Thursday, July 06, 2006

CRIME CRACKER


Inicio a publicação da segunda novela de Ed B. Silverman, que é mais longa que a primeira e que, por isso levará mais tempo a postar.

Quanto à sua biografia poderão encontrar neste blog, aquando da publicação da primeira, o essencial da vida deste antropólogo que, nas horas em que deveria estar a descansar, escreve policiais a gozar com os livros policiais.










Tudo nesta novela é fruto
da imaginação da minha
vizinha que, naqueles três dias
e duas noites de cheia, me contou
esta história como sendo
verdadeira. Datas e tudo.

E.B.S.




ANTES DE...

... começar a ler esta novela, desejo responder a Henry Dalsdale, que assina uma pequena coluna crítica no "Washington Times".
Pegando na minha primeira novela O Caso da Mulher com Um Olho de Vidro, afirma ele (e resumo eu):

Primeiro: Que os personagens estão mal retratados fisicamente;
Segundo: Que não sei descrever cenários (interiores e exteriores) e
Terceiro: Nunca falo do estado do tempo.

Dalsdale tem razão nos três pontos. Portanto o leitor tem de contar com tudo isto à partida.
Só li a sua crítica quando ia a meio desta Crime Cracker e, então, cheio de raiva, fiz um enorme esforço, no Capítulo 15, para descrever o gabinete do encontro. Mas o caso é curioso: como conheço bem aquele gabinete, tive imensa dificuldade em retratá‑lo para o leitor. E esta hein?
Como não gosto de Dalsdale, vou vingar‑me da maneira mais suja, mais torpe.

Henry Dalsdale, um "menino‑família", gordinho, anafadinho, bem vestidinho e cheio de borbulhas na cara, foi meu colega de faculdade, em Antropologia. Quando comecei a publicar umas pequenas crónicas no house organ, considerou‑me seu fã nº.1, pelo que rolava, atrás de mim, lendo‑me, de olhos bolbudos lacrimejantes, uns plágios a Yeats. Um dia, já farto, disse‑lhe, com aquela honestidade que ainda temos na juventude, "tudo quanto escreves é uma merda". Jurou então vingar‑se. Levou trinta anos aguardando a oportunidade.
Depois deste ataque sujo, a defesa.

Não gosto de descrever totalmente certos personagens ao leitor; prefiro que seja este a encontrar, através dos seus comportamentos e maneiras de estar na vida, uma "figura física" para aqueles. Altos, gordos, baixos ou magros, de uma maneira geral, prefiro que seja você a imaginar este ou aquela. De uma maneira geral, claro.
Quanto aos cenários, bem. Tenho algumas peças de Teatro escritas (algumas publicadas e representadas). Quando escrevo novelas, evito cair na descrição normal dramatúrgica; não me sinto bem, nem me apetece, o que é que querem?
Para finalizar: o tempo. Não sei escrever sobre o tempo. Só conheço dois: o bom e o mau. Não conheço o nome das nuvens, os ventos e, além disso, não tenho paciência. Levar três páginas de computador a dizer ao leitor de que maneira é que está mau tempo é, em última análise, a combinação de uma chatice e chamar‑lhe estúpido. "Está mau tempo" - pronto! O leitor agora que, dentro das suas vivências de mau tempo, faça o favor de imaginar o boletim meteorológico. Idem para o "bom tempo".

Mestre Mark Twain disse, na sua novela The American Claimant: "O tempo constitui uma especialidade literária e mãos inexperientes não poderiam tirar qualquer partido dele."
Obrigado, Mestre. E.B.S.


1.
O início da manhã é muito importante. A tarde e a noite têm, quantas vezes e apenas, um sentido de continuidade, um prolongamento das primeiras ocorrências e factos. É como se a vida começasse ao acordar e, as restantes horas de alerta, fossem prismas de desdobramento, não das cores, mas dos factos.
Até à chegada da zona de caça, todos os acontecimentos são de extraordinária importância e quase premonitivos.
Assim, pela manhã o homem em tudo vê premonição. Se o tempo está antipático, borrascoso, se se corta ao fazer a barba, se o café deita por fora, se o atacador do sapato se parte no esticão final, se à camisa que pretendia vestir falta um botão, se não encontra aquele documento-arma que necessita levar para o escritório, se o pneu do carro está esvaído e tristemente esparramado no piso, tudo, mas tudo, pode indicar que o dia vai ser terrível... ou bonançoso. (Falamos, evidentemente, do tipo de homem pessimista ─ e solteiro ─, já que, os do tipo optimista são cada vez mais raros.)
Steve não estava incluído nos 2,7%, mas também não era, o que se pode chamar, um neurótico ou um maníaco‑depressivo. E não era bem um pessimista.
Nas classificações dos psicólogos, não estava com linhas muito acima ou muito abaixo da linearidade do "normal", dos que aceitam esta sociedade‑civilização, sem muita necessidade de álcool ou de drogas.
Steve não tinha recalcamentos de infância. Steve não tinha, aparentemente, qualquer alínea patológica. Mas, mesmo que a mãe passasse a vida a dizer que ele era "um neura", a verdade é que é chato, muito chato, abrir pela manhã a porta do carro e encontrar, deitadinho no banco traseiro, um cadáver.
Steve encontrou o cadáver de um homem bem vestido, penteado, calmo, elegante. Enfim, um cadáver decente, um cadáver classe A.
- Que porra! - Exclamou.
Steve, escriturário na International Insurance Co., não tinha, na verdade, razão para se mostrar optimista. Convenhamos que não dá alegria a ninguém, e logo pela manhã, a presença próxima de um cadáver. E ainda no nosso velho carro.
Julgamos, porém, que um momento já deveria o autor ter tido para apresentar Steve Larson.
Já sabemos que é escriturário numa companhia de seguros e, segundo a mãe (e não temos qualquer razão para duvidar da sua palavra), nasceu há 25 anos em Dayton, Ohio, naquele bairro já antigo, construído no ângulo sul da Biblioteca Nacional.
Quando o pai morreu, ao que consta de cirrose, tinha Steve 17 anos e frequentava o Ginásio, com esperança de frequentar também, dentro em breve, certas garotas do Luna Parque. E foi precisamente uma delas que o levou para Nova Iorque, com o tio, as espingardas e as bonecas de plástico.
Steve habituou‑se depressa a Nova Iorque, em tudo tão diferente de Dayton, mas não às espingardas, aos tiros, ao tio dela e a demais coisas como certos olhares que os atiradores atiravam à miúda. Por isso, após seis meses, trocou aquela família e demais atavios, por um emprego certinho, estudando à noite coisas menos importantes que a anatomia de Mary Lou, mas muito mais rentáveis - segundo imaginou na altura.
Quanto às suas capacidades, Steve não era, como habitualmente dizem as tias, "um rapaz promissor" mas tinha, a seu favor, uma boa apresentação física, um favorável ar ingénuo e uma pitadinha de imaginação. "Um homem comum", como definem os sociólogos; "um homem do povo", como dizem os políticos.
Fazia a sua vida com rigor micrométrico, repleta de hábitos solidamente adquiridos pelo que, um cadáver, mesmo que muito bem vestido e impecavelmente penteado, depositado no seu velho carro, o deixou atónito, primeiro, e muito zangado depois.
"Isto são coisas daquele gajo", pensou, referindo‑se ao Tio de Mary Lou, homem pouco temente a Deus e inimigo declarado da Polícia - de qualquer Polícia. "Isto é vingança, por ter abandonado a sobrinha", continuou a pensar. Mas depois reconheceu o seu erro, pois que nunca mais se tinham visto e que nem Mary Lou, nem o sinistro tio, sabiam onde morava.
- Porra! - Reexclamou.
Ordeiramente, desencostou o carro do passeio, virou à direita e dirigiu‑se para a Esquadra da Polícia.
"Vou chegar atrasado ao emprego". Pensou.

----------------------

No comments: