional do povo? Não acredito que tudo isto seja ocasional e inocente.

Sunday, August 19, 2007

ACIDENTE

Ontem na A6 vi ao longe um casal a abanar lenços e a fazer-me sinais desesperados para abrandar e parar. Assim fiz, vendo uma viatura capotada quando me aproximei. Pareceu-me não haver feridos. Continuei devagar pela via da esquerda reparando numa senhora a sair rapidamente do banco de trás de um carro com um ar de quem tinha visto saldos do fim de estação. Ansiosa e alegre. Algo de novo acontecia na sua vida.
É assim:
Uns provocam o acidente
Outros regosijam-se a ver feridos, mortos e chapa retorcida
Outros socorrem os acidentados ou põem-se na cauda da fila para ajudar o próximo a não ter um acidente. São seres previdentes, atentos e solidários. Obrigado a esse casal anónimo que me avisou do perigo.

Sunday, July 29, 2007

OVNIS NO VERÂO

Há uns anos atrás, os jornais em período de Verão, iam aos seus assuntos recorrentes e deles faziam notícias. Um ano (nos primeiros de 70) até descobriram um leão em Rio Maior, que foi visto por várias pessoas e que desapareceu assim que começaram as aulas e as folhas das árvores a cair anunciando o Outono. Mas um dos temas recorrentes eram os OVNIS.
Há uns anos que não ouvimos falar em OVNIS. Havia uma teoria de que o planeta com inteligência e tecnologia tão elevadas que permitia os autóctones passear pelo espaço distava seis anos do planeta Terra. Na verdade, em média, de 6 em 6 anos aumentava muito o número de visitas ao nosso planeta.
Desde o último OVNI que enxerguei parado sobre a baía de Maputo, na década de oitenta, não vi nem li mais nada. Desapareceram.
Por certo chagaram à conclusão de que não valia a pena visitar o planeta Terra, possuidor de uns seres que só se sentem felizes com guerras, sangue, massacres; com seres estruturalmente bárbaros, cruéis, estúpidos, sanguinários e conflituosos. Estes autóctones, os terráqueos, devem estar no fim da escala dos seres inteligentes de todas as galáxias onde houver inteligência e cultura científica.

Friday, July 13, 2007

SINPSE

Há meia dúzia de anos enviámos para a RTP este exemplo de
uma série de 24 programas, que considerámos económico, sob
o ponto de vista de produão, para além de ser didáctico e
divertido. A resposta foi não.
Curiosamente no ano passado foi apresentada uma série na
RTP idêntica a esta. Apenas os apontamentos históricos eram
substituídos por canções. Vejam lá se gostam. Comentem.

EXEMPLO


Pivô:
Neste ano da Graça de 1781, realçamos hoje a
incorporação dos novos mancebos nalguns
quartéis portugueses. A nossa reportagem
esteve no Regimento de Setúbal,
onde assentaram praça 238 jovens, com
muita vontade de defender a Pátria. Os portões
do Regimento só fecharam à meia-noite,
sendo o último a apresentar-se à porta de
armas um mancebo nascido nesta cidade,
de nome Manuel Maria Barbosa du Bocage.

Entrevista com Bocage, de melenas e mal-amanhado.
Vive na terra, mas foi o último a chegar porque acordou tarde...


Pivô:
Estão a realizar-se em Leicester, Inglaterra, as experiências
do primeiro tear mecânico, um invento de um senhor chamado
Cartwrite. Sobre este assunto trouxemos aos nossos estúdios o
senhor Manuel da Silva, dos arredores do Porto, que possui cerca
de 25 teares manuais.
Planos do sr. Silva

Pivô: Sr. Silva. Já tinha ouvido falar deste tear mecânico?
Silva: Não senhor.
Pivô:Então não sabe se vai dar resultado?
Silva: Acho que não. Mecânico como? Com um animal a dar
a dar, como a puxar água à nora? À volta do poço? E a
escrementar o chão por onde passa?! Ná!
Pivô: É mecânico, senhor Silva. Com motor.
Silva: Com motor?! Motor de vapor?! Isso não dá nada.
Os teares são trabalhados à mão desde os tempos dos meus
avós e vão continuar a ser trabalhados à mão. Isso são coisas
dos estrangeiros para enlorpar a gente. Ná! Só vendo e,
mesmo assim...
Pivô: O senhor Silva não gostaria de apanhar um barco e ir a
Inglaterra assistir a uma demonstração?
Silva: Eu nã senhor! Isso é tudo conversa e além do mais, enjoo
no mar, caragos!
Pivô: Muito obrigado senhor Manuel da Silva pelas suas
preclaras opiniões.

E, em continuação do nosso telejornal, damos hoje conta do
estrondoso êxito, em Munique, da ópera séria do senhor
Amadeus Mozart, intitulada AIdomeneo.

Imagens do filme Amadeus
Pivô: Mais um êxito do senhor Mozart.
Pois bem distante de Munique, em Slough, Inglaterra, o senhor
Herschel, William Herschel, da sua varanda já descobriu várias
estrelas. Agora vai anunciar oficialmente a sua mais recente
descoberta, um planeta a que foi dado o nome de Urânio.
Para comentar este fantástico feito, temos em estúdio o
nosso comentador científico, Professor Calisto. (1)
Imagens do Hubble.
Pivô: Então o que nos diz deste novo planeta?
Calisto: Bem...O senhor Herschel é um homem curioso.
Quando não toca música, observa os astros. Já construiu
dois telescópios: um de 20 e outro de 40 pés com reflector!
Pivô: É evidente que houve aqui uma falha técnica. Mas...
o professor conhece o nosso homem?
Calisto: Claro que conheço. Já nos encontrámos duas vezes
e devo dizer-lhe, estimado senhor, que tenho boa impressão
acerca do homem.
Pivô: Então acha que realmente o planeta existe?
Calisto: Existe, existe, mas não como ele o descreve.
A luneta de 40 pés com reflector é algo de fenomenal.
Julgo que nada de mais avançado o homem poderá um dia
vir a construir.
Pivô: Pois muito obrigado, senhor professor.
Pradarias e cavalos a desfilada.
Marcha do Filipe de Souza.
Pivô: Os pioneiros da América do Norte continuam a sua
gloriosa caminhada, empurrando os selvagens dos índios para
Oeste e já se encontram a poucos quilómetros das Montanhas
Apalaches. As imagens acabaram de nos chegar, contando
apresentá-las até ao final deste telejornal.
Estão a fazer-me sinal de que a reportagem já está pronta.

Índios a levar porrada e tiros
(O Forte Apache?)

Pivô: Da América chega-nos também a notícia de que Lorde
Cornwallis, com cerca de 14 mil homens, consolida posições
na Virgínia. Os nossos correspondentes desconhecem ainda
que decisões militares irá tomar o senhor George Washington
o qual, segundo o ponto de vista de vários observadores
portugueses, não tem quaisquer hipóteses quer políticas,
quer militares.
Foto de G. Washington
Pivô: E passemos ao desporto.

Pivô: Acaba de ser constituído por vários lordes ingleses,
o primeiro clube de cricket, o White Conduit Cricket, que
se instala nos campos verdejantes de Islington. Enfim, cada
povo com o seu cricket.

Marcha e imagens de cricket.
Fotos de Lordes ingleses.
E suas famílias e... cães.


Pivô: Está a levantar uma certa celeuma a sistemática
apreensão de livros provenientes de França, principalmente
dos enciclopedistas, por parte de Diogo Inácio Pina Manique.
Após inúmeras tentativas, o Intendente-Geral da Polícia
aceitou prestar declarações ao nosso telejornal, sobre este e
outros assuntos.


Reportagem

(Cenário: Gabinete barroco. Dois guardas, de grandes bigodes
e ar alorpado, de sabre, estão estáticos ao lado de Pina Manique.
Este está sentado com ar bélico, conflituoso.)
Entrevistador: Tenha Vossa Excelência muito boas-noites.
P.M.: Hum...
Entrev.: Caso Vossa Excelência ache bem, gostaríamos,
em primeiro lugar, de lhe perguntar se o ensaio de porrada que
deu nos estudantes da Academia, se justificava.
P.M.: Os meus homens cumprem sempre o seu dever!
Entrev.: Consta que Vossa Excelência está muito preocupado
com a invasão e a força da Maçonaria.
P.M.: Pfiuu!!! Meia dúzia de cobardolas. A maioria já está na
Cadeia do Aljube. Além disso, ideias estrangeiras em Portugal,
morrem todas na fronteira. Já se sabe.
Entrev.: Mas há quem diga, Excelência, que a Maçonaria tem
pessoas muito importantes nas suas fileiras, até, talvez,
Pares do Reino.
P.M.: As pessoas muito importantes também vão para a prisão.
(Com ar ameaçador) Ou não?
Entrev.: Vão, vão! Mas quanto aos livros dos Enciclopedistas?
P.M.: Todos queimados! Hereges! Ateus! Assim que chegam
às fronteiras do Reino, são logo apreendidos. A Polícia aqui do
lado é que não está a ajudar muito. Mas esses Enciclopedistas
são uma cambada que só perturba a turba.
Entrev.:Turba?
P.M.: Sim, a malta: Não entra cá nada! A minha Polícia
apreende tudo na fronteira e acabou-se! Lareira. Braseira. Lixo.
Entrev.: E Sua Majestade concorda?
P.M.: Sua Majestade (levanta-se) sabe quem eu sou. (Senta-se.)
Entrev.: Quer dizer Vossa Excelência que Sua Majestade concorda.
P.M.: Sua Majestade (levanta-se) sabe quem eu sou. (Senta-se.)
Entrev.: Quer então dizer que Sua Majestade concorda.
P.M.: Sua Majestade (levanta-se) sabe quem eu sou(senta-se.)
Entrev.: Pronto. Já percebi. Agora outra pergunta. Vossa
Excelência acha que é bom para a turba este tipo de entrevistas?
P.M.: Não!!! A turba, para ser feliz, deve manter-se ignorante de
todos os conflitos. E mais: se você volta a aparecer aqui,
com essas geringonças sinistras, vai ver o sol aos
quadradinhos. Percebeu?
Entrev.: Sim, Excelência.

Pivô.: Eis o trabalho feito pelo nosso repórter ao Intendente-Geral
da Polícia, Pina Manique. Onças de tabaco e livros de mortalhas
podem ser-lhe enviados para a cadeia do Aljube. Palavras de
carinho também. Mas anónimas.

E, a terminar, e como é hábito, vamos dar as novas cotações das
moedas para Portugal e para a colónia do Brasil.

Quadros. Voz off
Moeda de conta:
Conto de réis... 2.500 Cruzados 1 milhão de réis
Mil Cruzados... 400 mil réis
Dobra ou dobrão... 12.000 réis
Cruzado.... 400 réis

Moedas de cobre:
4 vinténs... 80 réis
2 vinténs ... 40 réis
1 vintém... 20 réis
2 vintém... 10 réis
1/4 vintém... 5 réis

Moedas de prata:
3 patacas... 960 réis
2 patacas... 640 réis
Pataca... 320 réis
2 vintém... 10 réis
4 vinténs... 80 réis
6 tostões... 600 réis

Pivô: E com esta informação cambial, termina o
nosso telejornal de hoje.



(1) Há em Portugal e por certo também no Brasil, comentadores

de TV que sabem de tudo e de tudo dão opinião. Poderá
fazer-se a caricatura desse personagem.

Tuesday, July 10, 2007

SINOPSE

“Rewind” (título provisório)

O filme baseia-se nas vidas de Marcel Cerdan e Ginette Neveu, sem delas se fazer uso abertamente, já que poderia constituir uma mágoa inútil para os descendentes. Assim, os seus nomes são substituídos.

O filme começa com imagens tiradas do interior de um táxi à entrada do aeroporto de Orly. Outubro de 1949. Vários carros chegam e Michelle Bronstein (30 anos), tendo ao lado o irmão, Samuel Bronstein (28 anos) vê, com surpresa, alguns operadores de jornais de actualidades e outros jornalistas na porta das Partidas.
Samuel: - Aquela gente é toda para nós?
Michelle: - Penso que não. Pouca gente sabe que vamos aos Estados Unidos.
Samuel: - Mas foi anunciado pelo ministério… contudo… deves ter razão… é gente a mais, mana.
Ao sair do táxi, vê Jacques Santerre (40 anos), o ex-campeão do mundo de pesos médios, já no passeio a responder aos jornalistas, compreendendo a razão de tanto aparato.
A câmara foca Santerre e desfoca.
Flashbach – Jacques Santarre a combater o 11º. assalto em Detroit contra LaCallia. Ouve-se o repórter dizer em inglês que Santerre caiu no 1º. assalto, o que lhe provocou uma luxação numa omoplata. Realça a capacidade do pugilista que, cheio de dores e várias vezes batido naquele local, consegue chegar ao 11º. assalto, quando desiste e perde o título.
(Pode aqui dar-se em fusão algumas passagens da vida de Santerre, como, por exemplo, o combate em que ganha o título mundial, contra Tony Zale, New Jersey.)
Michelle Bronstein encontra-se na fila para o check in, atrás de seu irmão. Na mão direita transporta uma caixa de violino. Tem 30 anos, é bonita e olha ocasionalmente para o lado onde, noutra fila, se encontra Jacques Santerre, acompanhado do treinador e do massagista. Trocam um olhar sem muita curiosidade de parte a parte.

Flashbach – Desfoque de Michelle. Esta com sete anos de idade, executa o último andamento do concerto em Sol Menor para violino de Max Bruch. Grande aplauso. Funde com Michelle com cerca de onze anos a receber o primeiro prémio de um concurso.

(Pode ser substituída, esta sequência, pela maneira usada em 1950, ou seja, um grupo de jornais rodando e trazendo as notícias da que foi considerada a futura melhor violinista do mundo, ou imagens da Net, biografia, etc.)

Entrada no avião, um SuperConstellation, Michelle senta-se junto à janela e o irmão ao lado. No banco ao lado de Samuel Bronstein senta-se uma gorda senhora com uma grande mala de mão. No banco traseiro, os dois acompanhantes e Jacques Santerre. Preparam-se para a longa viagem. Desapertam os colarinhos, etc.
Samuel: - Durante a viagem poderíamos rever os programas dos vários concertos, não achas?
Michelle: - (Faz-lhe uma festa na cara e concorda) És meu irmão, acompanhas-me ao piano desde miúda, mas pior que um agente. Mas tens razão. Já tinha pensado nisso. (Baixando a voz e aproximando-se do irmão) Sabes quem vem connosco?
Samuel: (Abana a cabeça)
Michelle: - Jacques Santerre…
Samuel : - Li no jornal que vai aos Estados Unidos para recuperar o título de campeão do mundo. (Levanta-se, tira uma pasta da bagageira e volta a sentar-se. Olha ocasionalmente para Jacques Santerre, que lhe sorri.) Vamos ver. Quantos concertos temos com orquestra e quantos só comigo?
Fusão com interior do avião quase às escuras, alguns passageiros tapados com mantas. Agora é Samuel que está junto da janela e Michelle a seu lado dorme com a cabeça no seu ombro.
Imagens de jornais da época. A sonoplastia dá o desastre, o embate, as explosões, etc.
Várias cenas das brigadas de salvamento e a desolação geral.
As imagens do desastre e os sons diminuem e aparece a palavra FIM.

Negro total. Silêncio total.
No ecrã aparece:
Um momento.
Não aceitamos, por demasiadamente injusta, a morte de três pessoas que tanto sonharam, tanto trabalharam, tanto ofereceram à vida e ao amor, para que, de um momento para o outro, se lhes tire aquilo que desejam e que todo o mundo quer receber: o seu talento e capacidade de oferta.
Além de toda e qualquer análise simplista, há maldade neste acidente de avião. Parece uma vingança.
Inconformados, vamos continuar com as suas vidas.

Últimas imagens do filme, antes do crash, em rewind rápido que pára no plano do avião na semiobscuridade.
Aos poucos aumenta a luminosidade no avião. Funde com a mesma imagem mas já os passageiros a acordar, as hospedeiras e preparar a entrega do primeiro-almoço e alguns a passarem pelo corredor a caminho da casa de banho.
Michelle: - (Para o irmão) Vou à casa de banho. Mas não te vás embora, que preciso de ti…
Sorriem.
Encaminha-se para a casa de banho e cruza-se com Jacques Santerre que se encolhe para ela passar. Cumprimentam-se e sorriem.
Michelle: - Bom dia…
Jacques: - Bom dia.
Michelle: - É Jacques Santerre, não é?
Jacques: - Sou.
Michelle: - Prazer em conhecê-lo… Já ouvi falar muito de si.
Jacques: - Bem ou mal?
Michelle: - Normalmente bem… Então até já…
Jacques: - O seu nome é…
Michelle: - Michelle Bronstein...
E seguem os dois os seu caminho.

Em Nova Iorque, tomam uma refeição juntos e nasce um relacionamento muito forte entre Michelle e Jacques. Ele promete-lhe ir a um concerto. Assim acontece. Ela, acompanhada ao piano pelo irmão, toca a difícil peça Tzigane, de Ravel. Quando acaba, o público ovaciona-a com grande entusiasmo e muitas flores. Jacques, que sabe o que representa o êxito e o fracasso, está comovido e grita Bravo!.
Jacques começa a esquecer a sua paixão por uma célebre cançonetista francesa. Num dos seus encontros ele conta-lhe a sua história de pié-noir e da sua carreira. Ela a mesma coisa. Mas ela tem uma tournée para cumprir e ele parte para Detroit a fim de enfrentar de novo LaCallia.
Despedem-se num ambiente romântico a dançar depois de um jantar, já envolvidos no começo de uma grande atracção mútua. Prometem regressar juntos a França.
Fusão de várias imagens dos concertos de Michelle e de treinos e match final de Jacques, que ganha o título de novo: campeão do mundo.
Encontro de ambos no aeroporto de Nova Iorque. Grande abraço e grande manifestação de alegria de parte a parte. Beijam-se pela primeira vez. O irmão chega também. Muita alegria e festa. Rodeados de jornalistas.
Embarcam na Air France para Paris. O SuperConstellation despenha-se no Atlântico. Não há sobreviventes.
Jornais e rádios de todo o mundo dão grande destaque à morte do campeão e meia dúzia de linhas a Michell Bronstein.
O filme acaba com Paganini (Movimento Perpétuo) ou Mendelssohn (2º. Andamento do Concerto para violino e orquestra)?
Freguises, 27 de Setembro de 2005

Friday, July 06, 2007

FOME

Do Diário da Zambézia (quelimane), de 6 de Julho:

No Centro de Reassentamento de Namirrere
Barrigas estão vazias
 Único recurso das populações, são plantas aquáticas que servem
de alimentação
(Mopeia) – No Centro de Reassentamento de Namirrere em Mopeia, sul da
Zambézia, a situação já se torna gritante para a população reassentada. Mais
de duas mil pessoas carecem de alimentação. Não se come há bastante tempo.
Informações em poder do DZ, dão conta de que, as populações
reassentadas naquele centro aberto pós cheias que assolaram a zona centro do
país, estão na eminência de morte, se medidas urgentes não forem tomadas.
Como recurso a vida, as populações comem plantas aquáticas, sem prévio
exame das autoridades de saúde.
As mesmas informações indicam que para além de plantas aquáticas, as
populações já começam a ressentir o pesadelo da vida, em alguns casos
segundo o que soubemos, já se pretende voltar as zonas de origem, as tais
consideradas de risco. A alimentação naquele centro de reassentamento, virou
uma agulha no palheiro. Dias há em que crianças não conhecem nem uma
refeição por dia, procura-se toda maneira de viver, mas não se encontra. Vezes
há, em que as populações já se deslocaram para outras partes do distrito a
procura de algo para satisfazer as suas barrigas, mas também por vezes sem
sucesso. Quando conseguem a mesma alimentação não dura muito tempo,
porque há espírito de partilha de alimentação no seio das famílias.
Barrigas estão mesmo vazias em Namirrere, não há comida, mesmo que as
autoridades ligadas ao processo de distribuição de alimentação venham dar
números de toneladas que possivelmente estejam a distribuir, mas no terreno,
as populações estão carentes de comida. (Redacção)...................................DZ
Se sobrar alguma comida dos banquetes da cimeira da
UE, poderia mandar-se para Namirrere qualquer coisita.

Friday, June 29, 2007

Os Ardinas da Mentira

Este livro de Renato Teixeira, apresentado a público há meia dúzia de dias,
merece dois destaques. O primeiro, é que já me fez gastar mais
dinheiro do que esperava, a fim de comprar vários exemplares para amigos
nacionais e estrangeiros. Segundo, sendo de um jovem, a sua prosa é
calma, precisa e rigorosa. Ainda não escreve com uma moca com um
prego na ponta. Obviamente, lá chegará.
Quanto ao conteúdo, o título denuncia-lo. E, sem qualquer espécie de
exagero, deveria ser livro obrigatório nos actuais cursos de comunicação
social. Estruturado com muito rigor e seriedade, traz-nos elementos de
análise e crítica elucidativos da maioria das notícias sem rigor ou verdade,
que nos assola diariamente de vários snipers assim que compramos
informação. O problema é que os tiros às vezes acertam. Todo o cuidado
é pouco.
A ler o mais depressa possível.