"Rien ne vous tue un homme comme d’être obligé de
représenter un pays."
JACQUES VACHÉ, carta a André Breton.
Se, por qualquer reazão bizarra, me mandassem representar
Portugal, fugiria novamente para o estrangeiro.
Wednesday, May 20, 2009
Friday, May 15, 2009
O VICENTE
Ao longo da estorinha, nota-se que este Vicente tem alguns pontos em comum com o Vicente do Torga; um deles, a teimosia, outra a sua aparência durante o dilúvio. Pois o meu Vicente, modestíssimo Renault estafado e olheirento, tão triste era a sua sorte que nem foi comprado por mim; foi trocado, como nos tempos anteriores à moeda.
A sua vida conta-se em dois tempos e duas lágrimas: uma professora, comprou-o e, consta, teve um acidente com ele. O carro (ainda não se chamava Vicente, mas sim um monte de sucata) ficou tão danificado que a senhora não teve dinheiro para pagar a respectiva reparação. Ficou o carro então para o mecânico como pagamento, o qual passou a utilizá-lo para emprestar aos clientes que ficavam com os veículos em reparação na oficina.
Andou, pois, de mão em mão e maltratado a maior parte das vezes, como sempre acontece com os carros alheios e modestos. (Com as pessoas também isto acontece.) E ele, coitado, não protestava. Sempre de cabeça baixa lá ia de mão em mão, que remédio, era a sua sina. Então um dia animou-se quando ouviu o patrão mandar lavá-lo e limpá-lo por dentro. Talvez desta vez fosse para mãos decentes, amigas. Foi.
E lá viemos os dois, do norte até ao Alentejo, vigiando-nos, não fosse sair alguma válvula pelo tubo de escape. Mas via-se mesmo, sentia-se o seu esforço em se portar bem, em ser simpático. Na auto-estrada chegou a dar 120 mas ruidava por todo o lado pelo que lhe fiz uma festa no pescoço dos seus 67 cavalos e passei para modestos 90 quilómetros por hora, o que ele agradeceu chocalhando menos.
Quando chegámos no monte alentejano, olhei-o bem nos olhos e disse-lhe: - Passas a chamar-te Vicente, como o Corvo que desafiou Deus . - E ele não foi contra isso; não tugiu nem mugiu.
Nos meses seguintes procedeu-se a pequenas renovações, beneficiações, alindamentos. Tapetes, travões, bomba de água, pneus novinhos e lindos e ainda uma “placa de aquecimento”, brilhante, nova em folha, por causa dos nocturnos frios alentejanos que, como sabem, são muito ásperos.
Foi então que a Fazenda mandou dizer que eu tinha de pagar uma fortuna ao fisco por uma empresa que nunca funcionou, da qual se dera baixa e cujo processo já tinha sido arquivado há anos. Mas não paguei porque não tinha e porque achava injusto castigar um homem por querer exportar livros portugueses para Moçambique. Então, mandaram-me entregar o livrete e o título de propriedade, pois o carro estava confiscado. Assim se fez. Pusemos (eu e o dono do sítio) o Vicente sob uma oliveira, à entrada do monte, quietinho e eu disse-lhe: “Não te preocupes; é só por uns dias.” Foi por mais de dois anos, que nestas coisas com a Fazenda nunca ninguém sabe.
E um dia, depois de, por duas vezes, ter ajudado o TiZéMarques a apanhar as nozes, a dita Fazenda manda uma carta de meia dúzia de linhas a dizer que estava tudo sem efeito e enviando os documentos para que o Vicente pudesse circular. Mas já não podia, coitado. Era tarde. Tinha-se finado sob a oliveira. Ali abandonado demasiado tempo, demasiado frio, demasiada chuva e humidade, demasiada geada nocturna, demasiada má sina.
Fui dar-lhe a notícia mas nem reagiu. Indiferente. Quieto. Sujo. Enfim morto.
Acabaram-se as idas a Lisboa para ver a família, às vezes com o avisador da gasolina a piscar desesperadamente, e eu a dizer-lhe “não me deixes ficar mal, sabes que não tenho saúde para andar quilómetros com uma lata de gasolina na mão”. E ele não deixava. Uma vez cheguei ao supermercado de Montemor mesmo, mesmo com a última gota, que se foi quando o Vicente parou na bomba. Ouvi então um sopro. Deveria ser ele a dizer em desabafo “Uf! chegámos!”
Um vizinho distante, levou-mo – julgo que para o desmanchar.
Agora, quando passo na entrada do monte, naquele cantinho sob a oliveira, faço por não o recordar porque, mesmo que vos pareça estranho, tenho-lhe saudades. Transportava-me e fazia-me companhia.
In TempoLivre, nº.204, Maio, 2009
A sua vida conta-se em dois tempos e duas lágrimas: uma professora, comprou-o e, consta, teve um acidente com ele. O carro (ainda não se chamava Vicente, mas sim um monte de sucata) ficou tão danificado que a senhora não teve dinheiro para pagar a respectiva reparação. Ficou o carro então para o mecânico como pagamento, o qual passou a utilizá-lo para emprestar aos clientes que ficavam com os veículos em reparação na oficina.
Andou, pois, de mão em mão e maltratado a maior parte das vezes, como sempre acontece com os carros alheios e modestos. (Com as pessoas também isto acontece.) E ele, coitado, não protestava. Sempre de cabeça baixa lá ia de mão em mão, que remédio, era a sua sina. Então um dia animou-se quando ouviu o patrão mandar lavá-lo e limpá-lo por dentro. Talvez desta vez fosse para mãos decentes, amigas. Foi.
E lá viemos os dois, do norte até ao Alentejo, vigiando-nos, não fosse sair alguma válvula pelo tubo de escape. Mas via-se mesmo, sentia-se o seu esforço em se portar bem, em ser simpático. Na auto-estrada chegou a dar 120 mas ruidava por todo o lado pelo que lhe fiz uma festa no pescoço dos seus 67 cavalos e passei para modestos 90 quilómetros por hora, o que ele agradeceu chocalhando menos.
Quando chegámos no monte alentejano, olhei-o bem nos olhos e disse-lhe: - Passas a chamar-te Vicente, como o Corvo que desafiou Deus . - E ele não foi contra isso; não tugiu nem mugiu.
Nos meses seguintes procedeu-se a pequenas renovações, beneficiações, alindamentos. Tapetes, travões, bomba de água, pneus novinhos e lindos e ainda uma “placa de aquecimento”, brilhante, nova em folha, por causa dos nocturnos frios alentejanos que, como sabem, são muito ásperos.
Foi então que a Fazenda mandou dizer que eu tinha de pagar uma fortuna ao fisco por uma empresa que nunca funcionou, da qual se dera baixa e cujo processo já tinha sido arquivado há anos. Mas não paguei porque não tinha e porque achava injusto castigar um homem por querer exportar livros portugueses para Moçambique. Então, mandaram-me entregar o livrete e o título de propriedade, pois o carro estava confiscado. Assim se fez. Pusemos (eu e o dono do sítio) o Vicente sob uma oliveira, à entrada do monte, quietinho e eu disse-lhe: “Não te preocupes; é só por uns dias.” Foi por mais de dois anos, que nestas coisas com a Fazenda nunca ninguém sabe.
E um dia, depois de, por duas vezes, ter ajudado o TiZéMarques a apanhar as nozes, a dita Fazenda manda uma carta de meia dúzia de linhas a dizer que estava tudo sem efeito e enviando os documentos para que o Vicente pudesse circular. Mas já não podia, coitado. Era tarde. Tinha-se finado sob a oliveira. Ali abandonado demasiado tempo, demasiado frio, demasiada chuva e humidade, demasiada geada nocturna, demasiada má sina.
Fui dar-lhe a notícia mas nem reagiu. Indiferente. Quieto. Sujo. Enfim morto.
Acabaram-se as idas a Lisboa para ver a família, às vezes com o avisador da gasolina a piscar desesperadamente, e eu a dizer-lhe “não me deixes ficar mal, sabes que não tenho saúde para andar quilómetros com uma lata de gasolina na mão”. E ele não deixava. Uma vez cheguei ao supermercado de Montemor mesmo, mesmo com a última gota, que se foi quando o Vicente parou na bomba. Ouvi então um sopro. Deveria ser ele a dizer em desabafo “Uf! chegámos!”
Um vizinho distante, levou-mo – julgo que para o desmanchar.
Agora, quando passo na entrada do monte, naquele cantinho sob a oliveira, faço por não o recordar porque, mesmo que vos pareça estranho, tenho-lhe saudades. Transportava-me e fazia-me companhia.
In TempoLivre, nº.204, Maio, 2009
Friday, May 08, 2009
VÍRUS A
Lembrei-me de uma máxima de Pitigrilli, a propósito do drama que vivemos agora com a gripe mexicana:
"Beijo: a mais deliciosa troca de bacilos."
"Beijo: a mais deliciosa troca de bacilos."
Thursday, May 07, 2009
MUDAR DE VIDA
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