Monday, April 07, 2008

LAVAGANTE - de José Cardoso Pires - Ed. Nelson de Matos

Com a devida vénia, transcrevemos hoje a crónica de Fernando Paulouro das Neves no "Jornal do Fundão", sob o título "Agora, José!"

NÃO foi sem um frémito de emoção que fui à leitura das páginas de José Cardoso Pires (Lavagante – encontro desabitado) que o editor Nelson de Matos, amigo do autor, retirou do esquecimento para nos oferecer como breve compensação da ausência de dez anos que já levamos do grande criador de O Delfim e de tantas outras inesquecíveis obras de ficção. À distância do tempo, e quando o lemos, mais se grava a compreensão de que poucos escritores marcaram, como Cardoso Pires o fez, o ofício de uma escrita moderna, depurada na exigência da palavra certa e definitiva, que por isso se torna luminosa, avessa a tudo aquilo que é espúrio ao chão verbal da realidade que se transfigura na narrativa ficcional. Esse fascínio, que percorre toda a estrutura formal do acto literário de Cardoso Pires, tantas vezes cinematográfico pelo pulsar dinâmico da narrativa, que faz o leitor mergulhar na densidade dramática do texto, é um contributo de modernidade que o autor de Balada da Praia dos Cães trouxe a uma ficção tradicionalmente enredada em naturalismos paroquiais, ainda que às vezes disfarçados de arcaísmos líricos, ou em propósitos documentais que nem sempre escapam à contingência do panfleto. Em José Cardoso Pires, tudo é diferente. No lavrar fundo da palavra adivinha-se o drama existencial da procura essencial, até ao osso, desse Portugal que a poesia de Alexandre O’Neill configura na denúncia de um tempo vivido ao contrário dos ponteiros do relógio da história, ou no trabalho oficinal, à volta do texto, sempre na procura de uma dimensão criadora que foi também angústia de autores como Aquilino ou Carlos de Oliveira. José Cardoso Pires percorreu essa aventura como um compromisso permanente. E essa inquietação primordial, comum ao acto da sua escrita, é a sua grande modernidade. É estranho, por isso, que nestes dez anos se tenha abatido sobre a sua obra tanto silêncio. O facto da obra de Cardoso Pires tipificar, com grande argúcia e sobriedade, persistências ideológicas de cariz reaccionário e, ao mesmo tempo, reflectir tão fundamente sobre a realidade portuguesa – nos seus tiques de bafienta sacristia ou de provincianismo urbano envernizado pelo convencionalismo – o que a torna incómoda, contribuirá decerto para o assassinato do silêncio. Lavagante encontro desabitado é uma pedrada nesse esquecimento e, só por isso, devemos estar gratos a Nelson de Matos. A narrativa, cuja versão final Cardoso Pires não chegou a dar à estampa – é um belíssimo reencontro com a arte de contar uma história, como só ele sabia fazer. Ainda por cima com aquela dimensão simbólica da parábola (a alusão à vida dos lavagantes e de como eles alimentam as presas conduzindo-as ao destino de uma prisão dourada, para as devorar depois, é notável) que em Cardoso Pires é um recurso de significado excepcional em muitas obras escritas, como esta, antes do 25 de Abril! A própria história, a prisão do amigo político, a figura do Sapo, a duplicidade de Cecília, ligando-se ao repressor do amante para salvá-lo (“mas eu não podia suportar por mais tempo a ideia de estares fechado numa prisão, tu que tanto gostas de viver”) o quotidiano sórdido da comarca portuguesa com vidinha entre grades. A descrição de Lisboa a seguir a um Primeiro de Maio sangrento, é magistral: “Mas nesse dia 2 de Maio, a multidão da Baixa andava aos céus e às águas luminosas do Tejo: olhava as fachadas dos edifícios salpicados de balas; operários dos subúrbios e casais de vida repousada desceram, curiosos, dos seus bairros para visitarem as ruas onde se tinham dado os motins da véspera”. Leio e releio as páginas. É o meu velho Cardoso Pires a bater-me à porta da memória. Evoco a sua enorme coragem cívica, o seu compromisso de sempre com a Liberdade. Olho para antigamente, recordo conversas e palavras que ficaram para sempre. Vou à procura delas. Num dos seus últimos textos, escrito por sinal nestas páginas. Cardoso Pires despedia-se de José Rabaça e dizia: “Saudades de mim”. É o que eu agora sinto ao regressar ao pulsar criador do meu Amigo José.