Tuesday, February 28, 2006

20. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

2.
O "Quatro de Espadas"era um pequeno bar situado quase à
esquerda da Vesey com a Greenwich. O dono, um inválido
de guerra com cerca de 35 anos, usava ferros cromados em
vez de mãos mas, com eles, conseguia fazer quase tudo.
A sua clientela era principalmente constituída por detectives
particulares e de companhias de seguros e ainda por ex-agentes
da secreta militar, alguns antigos colegas de Mike Hook, o
proprietário.
Bronco Vale entrou enregelado, mas com a segurança que dá
ter no bolso 250 dólares verdadeiros.
- Olá, Mike.
- Viva, Bronco. De quanto precisas desta vez?
- Tenho massa, obrigado. Dá-me um uísque duplo e
embrulha-me uma garrafa para levar. Podes ir preparando
também um copo para o Ralph. Estou à espera dele.
- Já chegou. Chegou há momentos. Foi aos lavabos, mas levou
o scotch com ele, por causa das moscas...
E pronto. Uma porta voou, partindo o espelho da parede de
entrada. Só depois chegou o estrondo de uma violenta
explosão nos lavabos.
Mike e Bronco correram, tropeçando em dois clientes
completamente atónitos e surdos, estendidos no chão. Pararam
à porta do urinol.
O mesmo espectáculo de sempre. A mesma porcaria. Ralph
desintegrara-se. Um cheiro pestilento, misto de fossa e de
amoníaco, invadia já todo o bar.
Mike, manejando com destreza os ganchos, conseguiu apanhar
do chão a carteira e parte do relógio de pulso de Ralph. Havia
sangue, miolos e trampa por todos os lados. Repugnante.
Bronco esforçava-se por conter os vómitos. Um detective e,
ainda por cima, dos duros, dos autênticos, não vomita.
Ligeiramente tonto, dirigiu-se à cabine telefónica, enquanto
gritava para os clientes mais próximos:
- Calem-se aí, seus merdas. Parecem galinhas assustadas.
Marcou e esperou, passando por vários intermediários e, cada
vez com mais agonias e vómitos.
- Inspector- Chefe Rockfeller? Bronco... Vá você... ou melhor,
venha cá você com os seus rapazinhos, ao "Quatro de Espadas".
Tem cá os restos de um gajo seu conhecido.
E desligou.
- Mike: que não entre nem saia ninguém.
- Não nasci ontem - respondeu o dito.
Bronco bebeu de um só trago o seu uísque duplo e correu para
a rua, onde vomitou, acertando num cão que urinava,
placidamente, para uma boca de incêndio. O cão ficou chateado.
Nesta cidade já não se podia mijar à vontade.
Bronco regressou mais aliviado, mas a tossir. Voltou para a
cabine telefónica e, após várias tentativas, consegiu o contacto.
- Verónica? Bronco. Agora não tenho tempo. Diz-me só se o
Ralph andava com alguma investigação. O quê?! Louco!
Completamente louco!!! (Respirou fundo, ouvindo.) Calma,
Verónica. Deixa tudo o que estiveres a fazer e vai para casa.
Passarei por lá mais tarde. Coragem, miúda.
Assim mesmo: "miúda". Paternal, amigo, mas duro como um
calhau. Gibraltar.
- Mike, dá-me outro uísque.
- Para beber ou para vomitar?
- Para beber, porra!
- Desculpa, mas se fosse para vomitar, dava-te de uma marca
que tenho aqui e que é muito mais barata.
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Sunday, February 26, 2006

O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

Entramos agora na segunda parte desta novela de Ed B.
Silverman, em que aparece o célebre detective Bronco Vale,
o homem que resolvia crimes e atraía balas dispersas ou
distantes. Silverman continua ridicularizando os livros
policiais, utilizando obviamente a sua estrutura.

2ª.Parte
1.
O detective particular Bronco Vale, depois de lhe ter dado uma
vista de olhos, amachucou o jornal e atirou-o contra o
bengaleiro.
A neve caía. A única janela do seu gabinete estava branca. Num
canto da sala, um pequeno aquecedor eléctrico, velho e ferrugento,
tentava vencer o frio, mas sem resultado - nada denotava o seu
honesto mas asmático esforço.
Bronco abriu a última gaveta da sua velha secretária e, tremendo
de frio, retirou uma garrafa ainda meia de uísque. Serviu-se
generosamente pelo gargalo. Tossiu. Voltou a beber e tornou a
tossir.
Mais um mês sem um único cliente. Tinha já dois meses de renda
em atraso, não só no escritório como também no apartamento
e ingeria apenas uma refeição por dia, no "Joho", aquela
espelunca infecta na 38ª.
Acendeu um cigarro e começou a limpar a arma, como via fazer
nos filmes, ou seja, não limpar nada. Passando apenas um pano
amarelo e olhando sem interesse para o interior do cano. Apenas
um ritual.
Tremeu novamente de frio e voltou a ter um novo e violento
ataque de tosse. Emborcou, mais uma vez, umas avantajadas
goladas de uísque. Olhou para a garrafa. Como o nível da garrafa
baixava! O processo de evaporação deveria ser mais rápido no
uísque do que nos outros líquidos. Quanto mais caro,
mais evapora; isto é uma grande porra. E uma grande verdade.
Foi então que, fulminantemente, entrou na pequena sala a
garota mais sexy que Bronco já vira nos dias da sua vida.
Bem, garota já não era muito. Coisa aí para os 25 anos estimados
e aconchegadinhos.
Vestia um pesado casaco forrado a pele de chinchila e, na cabeça,
um gorro da mesma pele a condizer. Uns elegantes botins
vermelhos davam-lhe um toque final, não de distinção, mas de
sábia elegância. Sob o casaco, adivinhavam-se interessantes e
variadas curvas.
E falou. Ela falava! Não demasiadamente alto. Não
demasiadamente baixo. No volume certo e com um timbre meio
grave. No registo com que começam algumas oratórias de Bach.
- Se já bebeu tudo, poderá atender-me - disse, fria como aquela
manhã de Janeiro.
Bronco, reflectindo que tinha a defender uma imagem, não só na
América como no mundo, levantou-se lentamente, como já tinha
visto uma vez fazer ao velho Gary Cooper e foi sacudir a única
cadeira "extra" do escritório. Pegou depois no jornal e deitou-o
para o cesto dos papéis. E, com um gesto sóbrio, convidou-a a
sentar-se e voltou para o seu lugar. Tudo feito pausadamente.
Não te excites, sacana.
- Obrigada. Sou Linda Marlowe. Senhora Marlowe e sou viúva.
Bronco Vale continuou a devorá-la. Fazia os possíveis para não
se babar. Passara-lhe completamente o frio. Até sentia um pouco
de calor em certas partes do corpo.
- O seu nome foi-me indicado por um amigo. Chama-se Bronco
Vale, não chama?
- Chamo.
- Ele disse-me que você não era muito inteligente, mas que
compensava essa falha natural com a honestidade e a
perseverança.
- E que mais?
- Mais nada.
- São cinqienta dólares por dia, fora as despesas e cinco dias
adiantados.
Até a tosse me ajuda...
Voltou a ter um violento ataque de tosse. Bebeu outro golo de
uísque e ofereceu, estendendo o braço, a garrafa à sra. Marlowe,
enquanto limpava a boca com as costas da mão direita.
- Não bebo, obrigado. Pelo menos a esta hora... e muito menos
pela garrafa...
Com gestos rápidos, a sra. Marlowe abriu a carteira, retirando
uma pequena bolsa para notas, com cantos arredondados em
ouro. Contou 250 dólares e depositou-os na secretária, em frente
dele.
- Sra. Marlowe. Eu ainda não disse que aceitava o trabalho.
- Pois não, senhor Vale. Mas vai aceitar pois está nas últimas.
- O seu amigo também lhe disse isso?
- Não, senhor Vale. Mas qualquer pessoa, olhando para si, vê
imediatamente que não come uma refeição decente há, pelo
menos, dez anos.
- Diga lá.
- O quê?
- Diga lá o que quer de mim.
A sra. Marlowe abriu de novo a carteira, retirando um recorte de
jornal. Abriu-o, endireitou-o com a mãozinha direita esticada e
enluvada e entregou-o ao detective.
- Leia.
Bronco Vale deu-lhe apenas um rápido olhar.
- Eu sei. É o comunicado oficial da morte dos vinte agentes da
Polícia do Estado de Nova Iorque.
- Leia então o primeiro nome da lista.
- Hum. Edgar Marlowe, agente de 1ª. classe, 28 anos de idade,
casado e sem filhos.
- Era o meu marido.
- Já percebi.
- Quero que descubra quem o assassinou.
Bronco olhou bem para dentro dos olhos da sra. Marlowe.
- Só?
- Só.
Resignado, Bronco apontou para o maço de notas e respondeu
baixinho:
- Pode guardá-lo.
- Não aceita?
- Oiça. Neste momento o assassino do seu marido e de mais
dezanove, fora os civis, anda a ser procurado por toda a
Polícia metropolitana, pela Brigada de Homicídios, pelo FBI e
pela CIA. A esta equipa juntaram-se ainda uns cretinos
professores da Escola Superior da Polícia e três inspectores
reformados.
- E daí?
- Eles nada conseguiram ainda. Nada. Absolutamente nada. E
vou ser eu, o brilhante detective particular, de baixo QI, a
descobrir tudo! Passe Bem, senhora Marlowe.
Ela, com ar duro e cerrando os dentes, latiu:
- Covarde!
Perco a grana e ainda sou insultado?
Bronco, com meio sorriso e calmamente, como já tinha visto
fazer ao velho James Cagney, bebeu o resto da garrafa e,
atirando-a para o cesto dos papéis, ergueu o seu metro e
oitenta, contornou a secretária, levantou pelos sovacos a sra.
Marlowe, virou-se e ferou-lhe duas violentas palmadas no
traseiro, acto mais que simbólico, já que o espesso casaco
forrado impedia qualquer dano em tão bom material.
Linda Marlowe, afogueada mas aparentemente calma, voltou
a sentar-se. Os olhos só transmitiam ira. Uma enorme ira mas
também uma forte determinação. Sibilou:
- Está satisfeito?
Bronco tossiu, aparentemente indiferente. Um duro! Só visto.
- Não me retiro já porque, realmente senhor Vale, me disseram
que obtinha resultados. Na vida, só me interessam os
resultados.
Bronco sentou-se. Acendeu um cigarro e, por entre o fumo,
mirou-a com admiração. Um longo silêncio os envolveu.
- Não quer, ao menos, tentar?
Quis ser ordinário, para quebrar a força de vontade e a
determinação daquela mulher:
- Dormir consigo?
- Não, senhor Vale. Tente investigar durante cinco dias e, depois,
desista. Mas só depois. Não o cansará muito.
Levantou-se, ajeitou o casaco e, já com a porta aberta para sair,
disse depreciativamente:
- ... e, entretanto, compre umas garrafas de uísque, por minha
conta, claro.
A porta fechou-se suavemente.

Bronco Vale sorriu. Achava que a cena tinha sido muito boa.
Qualquer autor policial a gostaria de ter escrito. Não tinha fugido,
nem no gesto nem na palavra, ao guião. Meteu o dinheiro no bolso
esquerdo do sobretudo e a arma na sovaqueira de cabedal. Depois
da arma entrar na bainha, deu-lhe mais um toque aconchegante
com as pontas dos dedos, quase terno.
Tossiu, escarrou para o cesto dos papéis, pegou no telefone e
marcou. Mas, antes, aspirou como qualquer rafeiro, o perfume da
base da cadeira. Era suave e altamente excitante. Esta era a
mulher dos seus sonhos deste os 13 anos de idade e, ainda por
cima, viúva e com dinheiro. Parecia...
- Ralph? Bronco. Preciso de ti. Vinte e cinco por dia. Está bem para
ti? Dentro de meia hora no "Quatro de Espadas", ok?
Desligou o aquecedor e saiu, sem fechar a porta da rua. Para quê?
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Monday, February 20, 2006

18. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

13.
No dia 2 de Janeiro, no salão nobre da Câmara Municipal,
efectuou-se uma reunião em que participaram inspectores, o
procurador-geral da República, o Mayor, directores do FBI e
da CIA, dirigida pelo Governador do Estado.
Não foi permitida a presença, na sala, de jornalistas.
Nathaniel B. Clark (NBC na intimidade), Governador do
Estado de Nova Iorque, abriu a sessão da maneira esperada,
pois tendo, nos começos da sua carreira, sido chefe das
relações públicas de uma importante agência de publicidade,
sabia conduzir com gentileza, por vezes exagerada, os assuntos,
os problemas e as reuniões.
Endireitando os punhos da camisa, que estavam direitos,
começou dizendo, com um sorriso, que logo emendou:
- Muito obrigado pela vossa presença, estimados senhores.
Pedi-vos o enorme sacrifício de abandonarem os seus afazeres,
neste começo do ano, a fim de, comigo, se analisar o problema ou
o caso das explosões humanas.
Estava dado o ponto da agenda. O silêncio era total. NBC olhou
à volta satisfeito e continuou em tom dramático:
- Ainda no ar pairam os gritos de alegria e os brindes de mais
uma passagem de ano; ainda sentimos em nós o carinho e os
votos dos nossos entes queridos; ainda recordamos com felicidade
as prendas que nos ofereceram, e já aqui nos encontramos,
indissoluvelmente ligados ao nosso dever de cidadãos e de
responsáveis pelo bem-estar e segurança do povo americano.
(Breve pausa.) Está connosco neste momento o pensamento do
Presidente, que, do seu rancho, telefonou apoiando a nossa decisão
e reunião. Assim, estimados amigos, entremos imediatamente na
matéria, para aproveitar bem o tempo que nos é pago pelo povo
contribuinte. (Breve pausa.) Queira fazer o favor, Mayor.
O Mayor, John Feltcher, estava profundamente descontente.
Há anos que fazia parte do seu interesse e quotidiano, os flashes,
microfones, as câmaras de televisão. E agora, em assunto tão
importante, nada! Numa reunião tão prometedora, com um
assunto que já apaixonava toda a América.
Com o seu treino, caseiro e público, disse o Mayor:
- Obrigado, Governador. Como sabem, 23 pessoas morreram,
em dois meses, de explosão e, infelizmente, não sabemos o que
nos espera no futuro. Das 23 pessoas, 20 eram nossos agentes,
dedicados e íntegros policiais, pelo que tomo a liberdade de pedir
a todos um minuto de silêncio, em sua honra e memória.
"Porra! - pensou NBC - Isto devia ter sido dito por mim! Foi
um grande trunfo! Porra! Porra! Mas como não me lembrei eu
do sacana do minuto de silêncio?! É de belo efeito, humano e
tudo e a besta do Feltcher é que fica com as honras! O meu
secretário é uma besta, também."
Quando toda a assistência se voltou a sentar, o Mayor pediu
ao Inspector-Chefe Rockfeller que fizesse o ponto da situação,
ao que este acedeu, metendo o cachimbo no bolso (estava na
faze Maigret).

- Temo-nos esforçado, noite e dia, para resolver este
problema. Sabemos que, por detrás das explosões, há uma
esbelta mulher, que usa um olho de vidro. Contudo, ainda não
encontrámos ninguém que a tenha visto. Até agora só tem
efectuado contactos telefónicos e, como sabem, não podemos
pôr todos os telefones de Nova Iorque em escuta.
E o Governador:
- Se ninguém ainda a viu, como sabe o Inspector-Chefe que
ela é uma esbelta mulher?
"Esta foi bem metida, caramba!" . Pensou NBC.
- Bem... É uma boa pergunta, Governador. O'Hara, por que
é que você me disse que ela era uma esbelta mulher?
-O'Hara, com o seu único olho, fulminou o Inspector-Chefe.
- EU nunca disse que ela era uma esbelta mulher.
- Se não foi você, foi o detective Bone.
- Eu?! Pois se nunca a vi! Tanto pode ser esbelta, como
torta, velha, zarolha... perdão, Chefe O?hara... não queria de
modo algum magoá-lo... referir-me ao seu olho...
- Eu quero que você se lixe!
- Governador - era o homem da CIA.
- Sim, Mafiarelli, fale - condescendeu NBC.
- Julgo que os colegas da Polícia aqui reunidos não nos
poderão dar mais informações do que as que já temos.
Também a CIA fez algumas investigações, mas sem qualquer
resultado. Não sabemos se é um assassino, se uma quadrilha,
se parte da América se do exterior e, mais, nem sabemos
sequer quais são os seus objectivos. Permito-me perguntar:
intentam apenas lançar o pânico ou são experiências para uma
acção mais ampla e nacional?
- Mais ampla e nacional? Explique-se melhor, Mafiarelli.
- OK, Governador. Vamos supor que há um produto que
misturado, por exemplo, com o uísque, provoca aquelas
tremendas explosões. Ora, as mortes até agora ocorridas,
podem ter sido apenas ensaios desse tal produto.
- Mas... 23 ensaios?!
- Sim, senhor. Suponha que, depois de testado, o produto
será lançado secretamente num popular calmante ou, até,
numa boa marca de pastilhas elásticas. Começarão então as
pessoas a explodir às milhares por dia, em todo o país. E, se
o produto explodir com a mistura de Coca-cola, serão às
centenas de milhar. Num mês morrerá mais de 50% da
população americana, principalmente na faixa etária mais
jovem.
- Com que fim? Objectivos? - perguntou o Governador.
- Chantagem, possivelmente. Paramos com as mortes se
nos derem não sei quantos biliões de dólares...
Fez-se um pesado silêncio. A CIA tinha mostrado a sua
habitual capacidade de raciocínio e de antevisão dos factos.
Que seria da América sem a CIA? Era a muda interrogação
de todos os presentes.
- Sim, Mac, diga.
Era o homem do FBI, que não queria ficar atrás.
- Eu e o Mafiarelli temos trocado algumas impressões e,
pela nossa parte, investigámos a entrada de estrangeiros,
sua proveniência, especialidade, fins, etc. Dos 256 mil
entrados nos últimos seis meses, para este Estado, só dois
são químicos de grande craveira: um romeno e um búlgaro.
Fizeram as suas conferências e foram-se embora. Mas podem
ter deixado a fórmula com algum agente local. Seria
facílimo. Estes dois químicos estão a ser vigiados por colegas
da CIA nos respectivos países.
- Obrigado, Mac. Pôs o problema muito bem. Mafiarelli:
houve alguns resultados práticos?
- Isso é com o Mac.
- Pois, é comigo. Com o romeno, nada, Governador. Apenas
o búlgaro, segundo um dos nossos agentes naquele país, tem
andado muito feliz nos últimos tempos. Ri por tudo e por
nada, dá gargalhadinhas, como se contasse a si próprio boas
piadas e até dá pequenos pulinhos na rua. Conhecem o género...
Continuaremos a investigar.
- Muito bem. Muito obrigado, Mafiarelli e Mac. Como
sempre, as vossas agências funcionam. Alguns dos presentes
deseja acrescentar alguma coisa? Não? Bem. Temos agora de
preparar a comunicação para os órgãos de comunicação. Que
sugere, Mayor?
Delicadamente, Feltcher pronunciou-se.
- Como todos sabemos, o Governador estará mais apto para
expôr o ponto da situação aos jornalistas. Contudo, permito-me
sugerir que a teoria da CIA não deva ser divulgada. Seria o
pânico. Só o Presidente deverá ser informado dela. Entretanto,
proponho que sejam considerados rigorosamente confidenciais
os trabalhos que estão a ser efectuados pela CIA e pelo FBI.
Todas as pessoas presentes deverão guardar o maior sigilo.
"Segunda vez! Este gajo já está a chatear-me! Quem
deveria ter focado o aspecto da confidencialidade, era eu!
Merda para isto. Bastardo!"
- Muito bem, Mayor. De acordo. E, agora, Inspector-Chefe,
pode mandar entrar os jornalistas.
- Quem eu?! Que vá o Bone. Eu sou um inválido perneta.
- Sim, Chefe O'Hara.
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Aviso

Com o capítulo que agora se seguirá, fica completa a primeira
parte da novela de Ed B. Silverman A Mulher Com Um Olho de
Vidro. Na segunda parte assiste-se ao aparecimento do
grande detective Bronco Vale, curiosa figura que tem a
particularidade de o seu corpo ser uma espécie de íman que
atrai qualquer bala que ande perto a cirandar.
Como não vou estar à escrita até à próxima 6ª.Feira, fica já
completa a primeira parte da dita novela.
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Sunday, February 19, 2006

17. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

12.
De 17 de Novembro a 24 de Dezembro explodiram, nas mais
diversas situações, vinte agentes da Brigada de Homicídios da
Polícia de Nova Iorque.
Os jornais e as televisões fizeram grande alarde do acontecimento
e o Mayor pretendeu realizar um funeral colectivo, para mostrar
ao país como os seus homens, mal remunerados e sempre
criticados, morrem com honra no cumprimento do dever.
O problema que então se levantou foi o do ridículo de 20 urnas a
desfilar nas ruas sem nada lá dentro, vazias. A ideia foi então
posta de parte mas, em compensação, a 27 de Dezembro, uma
lei municipal obrigava a ter a bandeira a meia haste em todos os
organismos públicos, até ao dia 28, ao meio-dia.
Entretanto deu-se o Natal - inevitavelmente as pessoas e as
criaturas ficaram todas boazinhas, graças a Deus Nosso Senhor e,
também inevitavelmente, dá-se a passagem do ano que, desta
vez, foi a 31 de Dezembro, repleta de crimes, bebedeiras, fomes
e banquetes, beijinhos, beijocas, facadas, tiros e bofetões - enfim,
assinalou-se o evento com muita dignidade, principalmente nos
templos e nas associações de ajuda aos pobrezinhos, aos
esfomeadinhos, aos sem-abrigo, aos alcoólicos anóninos, aos
seropositivos, às mães solteiras, aos porto-riquenhos, aos
animais e aos drogados também. Houve ainda uma centena
de suicídios sem qualquer importância - uns pobres da merda já
fartos. Outros conseguiram aguentar os rigores da neve, da fome
e do abandono e lá transitaram para o ano e década seguintes,
com a bênção do Senhor e do Presidente e respectiva esposa. Neste
período de oito dias, morreram assassinadas à dentada, facada,
por enforcamento, veneno para os ratos, por balas de diversos
calibres e por asfixia, uma centena e meia de criaturas.
Quanto aos nossos heróis, O'Hara andava sempre com a pála no
olho, por via do frio áspero que varria a cidade e Rockfeller passava
por uma crise de identificação pessoal - havia poucos filmes policiais,
nesta época, nas televisões. Tudo sinos e pessoas boazinhas e
estrelinhas no céu. Uma chatice!
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Ouvendo...

Dança Comigo
Fico sempre impressionado com a capacidade de
Catarina Furtado interromper o ritmo de qualquer
espectáculo. Está tudo a correr normalmente, com
cadência, e ela, pensando que a beleza é tudo, corta
de maneira inconsciente, claro, essa cadência.
Ontem, no "Dança Comigo" (RTP1), houve ainda
um momento hilariante, para mim, que foi quando
se pôs muito séria para anunciar a votação
telefónica. Que parolice! A revelação! Agora!
Chiu!, que se vai anunciar ao mundo a vacina da
gripe das aves!!!
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Thursday, February 16, 2006

16. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

11.
Os importantes porteiros dos importantes hotéis são,
normalmente, além de impotentes sexuais - ou por isso mesmo -,
vingativos, ácidos e prepotentes, para alguns. Cordeirinhos
risonhos, subservientes e restejantes, para os grandalhões. Isto
consta dos livros. Por isso, quando O'Hara saiu, disse:
- Vossa Excelência não gostou da suite real?
- Não. Não tem bidé espelhado.
- Saiba Vossa Excelência que bidé espelhado é só para a Princesa
Carolina do Mónaco.
- E para a puta da tua mãe.
E O'Hara entrou no carro, olhando para o relógio.
- Para a Rua 35.
- É para já, Chefe.
O motorista arrancou a grande velocidade.
Como se estivesse a falar do estado do tempo, foi dizendo:
- Falaram da Central.
Como O'Hara nada dissesse nem mostrasse interesse, somou:
- Não era nada de especial. Somente o Inspector-Chefe que
queria saber onde estava.
- O que é que respondeste?
- A verdade, Chefe. No Waldorf, possivelmente no bar.
- Muito bem. Como adivinhaste?
- Desculpe que lhe diga, Chefe, mas as minhas qualidades ainda
não foram devidamente apreciadas pela corporação. Tenho, na
verdade, capacidades imaginativas e deductivas... eu...
- Encosta aí junto desse prédio velho. É aí. Não atendas mais a
Central, se chamarem.
- Muito bem, Chefe. Quem manda, manda. Quem obedece,
lixa-se.
- Que queres dizer com isso, agente de terceira?
- Nada, Chefe. Desculpe lá. Estava nervoso. Ando nervoso. A
minha mulher está grávida de oito meses.
- És tu o pai?
- Ó cum raio!
- Calma! Deixa-te estar aí ou vai tomar uma bebida. Mas não
me devo demorar.
Quase a chorar, respondeu:
- Sim, Chefe...
O'Hara bateu à porta da velha casa.
Três minutos depois, Archie Goodwin entreabriu a porta,
mantendo o fecho de segurança.
- O'Hara.
- Oh! Chefe! Por que veio tão cedo?...
E foi retirando o fecho e abrindo completamente a porta.
- ...Oh que raiva!
- Diz, Archie, meu pequeno...
- Ainda não acabei de embrulhar a sua prenda de Natal.
Faltou-me a fita e o Fritz ainda não teve tempo de ir à rua
comprar mais.
- O que é hoje o almoço?
- Narcejas recheadas com uvas descascadas, com batata
frita palha em ninhos, cheios de azeitonas e pickles cortados
aos bocadinhos. Acompanha salada de tomate francês,
sem cebola.
- Nada mau.
- Pois... para quem o comer. O que não é o seu caso.
- Olha, rapaz. Quero falar com o Nero Wolf, o teu dono.
Archie Godwin introduziu a visita na sala de espera e
dirigiu-se para o gabinete de trabalho. Eram onze horas da
manhã e Nero Wolf descera naquele preciso momento da
estufa de orquídeas.
- Está na sala o deficiente físico que dá pelo nome de Chefe
O'Hara. Diz que quer falar consigo e mostrou interesse no
almoço. Já não anda de muletas. Infelizmente está melhor.
- Recebo-o mas não lhe dou almoço.
- Porquê? Se me é permitido perguntar.
- Não estou para o ver, a si, a cortar-lhe as narcejas. E
também não gosto de ver comer com as mãos... com uma
mão. Mande-o entrar e tome notas.
Goodwin assim fez. Foi à sala e trouxe O'Hara. No pequeno
percurso, foi envenenando:
- O maior génio da criminologia contemporânea vai recebê-lo
mas não conte com o almocinho. Ele não gosta de polícias à
mesa. Tem um raio de um feitio... diz que um chui à mesa lhe
faz azia...
Goodwin apontou para o dadeirão vermelho.
- Como está, Wolf - perguntou O'Hara sentando-se e pegando
na perna de pau com duas mãos e colocando-da sobre uma
cadeira à sua direita. Ficou todo torto mas isso era lá com ele.
- Tem cerca de 15 minutos para dizer o que deseja. Depois
tenho afazeres na cozinha.
- Muito bem.
O'Hara preparava-se então para levantar a pála, quando Wolf
deu um berro.
- Alto aí! Deixe esse trapo onde está!
Goodwin, divertidíssimo, sentado à sua secretária, já abrira o
bloco e tomava notas: horas, pessoa, dia, tipo sanguíneo, partido,
calosidades, etc.
- Bem... - disse O'Hara em voz baixa. - Esta visita, Wolf, não é
oficial. A minha ideia é conversar consigo sobre as explosões das
pessoas. Não sei se tem acompanhado o caso...
- Não lhe dou de almoço, mas quer tomar uma cerveja?
- Pode ser.
E Wolf tocou para Fritz, que imadiatamente apareceu com uma
bandeja transportando cervejas e copos.
- Uma cerveja para o senhor O'Hara. Como estão as narcejas?
- Um pouco secas - respondeu Fritz, olhando de lado para O'Hara.
- Não deite manteiga, Fritz. Um pouco apenas de sumo de tomate
com três gotas de piri-piri e de limão.
- Sim, senhor - e saiu.
O'Hara bebeu logo metade da cerveja. Um sôfrego. E, tendo um
guardanapo na bandeja, preferiu limpar a boca com a mão sã.
- Pois Wolf, as pessoas vão explodindo.
Wolf exercitava os beiços para dentro e para fora e parecia tentar
captar os aromáticos odores da cozinha.
- Hum... Tenho lido, mas não posso aconselhá-lo, senhor O'Hara.
- Eu não sou o Cramer nem o Rockfeller.
- Ainda bem para si. Mas, se me permite explicar-lhe, sou um
cultivador de orquídeas que, por vezes, é solicitado a investigar
um ou outro caso... que aceito, se me interessar. Este interesse
representa, também, ter um cliente e um certo aumento da
conta bancária que o Archie Goodwin tanto se esforça por manter
em condições de cumprir com as necessidades desta casa. Logo,
neste caso, para o aconselhar, precisaria de ter um cliente. E
você não é um cliente. Você é um, como se diz? Ajude-me, Archie.
- Um pendura - respondeu ele.
- Um pendura - repetiu Wolf.
- Tem razão, Wolf. Pensei apenas que houvesse uma certa
solidariedade entre aqueles... aqueles que lutam contra o crime...
mas vejo que não há... nem cerveja já há...
Nero Wolf quase sorriu. Voltou a tocar para o Fritz e pediu mais
cerveja. Depois continuou:
- O'Hara. De qualquer modo, sem compromisso e rigorosamente
confidencial, posso adiantar que você está perante um grupo e um
assassino. É um gang organizado e especializado. Aliás, devo
dizer-lhe - e longe de mim a intenção de ofendê-lo sob o meu
tecto -, que o assunto seria resolvido por mim em precisamente
24 horas.
- Modesto... - rosnou baixinho Goodwin.
- O quê?! - urrou O'Hara.
- É evidente que tem direito absoluto à dúvida. Se me arranjar um
cliente e, repare bem, se eu estiver interessado, resolverei o
problema num dia... tratando à mesma das orquídeas, às horas
para elas estabelecidas.
- Wolf... você é um figurão vaidoso.
Archie baixou a cabeça para não o verem sorrir.
- Não quer mais nada? Nem cerveja?
- Não, Wolf.
- Archie, acompanhe o senhor O'Hara.
Goodwin assim fez.
- Para onde lhe envio a prenda?
- Não me foda...
Goodwin despediu-se cordatamente de O'Hara, colocando o fecho
de segurança e voltou para o gabinete de trabalho.
Revolveu os apontamentos. Abriu e fechou as gavetas. Destapou e
tapou a máquina de escrever. Abriu o cofre e voltou a fechá-lo.
Levantou o telefone e pousou-o de novo.
- Diga... - ordenou Wolf com ar cansado.
- Ninguém duvida de que, quando quer trabalhar, o que, aqui
para nós é raro, consegue ter esse intelecto pronto a resolver os
problemas...
- Temos algum cliente?
- Não, senhor, mas...
- Então vou ver como está o almoço.
-------
(do livro com o mesmo nome, de Ed B. Silverman)

Wednesday, February 15, 2006

15. O Farol

- Quando é que é a minha vez, mãe?- Perguntou o miúdo
com alguma ansiedade.
- A próxima.
E arrumou os pratos no armário de madeira com portas de
rede. O miúdo ficou a olhar para o fogo e a imaginar a sua
futura aventura se não mesmo glória.
O pai chegou, entrou, fechou a porta e encaminhou-se para o
fogo, sem nada dizer. Bateu com as sapatorras no chão. Soprou
nas mãos geladas. Olhou para a mesa e pediu comida. Foi
então que o miúdo disse:
- Eu sou o próximo.
- Eu sei - disse o pai olhando para o prato da comida que a
mulher lhe punha na mesa.
A torcida do candeeiro a petróleo foi erguida mais um pouco.
Ouvia-se o pai a comer e o fogo também uma a uma as
achas com que era alimentado periodicamente.
***
Há trezentos anos já que Erris Head se chamava Erris Head.
Os seus habitantes viviam da pesca e de algum milho plantado
nos parcos e pedregosos terrenos de Leste. Havia dois moinhos
e algumas espécies animais: porcos, cabritos, coelhos e galinhas.
Nos Invernos agrestes das marés brabas, morriam muitos
pescadores por Erris Head não ter um farol. Zona de escolhos
e de pequenas rochas pontiagudas submersas, os barcos
desfaziam-se antes de entrar naquela pequena reentrância da
costa. Muitos barcos e homens se perdiam e a população, não
o dizendo explicitamente, lastimava mais a perca dos primeiros
que dos segundos - os homens só interessavam à família, mas
os barcos pertenciam à comunidade e fazer um novo levava anos.
Resolveram então construir uma lanterna grande e um farol.
Das terras de Leste carrearam enormes pedras que foram
colocando umas sobre as outras. mesmo na ponta de Erris Head.
Mulheres, homens e crianças ajudaram, entre gritos, pragas e
silêncios. Faltavam cerca de três semanas para a aspereza do
Inverno e o vento já se anunciava com rajadas sacanas,
principalmente durante a noite.
Quando a torre, espécie de menir gigante, ficou pronta, o filho de
McFee, com cerca de catorze anos, levou até lá acima a lâmpada
com óleo de peixe, acendeu-a, desceu e ficaram todos em redor a
olhar para cima. O pai sorriu para o filho.
Pelos desentendimentos do destino, o Inverno começou três
semanas mais cedo e, nessa mesma noite, a lâmpada apagou-se
e caiu, bem como se desmoronou todo aquele menir tão
laboriosamente construído.
Na semana seguinte todos repetiram as mesmas operações,
os mesmos gritos, as mesmas imprecações e os mesmos sorrisos.
No domingo, ao final do dia, o aglomerado de pedras e a enorme
e amolgada lâmpada marcavam novamente presença útil na
pontinha de Erris Head. E todos acenaram de satisfação com a
cabeça pela grande obra realizada.
Que durou três dias.
Ventos fortíssimos e ondas de oito metros varreram, na terceira
madrugada, Erris Head e o menir gigante mais a lâmpada
condizente se destroçaram e, por infeliz acaso, um barco
desfez-se nos rochedos e dois dos cinco homens que nele iam
morreram - pelo menos desapareceram, pois mais ninguém os
viu. No Purgatório deveriam estar, pois eram maus, brutos e
gananciosos, segundo afirmava aquele povo que era mau, bruto
e ganancioso.
***
Reunidos na taverna decidiram então que não seriam mais
utilizadas pedras e que tudo se resolveria com um pouco de
sacrifício e de boa-vontade.
Com a concordância geral, todas as noites "o farol" seria formado
por rapazes dos oito aos catorze anos, os mais velhos em baixo,
os mais novos em cima, o último dos quais segurava a lâmpada
assente sobre a cabeça de um deles. Assim ficavam desde o
entardecer ao alvorecer e era já uma honra pertencer ao grupo
do farol.
Por vezes, em noites bravias, desfazia-se parte da pirâmide
humana, mas logo se recompunha. As ondas vinham e
açoitavam-nos. O frio gelava-os. O vento abanava-os, mas a sua
determinação e honra alicerçavam o farol, para que este marcasse
presença acautelar nas noites frias, brumosas ou tempestuosas
de Inverno.
Algumas crianças morriam todos os Invernos de hipotermia,
outras de pneumonia, mas nunca mais se perdeu um barco.
(do livro Scrabble)

Tuesday, February 14, 2006

14. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

10.
O'Hara olhou pensativamente para o seu motorista, um
agente há pouco saído das rondas nocturnas.
- Pr'á onde, Chefe? - Perguntou o há pouco saído das
rondas nocturnas.
- Olha, vamos para a Park Avenue e depois paras mesmo
à porta do Waldorf, só para chatear.
- Waldorf?! Recebeu uma herança, Chefe?
- Põe-te a caminho, se não quem te dá uma boa herança,
que nunca mais esquecerás, sou eu.
E lá partiram os dois a mirarem-se pelo rectrovisor.
O porteiro olhou desconfiado para a primeira coisa que saiu
do carro: a perna de pau, esticadinha, firme e tudo. Quando ia
a reclamar, ouviu uma voz grave e profunda murmurar:
- Cala-te Jack. Vai para a casota e rói um osso.
Com a dignidade da farda e do posto, o porteiro responde,
solene, qual guarda da rainha, em Londres:
- Muito bom dia, Excelência. Os aposentos reais aguardam
Vossa Excelência. É a suite cor-de-rosa.
- E se fosses levar no cu?
- As sugestões da Polícia são, por vezes, difíceis de cumprir.
Mas, quando Vossa Excelência for para a colina da saudade,
com um pé para a frente, já que o outro é de madeira, levar-
-lhe-ei crisântemos e uma saudação final.
O'Hara deixou passar tanta indignidade, insulto e ironia e
entrou no hotel mancando, obviamente.
Na recepção foi simples: mostrou a carteira com o crachat
e a identificação e perguntou o número da suite. Informaram-
-no logo, logo. O'Hara tinha a pála levantada.
No elevador, o ascensorista de serviço tentava olhar para
o tecto ou para o chão, mas não, não conseguia tirar a vista
daquela órbita vermelha, que parecia o cu de um macaco velho.
Ao primeiro batimento, George abriu a porta.
- Chamo-me O'Hara e sou da Polícia. O velhote pode receber-
-me? Preciso de falar com ele.
George detestava os Estados Unidos e a sua falta de respeito
pelos verdadeiros valores hierárquicos. Por isso replicou em
tom baixo e frio:
- O senhor Hercule Poirot é uma pessoa idosa, não é um
"velhote". Mas... tentarei ver se o poderá receber. Faça o favor
de entrar e de se sentar... - e, olhando para a perna de pau,
acrescentou: - se puder...
Com exagerada dignidade, George dirigiu-se para a segunda
sala da suite alugada por Poirot. Fechou cuidadosamente a meia
porta de comunicação, enquanto mirava, de lado, o perneta.
Poirot escrevia pacientemente, cofiando ocasionalmente o
bigode. Sobre a secratária, fumegante, uma chávena de chocolate
olhava para ele, com significativo tédio.
- O'Hara? Não conheço. Irlandês, talvez...
- Se me permite, senhor...
- Diga, George.
- O senhor que está lá fora não é um cavalheiro.
- Ah! É, como se diz, um... travesti...
- Não, não. É um homem... mas não é um cavalheiro.
- Bien... quer dizer, George, que é da Polícia? Então tenho a
obrigação de o receber.
George, patenteando bem o seu desagrado, retirou-se, para
logo introduzir o visitante.
Hercule Poirot levantou-se para o receber e indicou, com
um gesto amplo, um cadeirão, em frente da sua secretária.
- Queira sentar-se, senhor...
- O'Hara, Chefe da Brigada de Homicídios.
- Faça o favor de dizer.
- Bem. Soube que estava em Nova Iorque e gostaria de
trocar algumas impressões consigo sobre um caso...
- Como deve saber, já me reformei há alguns anos e...
mon chèr ami, vim aos Estados Unidos efectuar vinte
conferências sobre tema bem diferente da criminologia.
- Ah!
- Partirei amanhã para Ohio, onde pronunciarei a
segunda conferência, sob o tema aliciante de "a influência
dos sufixos xé e xinho na civilização assírio-caldaica".
- Muito interessante, mas...
Como sabe, na linguagem corrente, digamos a não
erudita, não cultivada, descobrimos, nos seus pormenores,
verdadeiras pistas culturais. Assim, quando dizemos...
- Desculpe, senhor Poirot, mas tenho quase os minutos
contados e, como não está receptivo a uma consulta, retiro-
-me, OK?
- Un moment. De qualquer modo, sempre gostaria de o
ouvir. É o mínimo que posso fazer por um... bien... confrade.
- Obrigado.
- Et bien...
Por certo já leu alguma coisa sobre as explosões...
- Mais oui! Oui! e não sei onde o homem chegará com
bombas cada vez mais fortes, mais potentes, mais...
- Não estou a falar dessas bombas, mas sim de pessoas
que explodem. Pum! Já está. Explodiu. Tudo em bocadinhos
pequeninos...
- Ah oui! Li uma reportagem ontem num dos vossos
enfadonhos jornais. Muito interessante... quando li,
lembrei-me imediatamente daquele caso das "pílulas
digestivas"... já foi há vinte anos, pardon, vinte e cinco anos.
O assassino oferecia uma pílula digestiva à vítima, após uma
lauta refeição e, horas mais tarde, quando ela fazia um
gesto brusco, caiam-lhe as duas mãos ou... bien, se fosse um
homem, os órgãos sexuais.
- E se fosse mulher?
- Os seios. Muito interessante.
- Nunca ouvi falar dessas pílulas... nem nesse caso mas,
na verdade, há uma certa analogia.
- E agora, que já tem os crimes solucionados, agradecia
que me deixasse continuar a preparar a minha segunda
conferência.
- Os crimes solucionados?!!! Qual solucionados?!!!
- Agradeço-lhe, senhor O'Hara, que não grite.
- Desculpe lá.
- Bien. Já sabe como as pessoas podem ser levadas, bem
contra sua vontade, a explodir; procure os químicos que
preparam as pílulas... ou os líquidos. É fácil, como vê.
- Eu... eu... bem... está bem... muito obrigado... até
breve... adeus...
- Muito bom dia, senhor O'Hara e não se esqueça.
- Esquecer?! Esquecer de quê, senhor Poirot?
- Cherchez la femme.

Sunday, February 12, 2006

13. A mulher com um olho de vidro (cont.)

9.
Uma hora mais tarde, entrou pesadamente no seu gabinete
o Inspector-Chefe Rockfeller. Apresentava nessa manhã um
estranho ar. Camisa aberta, gravata fora do sítio, barba por
fazer. Parecia que tinha dormido vestido, tapando-se com um
guarda-fato. Na mão esquerda, uma ponta de cigarro
amachucada.
- Entre.
- Bom dia, patrão.
- Bom dia, Bone. Trate-me por inspector.
- Muito bem, inspector.
- Tem aí um fósforo?
E acendeu a beata.
- Então o instector já não gosta de cachimbo?
- Não. Dá-me cabo dos dentes.
- É verdade, é. Olhe, a minha avó, que fumava cachimbo de
loiça, um dia...
- Olhe, Bone. Mais uma explosão. Um tipo chamado Hamlet,
colaborador de uma firma de importações e de exportações, a
Tom & Jerry, Killers. Gente séria.
- Ouvi o noticiário. Vim mais cedo por causa disso. Poderia
precisar de mim. A Brigada, que foi para o local, ainda não
regressou. Telefonaram apenas a pedir pinças e saquinhos de
plástico.
- Hum... Que pensa destes casos, Bone, destas explosões?
- Vamos ver. E sentou-se, sem prévia permissão, o que
parece não ter incomodado o Inspector-Chefe Timoteo
Rockfeller.
- Dê-me outro fósforo.
- Pode ficar com a carteira. Tenho mais na minha secretária.
- Não, não. É sua. Quando precisar, peço-lhe.
- Tá bem, inspector. Quanto ao caso, vejamos pelo ângulo das
vítimas. A primeira era um visitante búlgaro que, além de fazer
contrabando de cassetes vídeo, estava ligado a certos segredos
especiais e aos raios lazer.
- Até aí sei eu.
- É só para fazer uma revisão da matéria de facto.
- Continue, Bone. Vai muito bem.
- A segunda, um detective particular pouco conhecido, meio
apanhado da cuca, que parecia andar à cata de qualquer coisa.
Há testemunhas que o viram a seguir esse Gustav. Até ao
momento, não sabemos quem era o cliente do detective.
- Nem iremos saber.
- Pois não. Bem... até aqui as coisas rimam, têm uma certa
lógica. Mas a explosão deste Hamlet não entra no puzzle. Só se...
- Só se.... o quê?
- Talvez tivesse sido um erro ou... uma experiência.
- Onde estava esse Hamlet ontem à noite, digamos entre as
vinte e as vinte e quatro horas?
- Não se sabe. Quando vier o Chefe O'Hara teremos mais
qualquer coisa, não acha?
Neste momento tocou o telefone. O Inspector atendeu.
- Rockfeller. Muito bem. Venha até aqui. - E desligou, tentando
entortar o olho esquerdo, como vira fazer ao detective televisivo.
- Dê-me um fósforo, Bone.
- Acabaram-se. Eu vou buscar mais carteiras.
- Não é preciso. Entre! Entre O'Hara.
O Chefe da Brigada de Homicídios, Eugene O'Hara era um
possante descendente de irlandeses e, obviamente, um seu
antepassado fora grumete do "Mayflower" ou, talvez até,
ajudante de timoneiro.
O'Hara possuía uma vigorosa perna de pau, resultado final
de uma bala e depois ferida gangrenada, e ainda uma mão
metálica, enluvada a cabedal preto. Uma pála na vista esquerda
completava a figura descuidada do simpático detective.
O'Hara sentou-se e colocou cuidadosamente a perna de pau
sobre a secretária de Rockfeller. Em seguida levantou a pála e
mirou os circunstantes com uma vermelha e repelente cama ocular,
o que os obrigou, repugnados, a desviar a vista.
E começou a falar, com um timbre idêntico ao de Boris Christoff.
- Uma porcaria aquilo tudo! Não há nada como um estrangula-
mento. Muito mais asseado. Muito mais higiénico. Sim, tá bem, ficam
os olhos esbugalhados e a língua de fora, rôxa e tudo, mas sempre é
mais limpo que isto. Tudo borrado e um cheiro a fossa, que até agonia
os piolhos da cabeça.
- Tem um fósforo, O'Hara? Obrigado. Agora dê-me os factos, antes
de fazer o relatório.
- Bem... o gajo explodiu e não há hipótese de autópsia. Não ficámos a
saber o que tinha no estômago ou nos intestinos. Nada. Pelos noticiários
já sabem o principal. A cabine do elevador foi para o caneco e há dois
tipos feridos. Um levou com uma dentadura num olho e uma velha ia
matando um puto de dez anos com uma cabeçada. Está nos cuidados
intensivos.
- A velha?
- Não, o puto.
E, ao dizer isto, baixou a pála, talvez por causa do frio que vinha da
janela. E continuou:
- Tenho o Williams a investigar a vida desse gajo, desse Hamlet. Ah!
A tia já apareceu a pedir o corpo. Qual corpo?! Desfeito em partículas de
meio milímetro. Ainda tentámos com pinças, mas não deu nada que se
visse... nem cem gramas.
- Posso fazer uma pergunta? - Pediu o Bone, olhando para o inspector.
- Pode, mas dê-me primeiro um fósforo. Ah! Você já não tem fósforos.
Obrigado O'Hara. Fale, Bone.
- Chefe O'Hara: já conseguiu saber com quem contactou ontem, e nos
dias anteriores, esse Hamlet? Com quem jantou e coisas assim?
- Meu filho - replicou rápido O'Hara. - Ainda você andava de cueiros
e já eu era sargento. Percebe?! É isso que estamos agora a investigar.
Espalhei vinte agentes pelos dancings de demais antros, com inctruções
para encontrar uma mulher com um olho de vidro.
- Vinte agentes, todas as noites, nos cabarés?! - Explodiu Rockfeller. -
Vai ser uma conta bonita!
- Talvez não. Consultei o ficheiro de todos os nossos homens e escolhi
dois abstémios, um ulcerado duodenal, um hepático e outro com um
princípio de cirrose; e os restantes só bebem cerveja. Distribuí também
recadinhos pelos informadores habituais. Agora é só esperar. Há sempre
uma fase nas investigações em que não há trabalho; é só esperar.
Percebeu, menino Bone?
- Sim, senhor.
- O'Hara, dê-me outro fósforo, por favor.
- Que raio! Você apaga os cigarros de propósito? Já ultrapassou a fase
do cachimbo?!
E assim terminou aquela reunião.
E Rockfeller já conseguia entortar o olho esquerdo.
Impecavelmente.

Friday, February 03, 2006


Miguel














O corpo de Miguel, magro, esquálido, sujo e míseras vestes,
apareceu naquela manhã a dormir na rede do armazém. Comprido
como um espargo silvestre, homem adulto isso via-se, roncava
suavemente quando um dos irmãos abriu a porta do armazém de
peixe. Parecia até que o ronronar do motor que fazia frio para uma
câmara frigorífica, se harmonizava com o respirar profundo do
Miguel.
Teotónio, o irmão mais novo, que rondava meio século de
escamas, peixes, caldeiradas, cervejolas, mariscos e demais
atavios, entreténs e histórias de lobisomens - histórias de árabes,
claro, que estamos agora no Algarve -, quedou-se a olhar para
aquila cena.
Chegou-se à rede, estendida entre duas prateleiras, e olhou
para o figurante, nu da cintura para cima e quase também assim
da cintura para baixo.
E não fez mais nada! Para vagabundo e malandro, malandro e
meio. Pega num remo e vai disto. Porrada no Miguel! Que se
levanta de susto e de pecado, e foge porta fora antes que o remo,
em remada mais valente, lhe acertasse na cabeça ou noutras
partes mais sensíveis. Mas correu pouco, pois do outro lado era o
cais e a água da ria que permitia a entrada de traineiras para a
descarga.
O Miguel berrava e o Teotónio gritava "Vagabundo", quando
chega o Agostinho, o mais velho, e tudo fica claro.
O Miguel aparecera não se sabe de onde, na tarde anterior,
cheio de fome e esfarrapado, andara por ali e por além, carregara
umas tecas, rira sem dentes, mastigara umas coisas fritas e
ficou-se, estafado, sentado à porta do Jaime - nome do
ex-sacristão, actual proprietário da cervejaria Cristal. O pai do
Teotónio e do Agostinho viu, deu-lhe uns dinheiros poucos,
dinheiros de uma só mão, perguntou coisas e depois disse que ele
podia ficar no armazém a dormir. "E passas a trabalhar só para
mim, ouviste? Quando os barcos vierem, só de mim recebes
ordens e... porrada quando a mereceres." Mas, na altura, só o
irmão mais velho soube deste trato.
E aquele beldruegas sem passado, mal falando - esguio, magro
e pobre de espírito -, passou a andar sempre atrás do velho. A
dois metros de distância. E com muita ternura o seguia,
pois mesmo que provocado pelos pescadores, nada dizia - bufafa
com a boca e não despregava os olhos das costas do velho
marítimo.
O Teotónio e o Agostinho também lhe criaram amizade. Uma
vez um deles deu-lhe umas calças mas, no dia seguinte, deixou
de se preocupar em acrescentar uma camisa; as calças estavam
todas rotas e antigas como as primeiras.
Como sempre acontece nas terras pequenas, o Miguel foi o
meio-louco aceite pela população, que o disfrutava mas que
também o acarinhava com palavras e comida.
Um dia o velho morreu e aqui começa outra história. Por
aqui deveríamos ter começado, mas não foi assim que
aconteceu. Paciência.
*
Um dia ouvimos os sinos a badalar e vimos o Miguel a
correr, já de si louco e ainda mais se possível, esbracejando, a
caminho do cemitério. E vimos também as pessoas
afastarem-se para lhe darem caminho, sem risos ou ironia
de olhar ou de gesto. Que teria acontecido ao Miguel?
À noite, o Teotónio contou-nos que o Miguel não podia
ouvir as sinetas do cemitério, quando alguém ia a enterrar.
Corria por ali acima e só parava junto à campa do velho que
lhe dera porrada, abrigo, pão e talvez o único quinhão de
ternura que recebera na vida.
E ali se punha, entre as campas do cemitério. Olhos loucos
atentos, mirando os que entravam e saíam, para que ninguém
pisasse a sepultura do seu amigo. De início, houve umas
tentativas de provocação mas o Miguel, de braço comprido e
alma maior, tais lapadas deu nos catraios que tudo ficou por
bem no futuro.
Onde estivesse, com teca de peixe às costas ou não,
ouvindo as sinetas partia à desfilada e deixava o carrego para
quem o quisesse. Sepultura do velho amigo ninguém pisava.

(do livro Histórias do Arco-da-Velha-1
ilustração de Octávio Clérigo)

Ouvendo...

Não é gralha; é um neologismo para ver e ouvir, que é o que nos
acontece frente à televisão.
Sobre o spot da televisão de que falámos, a RTP já emendou o
erro, retirando o "sento".
Sem querer tirar ao telespectador o prazer de ir descobrindo o
enredo da telenovela "O Segredo", posso adiantar que o seu eixo
é o desaparecimento, da escola primária, quando todos os intérpretes
eram meninos, de uma gramática da língua portuguesa, que se
pensa ter sido levada para o Brasil. Quando, já adultos, reparam que
têm falhas estruturais no idioma pátrio, mandam um enviado
especial ao país irmão para procurar o ladrão e recuperar a obra.
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Thursday, February 02, 2006

12. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

7.
Eram onze da noite quando Maureen, com grande surpresa, ouviu
a campainha da porta. O canal 38 (o "sempre acção"), estava a
transmitir um interessante filme policial, com um detective, um
tenente desleixado, que parecia dormir com a gabardina, sempre sem
fósforos, com os cigarros soltos e amachucados nos bolsos e
ligeiramente estrábico.
- Quem é?
- Hamlet, o justiceiro.
Contrariada, abriu a porta. Mas logo se recompôs.
- Caramba, Hamlet. Há mais de três anos que não te via. Estás a
ficar careca.
E ele entrando:
- Tu, em contrapartida, continuas óptima. Boa, boa como a brisa da
Primavera... o perfume das flores... a elegância das garças.... a...
- Tira as mãos!
- Os gestos das mãos são a ênfase do sentimento, da paixão, da
oratória... e também, por vezes, do ódio.
- Deixa ficar a ênfase sossegadinha, está bem?!
- Mal. Como eu gosto da ênfase!
- Se gostas, guarda-a num cofre. Queres um copo?
- Óbvio, senhora.
Maureen desligou, com mágoa, o televisor e foi à cozinha preparar
dois uísques com gelo.
Beberricaram como velhos amigos.
Voltaram a beberricar como velhos amigos, mas mirando-se.
Maureen ainda queria apanhar o final do filme, por isso atacou:
- Que queres, afinal?
- Recebi uma estranha encomenda: uma gargantilha para ti.
Maureen riu-se, aparentemente deliciada.
- Já vão aí?! - desabafou baixinho. - Já?!
- Pois é.
- E o que dizem os teus patrões?
- Estão fora de cena. Não entram neste acto. Estão nos camarins...
- Tencionas mesmo apagar-me?
- Ainda não sei. Está em jogo o meu crédito junto do clero e da
nobreza. Quanto ao povo, quero que ele se lixe.
Maureen acendeu, com mão firme, dois cigarros, oferecendo um
a Hamlet. Em seguida, fazendo realçar as curvas das ancas, pegou
nos copos e foi enchê-los de novo na cozinha. Hamlet pensava
intensamente.
- Olha, Hamlet - disse Maureen, regressando da cozinha -, dá-me
vinte e quatro horas. Talvez eu decida desaparecer definitivamente.
Se tal acontecer, não haverá o mínimo rasto. Não terás problemas.
Hamlet, de tanto pensar, já tinha dores de cabeça.
Maureen continuou:
- Também tenho uma missão... mas falarei primeiro com os meus
chefes.
- Tu não tens chefes...
- Há alguém que não o tenha? Até os presidentes, até os
secretários-gerais da ONU... até Jesus Cristo...
- E os reis...
- Acaba a bebida e sai. Preciso de pensar e de fazer alguns
telefonemas, como compreenderás.
- Em breves instante se decidem os destinos, como o irregular
voo das andorinhas...
- Pois...
Quando Hamlet saiu, Mareen correu para o televisor e voltou a
ligá-lo. Já estava no fim, com o tenente estrábico a desmascarar
o assassino, um professor universitário que vivia numa piscina,
rodeado de miúdas curvilíneas por todos os lados e mais uma
mansão à volta.

8.
Às oito da manhã do dia seguinte, no elevador que transportava
ao 27º. piso, onde se instalava a firma Tom & Jerry, Killers, Ltd.,
o senhor Hamlet, este explodiu.
Vários passageiros ficaram feridos e o elevador quase totalmente
destruído. Um dos feridos vomitou, provocando um curto-circuito
no selector, que começou a arder. Um outro ferido, distribuidor de
correio, apresentava uma vista empapada em sangue, devido a ter
sido atingido pela placa dentária superior de Hamlet.
Quando levou com a placa no olho direito, largou o saco do
correio que atingiu uma velhinha num pé. Esta, que já estava semi-
morta, caiu para a frente dando uma cabeçada num puto ranhoso
que, antes da explosão, mascava pastilha elástica.
Uma porcaria aquilo tudo.
Um nojo. Trampa e berros por todos os lados.
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Ouvindo...

Passagem de um spot publicitário a uma telenovela chamada
"O Segredo", na RTP1:
- Não te sentes muito só?
- Não sento.
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Wednesday, February 01, 2006

11. Retalho da vida de Yakamoto e de seu filho nº.5

Às seis e meia da manhã, como habitualmente, Yakamoto
saiu de casa e foi preparar o animal e a carroça para ir a
Yokogawa, no distrito de Hiroshima, onde trabalhava a meias
com um cunhado um belo naco de arrosal.
Nesse dia 6 de Agosto de 1945, tal como nos dias anteriores,
depois de ter ordenadamente tratado da carroça e do animal,
reentrou em casa e pegou no quinto filho, de três anos de idade,
Mitsau-Ka, e levou-o ainda embrulhado no cobertor. Levava
sempre o mais pequeno da família para ele se habituar àquela
vida. Yakamoto não sabia se aquela vida era boa ou má. Era a
sua vida; mais nada.
Mas havia também outra razão para levar o seu quinto filho.
Mitsau-Ka, apesar do nome favorecente, nascera com mau
signo. Já tinha sofrido tantos acidentes como um rapaz de
quinze anos. Não pela sua ordem mas ao sabor da memória,
Mitsau-Ka já tinha caído de uma mesa ao chão, já tinha levado
com uma bilha na cabeça, já tinha ficado no meio do fogo que
preparava o jantar, já tinha partido uma perna, os dois braços e
três dedos, já tinha furado um ouvido e cortado parte da língua.
Notavam-se estas cicatrizes pelo seu comportamento. Não dizia
coisa-com-coisa, chamava mãe ao pai e pai ao irmão mais velho,
atirava com a comida à cara dos outros quatro irmãos e era
considerado, em familiar silêncio conivente e de amor, como
doido.
Ia pois com o pai para deixar que aquele pobre lar fosse pobre
sim, mas calmo, pelo menos nas horas de virtude, que são aquelas
em que os homens não se põem a fazer coisas em cima das
mulheres.
A caminho para Yokogawa, o pai deu-lhe a beber um pouco de
chá que trazia numa garrafa. Mitsau-Ka meteu três golos na boca,
bebeu dois e espargiu o outro para a cara do pai. Depois urinou nos
calções e readormeceu.
Acordou, cerca das oito e vinte, quando já estavam a entrar em
Yokogawa, com um enorme clarão que tudo iluminou. Foram
derrubados da carroça com o impacto da explosão. O estrondo, de
violência celeste, veio mais tarde. E foi também mais tarde que
Yakamoto soube que toda a família morrera e que ele e o quinto
filho tinham apanhado cerca de 20% de radiações malignas.
Depois, no hospital, começou a compreender o que isso queria dizer.
Até isto aconteceu a Mitsau-Ka.
(do livro Scrabble)
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