Friday, October 23, 2009

BOURRÉ A MEIO DA TARDE

Álvaro Belo Marques


O Pavilhão dos Desportos estava cheio e decorado para concerto. Eu comprara um bilhete na segunda fila e já estava sentado quando as luzes se apagaram para a segunda parte, na qual ela actuaria como solista. Cerca de trinta anos tinham passado desde aquela vez que nos conhecemos. O nosso único encontro. Quando ela entrou com o maestro, o Pavilhão quase ruiu com os aplausos – estava no auge da sua carreira. Sentou-se, fez-se quase silêncio e ela atacou o primeiro andamento do Concerto para Piano e Orquestra, opus 16 de Grieg com o mesmo virtuosismo do autor. Lembram-se? É uma entrada vigorosa.

Estava madura, mais cheia e mais bonita. A menina do vestido estampado com flores azuis, que assomava à janela para descansar as mãos e os braços, naquela moradia de dois pisos em S. João do Estoril, era agora uma consagrada pianista.
Passei cinco tardes encostado ao muro com gradeamento, que rodeava a sua casa, ouvindo-a estudar. Deveríamos ter dezassete anos. Logo no primeiro dia que parei para a ouvir, ela deu por mim. Como a pausa fosse grande, olhei para cima. Demos um pelo outro no mesmo centésimo de segundo. Olhámo-nos com curiosidade. Ela perguntando com o olhar “Estavas aqui a ouvir-me tocar?” E eu, na mesma linguagem “Fui apanhado!”
Nos cinco dias que passei ouvindo-a estudar, o esquema era normalmente o mesmo: umas escalas, depois um ou dois Estudos de Czerny, mais uma sonatina de Beethoven, alguns Nocturnos e Estudos de Chopin e parava aquele período de trabalho com uma peça ligeirinha, muito bonita, que ela já tocava com muita alma: “Fur Elise”. Depois talvez fosse lanchar, altura em que eu partia com a cabeça cheia de música.
Parecia que os deuses se interessaram por nós, primeiro, fazendo-me passar sob aquela janela naquele dia àquela hora. Segundo, proporcionando no domingo o nosso encontro na Patinagem de Cascais. Devíamos ter sido destinados um ao outro. Disse-lhe o meu nome e ela que se chamava Cecília. Falámos o resto da tarde com entusiasmo e franqueza. Ainda houve uns segundos para lhe perguntar “porquê o Fur Elise todos os dias e que tocas tão bem?” Ela sorriu e respondeu como uma criança que era “Porque gosto”.
Ficou tacitamente estabelecido que nos encontraríamos no domingo seguinte. Mas não aconteceu assim. Meus pais regressaram a Lisboa e eu com eles. Neste momento estava a vê-la, ao fim de cerca de trinta anos, a terminar o último andamento do Concerto em Lá Menor para piano e orquestra, de Grieg.
O Pavilhão parecia vir abaixo com a permanente ovação em forma de onda: subia e descia, mas não parava. Por indicação do maestro, a orquestra e a solista saíram mas ela voltou para tocar alguns extras e acalmar aquele auditório conquistado pela beleza e a perfeição da execução, que gritava o seu nome. Ao terceiro extra fui eu que gritei, já perdido, deseducadamente, “Fur Elise”. Fez-se um quase silêncio. Ela olhou em redor, tentando detectar o autor do pedido. Sentou-se de novo e tocou a bela peça que Beethoven tinha escrito para a Elisa.
Segui depois a fila das pessoas que iam ao seu camarim cumprimentá-la; toda a gente a ver e a ouvir o meu coração a bater. Estendeu-me a mão a sorrir e dizendo “Foste tu…” Beijei-a respondendo “Fui”. E nunca mais voltámos a ver-nos.