Saturday, August 16, 2008

O SAXOFONISTA

Se ler esta estorinha até ao fim, escolha o final e mande-me dizer.


O Cláudio trabalhava numa firma de distribuição de correio e de encomendas mas sempre que tinha um tempinho livre, ia com o seu saxofone para o pé do Joelzinho, um mendigo do bairro, andrajoso e com as pernas torcidas como se as tivessem partido quando estava numa posição do Yoga. O Joelzinho era muito estimado no bairro mas Cláudio, por ser pobre, pouco o podia ajudar. Ele sentava-se ao pé de uma grande árvore e estendia a mão.
O saxofonista amador punha-se então sentado a seu lado, num tronco horizontal da árvore e tocava. Nesses dias a receita do Joelzinho subia em flecha. Não podia era ser em todos.
Uma tarde de dueto – um pedia e o outro tocava -, disse o Joelzinho:
- Você, Cláudio, não pode tocar outras coisas?
- Não gosta do meu reportório?
- Não é isso.
- Então o que é?
- Está aqui um gajo, todo empenado, que só ouve do ouvido esquerdo, e você senta-se ao lado desse ouvido e toca invariavelmente as mesmas coisas… podia, ao menos, tocar do lado do outro…ou mudar de reportório…
Cláudio pensou, olhando para o instrumento. Depois disse:
- Eu já toquei o concerto para saxofone e orquestra de Aaron Copland, nos bons tempos…
- Você desculpe-me, Cláudio, mas o Aaron Copland nunca escreveu um concerto para saxofone e orquestra.
- Como é que você sabe, Joelzinho?
- Eu fui professor de música.
- Foi professor de música?!
- Não foi bem de música… fui professor de História da Música…
- Você foi professor de História da Música e está aqui a pedir esmola?!
O saxofone também olhou, admirado.
- É.
- Conte lá, puxa! Como é que você chegou até aqui.
- É simpático da sua parte não dizer “desceu até aqui”. Mas o caso ou acaso é que…
Meteu a mão no esfarrapado casaco e tirou uma pastilha de mentol. Com a mão boa, desembrulhou-a e meteu-a na boca. Chupou um bocadinho e contou:
- Dava aulas e apaixonei-me por uma aluna muito mais nova. Gabriela. Foi uma paixão doida. Passámos a viver juntos e éramos muito felizes. Depois tive um acidente de viação. Fiquei todo quebrado e ela morreu. Levei seis meses no hospital para recuperar… recuperar isto que você vê. Mas tive logo que fugir no dia da alta do hospital pois o pai da Gabriela queria matar-me. Não o podia fazer enquanto eu estava rodeado de médicos, enfermeiros e seguranças. Mas depois podia. O hospital está a mais de mil e quinhentos quilómetros daqui. Vim com o dinheiro do seguro que logo acabou.
- Essa é obra, amigo! Há quanto tempo foi isso? O desastre.
- Há oito anos, 4 meses e seis dias.
- E a culpa foi sua?
- Foi de ambos. Estávamo-nos a beijar.
- Áh!
- Sei que ele tem vindo atrás do meu rasto. Um dia apanha-me.
- Nem pense isso! Ele já se esqueceu.
- Ele era de ideias fixas como um touro e disse uma coisa em que acreditei: “Eu vou até ao fim do mundo para o liquidar!” Não disse “matar”. Disse “liquidar”, o que demonstra muito mais determinação.
O Cláudio tinha que fazer e viu também que o concerto de hoje já estava estragado. Abriu o estojo e guardou o saxofone. Levantou-se e sacudiu as calças das notas que tinham caído do instrumento e que, por isso, não foram tocadas.
Foi quando o Joelzinho se agitou e disse alto:
- E é precisamente hoje.
O saxofonista viu logo um homem possante a aproximar-se deles com uma carabina na mão.
- É o pai da Gabriela – disse o Joelzinho, sem necessidade.

1º. Final
Imediatamente o Cláudio se pôs à sua frente, enquanto o outro disparava. Caíram. O povo da rua agarrou o homem e desarmou-o, esperando pela polícia.
Joelzinho estava vivo mas não se podia mexer com o peso do Cláudio em cima dele.
Porque o saxofonista estava morto com um tiro em pleno peito.

2º. Final
Imediatamente o Cláudio se pôs à sua frente, com o estojo contra o peito seguro pelas duas mãos. O touro disparou e o Cláudio caiu sobre o Joelzinho. O povo da rua agarrou o homem e desarmou-o, esperando pela polícia.
Joelzinho estava vivo mas não se podia mexer com o peso do Cláudio em cima dele. Cláudio então levantou-se a custo, olhando horrorizado para o estojo desfeito e o saxofone furado pela bala que era para ele.
Ficou vivo mas sem saxofone.

Álvaro B. Marques

Friday, August 15, 2008

LISBOA DE OUTRAS ERAS

Orlando Batista é talvez o mais premiado fotógrafo amador português. Dele recebi hoje este mail, onde a sua cultura, humor e fino olho à Balzac estão bem patentes.

"Gosto de Lisboa em Agosto! Tudo mais calmo, quase sem trânsito e mais provinciana que nunca. Afivelámos o ar aparvalhado e desorientado dos turístas, e resolvemos andar-por-aí, para ver que "piada" os gajos acham a isto! Fomos ao Bairro Alto ( de dia ); a Acrópole lusitana. Extasiámo-nos com as decadentes ruínas: prédios a cair, janelas e portas partidas; ruas primorosamente borradas com graffitis de bom gosto; frases de grande sentido moralístico e informativo, sobre a integridade de políticos e suas veneráveis mãezinhas; caixotes de cervejas e refrigerantes, à balda pelas ruas- as lojas são pequenas, não há espaço...-, etc. Lindo de ver! Também fomos ao "Armazém do Berardo" ( vulgo CCB ). Com muita sêde de cultura, admirámos com reverência e concentradamente- conforme viamos os outros fazer- aquelas m...maravilhas que o "mecenas" resolveu "oferecer-nos". Não percebi nada daquilo, mas gostei muito! Ah! Para os não "connaisseurs" um aviso: os magníficos extintores da entrada, não fazem parte das obras da colecção! E com a alma e a barriguinha consoladas de tanto gozo e "coltura", refastelei-me a bebericar um Whiskey (é irlandês)."