Wednesday, June 01, 2011

A FOME NO MUNDO EXPLICADA A MEU FILHO

O Clube da Histórias, no seu meritório trabalho no projecto "Abrir as portas ao sonho e à reflexão" publicou agora este belo texto que transcrevo com a devida autorização mas, mais que isso, o meu respeito pelo que este "Clube" está a fazer no campo da cultura. Falei em "cultura"? Oh, demónio, espero não ser preso!
Para visitarem este site ou ficar assinalados como bons recebedores, basta estrever "Clube de Histórias".



— Quantas pessoas no mundo estão actualmente ameaçadas de morrer de fome?
— A FAO (Food and Agricultural Organization),Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas, avalia, no seu último relatório, em mais de 30 milhões o número de pessoas que morreram de fome em 1999 e, para o mesmo período, em mais de 828 milhões de seres torturados pela desnutrição grave e permanente. São homens, mulheres e crianças que, devido à falta de alimentos, padecem de lesões frequentemente irreversíveis. Ou morrem num prazo mais ou menos breve, ou vegetam num estado de deficiência grave – cegueira, raquitismo, desenvolvimento precário da capacidade cerebral, etc.
Tomemos o exemplo da cegueira: em cada ano, sete milhões de pessoas, normalmente crianças, perdem a vista, na maioria das vezes por falta de uma alimentação suficiente ou como consequência de enfermidades vinculadas ao subdesenvolvimento. Cento e quarenta e seis milhões de cegos vivem nos países da África, da Ásia e da América Latina. Em 1999, Gore Brundtland, directora da Organização Mundial da Saúde, ao apresentar o seu plano “Visão 2020” em Genebra, disse: Oitenta por cento dos afectados na vista seriam perfeitamente evitáveis. Sobretudo por meio de uma dose regular de vitamina A para as crianças pequenas. Em 1990, havia 822 milhões de pessoas severamente afectadas pelo flagelo da fome. Podemos ler de duas maneiras estas estatísticas. Primeira leitura: as vítimas da subalimentação aumentam s em cessar no mundo, especialmente nos países do Sul; mas se comparamos os mártires do flagelo da fome com a progressão demográfica da população mundial, constatamos um ligeiro retrocesso. Em 1990, 20% da humanidade sofria de subalimentação extrema; oito anos depois, “só” 19%.
— Onde vivem as pessoas mais gravemente subalimentadas?
— No sul e leste da Ásia, 18% dos homens, mulheres e crianças, padecem de uma severa desnutrição. Na África, o seu número alcança 35% da população continental. Na América Latina e no Caribe, 14%. As três quartas partes dos “gravemente subalimentados” do planeta são gente do campo; a outra quarta parte são habitantes das periferias que se amontoam em torno das metrópoles do Terceiro Mundo.
— A nossa Terra poderia alimentar convenientemente em cada dia todos os seus habitantes?
— Não só isso, mas poderia alimentar pelo menos o dobro da população mundial actual. Hoje em dia somos quase seis biliões de seres humanos na Terra. Há mais de quinze anos, a FAO elaborou um relatório no qual assinalava que o mundo, no estado actual das forças de produção agrícola, poderia alimentar sem problema mais de doze biliões de seres humanos. Alimentar quer dizer fornecer a cada homem, mulher e criança uma ração equivalente a 2.400 ou 2.700 calorias diárias, uma vez que as necessidades alimentares variam segundo os indivíduos, em função do trabalho que realizam e das zonas climáticas onde vivem.
— O flagelo da fome não é então uma fatalidade?
— De modo algum. Se a distribuição de alimentos na Terra fosse justa, haveria comida suficiente para todo o mundo.
— Por que razão nunca ninguém nos fala na escola da fome no mundo e das pessoas que a provocam e daquelas que a combatem?
— Para mim, isso também é um mistério. Muitos professores de institutos e de escolas são pessoas abertas, generosas e estão profundamente solidarizadas com a luta dos povos do Terceiro Mundo. Muitos deles alertam os seus alunos quando se declara uma fome grave e promovem-se colectas públicas. No entanto, não sei de nenhuma escola onde o tema da fome, que mata todos os dias mais gente do que todas as guerras do planeta juntas, figure no seu programa. Não existe nenhum tipo de ensino onde se analise, se discuta o problema da fome, se examinem as suas raízes e os meios de lhe dar um fim.
Mas os técnicos internacionais dizem as coisas bem claras. Ouça, por exemplo, esta frase que é a conclusão de um relatório da FAO de 1998: Recent trends give no room for complacency as progress in some regions has been more than offset by a deterioration in others[1]. Isto quer dizer que as batalhas ganhas numa frente são imediatamente anuladas pelas derrotas sofridas noutra. Os bons sentimentos não bastam, são um luxo para os filhos dos ricos. A calamidade da fome manifesta-se de mil maneiras. O seu aparecimento e os seus efeitos exigem análises precisas e pormenorizadas. Mas a escola não diz nada, não cumpre a sua função. Os adolescentes frequentemente saem dela cheios de bo ns sentimentos e de uma vaga convicção de solidariedade, mas nunca com um verdadeiro conhecimento, uma clara consciência das origens e dos estragos da fome.
— Como se a fome fosse um tabu?
— Exactamente. Um tabu que dura há muito tempo. Já em 1952 o brasileiro Josué de Castro dedicava todo um capítulo do seu célebre livro Geopolítica da fome a esse “tabu da fome”. A sua explicação é interessante: as pessoas sentem-se tão envergonhadas por saber que uma grande parte dos seus semelhantes morre por falta de alimento que ocultam o escândalo com um espesso silêncio. Esta vergonha é compartilhada pela escola, pelos governos e pela maioria de nós.
O nível de alimentação está em relação directa com o nível de bem-estar e com o nível de saúde das pessoas. Por um lado, onde não se come o suficiente, encontramos pobreza, miséria, desnutrição, doença, fome e morte. Por outro, no extremo oposto, onde há meios de subsistência e alimentos, encontramos esperança desde o nascimento, saúde e vida.
Já no ventre da mãe, o bebé sofre as consequências desta desigualdade, inclusivamente na constituição de seu intelecto. A desnutrição da mãe durante a gestação — quando o bebé deve desenvolver o conjunto de células que o constituirão como um ser dotado de todas as suas faculdades — diminui as possibilidades de que a criança nasça, pois a placenta — alimento, água, oxigénio e anticorpos do bebé instalado no útero — não escapa aos danos causados pelas carências de alimentação. A mãe deve nutrir-se convenientemente desde a formação do embrião. A constituição física e intelectual da criança, a sua capacidade de desenvolvimento e a sua força para o trabalho também dependem da alimentação que vai receber desde o momento do seu nascimento. A criança chega ao mundo num ambiente condicionado: ou com muitos privilégios ou com muitas privações. Nos primeiros anos da história da humanidade, o mundo era aquele em que o macho mais forte se apropriava da comida da qual necessitavam a mulher e a criança. Hoje, a história não mudou em absoluto, porque os poderosos continuam a apropriar-se da comida.
— Por quê esses esqueletos da fome? Por quê esse martírio quotidiano, interminável, para tantas centenas de milhões de seres humanos?
— A causa principal das hecatombes por subalimentação e por fome aguda é a desigual distribuição das riquezas do nosso planeta. Esta desigualdade é negativamente dinâmica: os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Em 1960, 20% dos habitantes mais ricos do mundo desfrutavam de uma renda 31 vezes superior à dos 20% mais pobres. Em 1998, o rendimento dos 20% mais ricos é 83 vezes superior à dos 20% mais pobres. A concentração do rendimento e das riquezas nas mãos de uns poucos progride a grande velocidade.
O conceito de desigualdade soa-nos irreal e o seu significado é insuficiente. O termo aparece num mundo que já não se assusta com as estatísticas. As cifras acima referidas escondem uma realidade de sofrimento e de desespero. A desigualdade negativamente dinâmica que rege a ordem actual do mundo produz a seguinte situação: por um lado, um poder político, económico, ideológico, científico e militar sem limites identificáveis, exercido por uma escassa oligarquia transnacional; por outro, a falta de vida, o desespero e o flagelo da fome vividos por centenas de milhões de seres anónimos. A oligarquia decide o destino da multidão. A massa de vítimas anónimas padece, impotente, a sua própria agonia. Só a brutal imbecilidade de um regime de classes sociais existentes antes do seu nascimento, de ideologias discriminatórias , de privilégios defendidos pela violência explica a desigualdade entre os seres humanos.
A política deve velar para que todos possam saciar a fome. Seria horrível tomarmos como natural o facto de todos os anos morrerem dezenas de milhões de pessoas por causa da subalimentação crónica e da fome aguda. A fatalidade não preside à ordem mortal do mundo. Basta lembrar que, no actual estado das forças produtivas agrícolas, seria possível alimentar sem problemas doze mil milhões de pessoas. Alimentar significa proporcionar a cada indivíduo 2.600 calorias por dia. A população actual do mundo chega a menos de seis mil milhões de pessoas.
Conclusão: estamos diante de uma falta contingente e não de uma falta objectiva de alimentos. Por outras palavras, o problema da grave fome no mundo é um problema social. As centenas de milhões de pessoas que morrem todos os anos de subalimentação aguda morrem por causa da injusta distribuição de alimentos disponíveis no planeta. A Acção contra a Fome, organização não-governamental (ONG), de um compromisso exemplar, constata que “um grande número de pobres no mundo carece do alimento necessário, na medida em que a produção alimentar se ajusta à demanda solvente” Quem tem dinheiro, come. Quem não tem, morre lentamente de fome. Trata-se portanto de civilizar o actual jugo do capitalismo selvagem. A economia mundial é fruto da produção, distribuição, intercâmbio e consumo de alimentos. Afirmar a autonomia da ec onomia em relação à fome é absurdo ou, pior ainda, é um crime. Não se pode abandonar a luta contra essa catástrofe ao livre jogo do mercado. Todos os mecanismos da economia mundial devem submeter-se a este imperativo primordial: vencer a fome, alimentar convenientemente todos os habitantes do planeta. Para impor este imperativo é preciso criar uma estrutura jurídica internacional, apoiada em tratados e normas. Jean-Jacques Rousseau escreveu: “Entre o fraco e o forte, é a liberdade que oprime e a lei que liberta”. A liberdade total do mercado é um sinónimo de opressão; a lei é a primeira garantia da justiça social.
O mercado mundial necessita de normas e de uma restrição imposta pela vontade colectiva dos povos. A luta contra a maximização do lucro como única motivação dos protagonistas que dominam o mercado e a luta contra a aceitação passiva da miséria são imperativos urgentes. É preciso fechar a Bolsa das matérias-primas agrícolas de Chicago, combater a deterioração constante das relações de intercâmbio e acabar com a estúpida ideologia neo-liberal que deslumbra a maioria dos governos dos países ocidentais. O ser humano é o único vertebrado que pode sentir na sua consciência o sofrimento do outro. Será que a constituição de uma consciência da identidade, da solidariedade radical com aquele que sofre se infere de um projecto utópico? Não. No decurso da história já ocorreram alguns saltos qualitativos análogos. Por exemplo, o nascimento do Estado. Numa época remota, os humanos fizeram uma escolha fundamental: até então, a solidariedade, a identificação com o outro limitavam-se à família, ao clã, em consequência, àqueles cujo rosto era conhecido e cuja presença física era sensível.
Com o nascimento da nação e do Estado, o ser humano fez-se pela primeira vez solidário com aqueles que não conhecia e com os que provavelmente nunca encontraria. Acabava de nascer um sentimento de identidade nacional, algumas instituições de solidariedade, uma consciência supra-familiar, uma lei comum. A única identidade humana válida é a que nasce do encontro real ou imaginário com os outros, do acto de solidariedade. Não pode haver um mundo dentro do mundo, uma inserção de bem-estar num mundo de dor. É inaceitável uma economia mundial que relega para o não-ser a sexta parte da humanidade. Se o flagelo da fome não desaparecer rapidamente do nosso planeta, não haverá humanidade possível. Portanto, é preciso reintegrar na humanidade essa “fracção sofredora”, que hoje está excluída e perece na noite.

Jean Ziegler
A Fome no Mundo Explicada a Meu Filho
Petrópolis, Editora Vozes, 2002
(Excertos adaptados)

Sunday, May 15, 2011

TERRAS DO SEM FIM

"Era uma vez três irmãs: Maria, Lúcia, Violeta, unidas nas correrias, unidas nas gargalhadas Lúcia, a das negras tranças; Violeta, a dos olhos mortos; Maria, a mais moça das três. Era uma vez três irmãs, unidas no seu destino.
Cortaram as tranças de Lúcia, cresceram seus seios redondos, suas coxas como colunas, morenas, cor de canela. Veio o patrão e a levou. Leito de cedro e penas, travesseiro, cobertores. Era uma vez três irmãs.
Violeta abriu os olhos. seus seios eram pontudos, grandes nádegas em flor, ondas no caminhar. Veio o feitor e a levou. Cama de ferro e de crina, lençois e a Virgem Maria. Era uma vez três irmãs.
Maria, a mais moça das três, de seios bem pequeninos, de ventre liso e macio. Veio o patrão, não a quis. Veio o feitor, não a levou. Por último veio Pedro, trabalhador da fazenda. Cama de couro de vaca, sem lençol, sem cobertor, nem de cedro, nem de penas. Maria com seu amor.
Era uma vez três irmás: Maria, Lúcia, Violeta, unidas nas gargalhadas, unidas nas correrias. Lúcia com seu patrão, Violeta com seu feitor e Maria com seu amor. Era uma vez três irmãs. diversas no seu destino.
Cresceram as tranças de Lúcia, caíram seus seios redondos, suas coxas como colunas, marcadas de roxas marcas. Num auto pela estrada cadê o patrão que se foi? Levou a cama de cedro, travesseiros, cobertores. Era uma vez três irmãs.
Fechou os olhos Violeta com medo de olhar em torno; seus seios bambos de pele, um filho pra amamentar. No seu cavalo alazão, o feitor partiu um dia. nunca mais há-de voltar. Cama de ferro se foi. Era uma vez três irmãs.
Maria, a mais moça das três, foi com seu homem pró campo, prás plantações de cacau. Voltou do campo, era a mais velha das três. Pedro partiu urn dia, não era patrão nem feitor. partiu num pobre caixão, deixou a cama de couro e Maria sem seu amor. Era uma vez três irmãs.
Cadê as tranças de Lucia, os seios de Violeca, cadê o amor de Maria?
Era uma vez três irmãs numa casa de putas pobres. Unidas no sofrimento, unidas no desespero, Maria, Lúcia, Violeta, unidas no seu destino."



in Terras do Sem Fim, Jorge Amado
(Edição Livros do Brasil).

Sunday, April 17, 2011

VIDA DE CÃO

Quando cheguei à Cooperativa, estava a cadelinha encostada a uma das paredes, a apanhar o belo sol desta Primavera prematura. Estava a cumprimentá-la quando entrou um grupo de cinco crianças, rapazes e raparigas, dos oito aos dez, cheio de ânimo e alegria para matar o tempo neste período de férias. Uma delas perguntou: “- Já viram os bebés dela?”, e foram todas para um monte de tábuas languidamente a repousar junto ao muro.
Entrei, fiz as compras e, quando saí, estava a criançada sentada nas tábuas com os cachorros ao colo, fazendo-lhes festas, sob a vigilância bem-disposta da cadelinha. Estavam todos felizes, portanto.
Quando voltei à Cooperativa no dia seguinte, pois tinha-me esquecido dos alhos para a sopa Juliana, vi a cadela encostada no mesmo sítio da parede, mas a chorar. A chorar mesmo: com lágrimas nos olhos. Entrei e soube, pela empregada, que tinham feito a barbaridade de lhe tirar os cães todos ao mesmo tempo. As duas senhoras da Coop estavam indignadas. As duas eram mães e compreendiam melhor.
Quando saí, fiz festas à bicha e lembrei-me do estafado pensamento de Pitigrilli (“Quanto mais conheço os homens mais gosto dos cães”) mas, na verdade, gosto cada vez menos dos homens, principalmente dos governantes, não só de Portugal mas de todo o mundo.
A.B.M.

Wednesday, April 13, 2011

UM NOBRE PLEBEU

Estou envergonhado com a minha credulidade. Fiquei este tempo todo sem escrever e foi, na verdade, por vergonha. Vergonha de ter acreditado na pessoa e nas suas intenções. Afinal o apelido não corresponde ao comportamento da pessoa. Como pude ser tão ingénuo!
Companheiros e amigos: espero que me perdoem e também espero que me sirva de exemplo.

Friday, January 07, 2011