O meu amigo Rui mandou-me este texto... bem actual.
"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.(...)
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida intima, descambam na vida publica em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na politica portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.(...)
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre - como da roda duma lotaria. A justiça ao arbítrio da Politica, torcendo-lhe a vara ao ponto defazer dela saca-rolhas;Dois partidos (...), sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes (...), vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de estar. (...)"
Guerra Junqueiro, in "Pátria", escrito em 1896
Thursday, January 31, 2008
Thursday, January 17, 2008
UM CÃO CHAMADO SAUDADE
Quando fomos para o quintal naquela manhã, o cão saltou de contente e lambeu-nos as mãos. Nunca nos tínhamos visto. Chamámos pela mãe e, quando ela viu o bicho, disse que ainda era novinho, que estava bem tratado e completou:
- Deve ter vindo com o vosso pai. Os boémios e os cães dão-se bem.
Resolvida a origem, tratámos de lhe arranjar um nome. Vários foram ditos mas, quando a mãe referiu que o bicho era um fox-terrier, ele levantou a cabeça. Tentámos mais vezes e ele reagia sempre à palavra Fox. Ficou Fox.
Resolvidos a origem e o nome, havia que resolver a co-habitação com dois gatos residentes: o Dom Fuas Roupinho e o Espadinha-até-à-última. Este, de aspecto asqueroso, cheio de pinceladas de amarelo no corpo e com os pêlos do rabo cortados em forma de um raio celeste, terminando em ponta de cauda de diabo, uma ignomínia efectuada por um dos rapazes. Éramos três, com uma menina mais velha a aquietar-nos.
Os gatos residentes, bem novinhos também, fizeram a sua parte encarquilhando a espinha eriçada e bufando. O Fox riu-se para eles bem-disposto. Passados poucos dias já os gatos dormiam, sem qualquer respeito, sobre o seu dorso.
O Fox, como todo o mundo, tinha coisas boas e coisas divertidas. As boas eram as suas maneiras, gostar de nós, ir connosco para a praia, brincar connosco ao “faz de conta que te agarro o rabo”; as divertidas eram as cenas dele a correr atrás dos gatos da vizinhança, ladrando furioso e depois regressar olhando para nós e dizendo: “Vêem como defendo o quartel?” Outra curiosidade do Fox: quando ia com a mãe às compras, era a de não se sentar no chão, fosse ele de que matéria fosse: mármore, alcatrão, madeira. Nenhuma era suficientemente nobre para acolher o seu rabo. Entrava em qualquer loja com a mãe e procurava imediatamente um papel, um bilhete de eléctrico, o que fosse, para se sentar. Um dia, no talho, não encontrando nada para o efeito, sentou-se na biqueira do sapato da mãe. Um cão divertido.
Aos sábados, domingos e feriados, íamos todos com o Fox para a praia da Polana. Tomávamos banho na área protegida contra os tubarões e às vezes os meus irmãos nadavam para a prancha de saltos, montada numa plataforma, com o Fox atrás. Ainda estou para saber por que razão não batiam todos os recordes pois o Fox a nadar, em sua perseguição, arranhava as costas que tinha à sua frente. A mais velha, a menina, tinha as costas dignas de figuração em qualquer filme de romanos contra os cristãos. Um dia ela fez-lhe uma partida: saltou da prancha e, submersa, nadou para a traseira da plataforma. O Fox corria de um lado para o outro, olhando o mar, ladrando e ganindo aflito. Pobre bicho preocupado.
No regresso da praia, cheios de fome e sede, fazíamos, por hábito, escala no “Paraíso” uma quinta abandonada com várias laranjeiras enxertadas em limoeiros. O Fox via-nos a comer limão e também queria. Dávamos-lhe pequenos pedaços que ele enrolava na boca, desgostoso, olhando para nós numa aflição, mas mesmo assim engolindo-os. Valente cão.
E um dia aconteceu o inimaginável: o Fox desapareceu. Corremos os arredores, perguntámos. Ninguém vira. Ninguém sabia. Nem o dono da mercearia. Percebemos que sofria por ter perdido o seu melhor cliente. À porta da loja prantava-se uma lata grande com azeite e chouriços e ele punha sempre alguns na conta da mãe dizendo ter sido o Fox a roubá-los.
Passaram-se dois dias e nada de Fox, para nosso desespero e também para desgosto do Dom Fuas e do Espadinha.
Até que telefonou uma senhora à mãe dizendo que o Fox estava em sua casa, que era afinal a casa do Fox, aliás Peludo. A senhora era casada mas não tinha filhos. Contou que, quando o cão lhe desapareceu, ela e o marido foram perguntando até que descobriram onde aquele figurão se aboletara. Perceberam também que tratávamos bem do bicho e que ele era feliz com as crianças. Disse à mãe que, assim como ele fora à sua antiga casa, o mais certo seria qualquer dia regressar à nossa, para matar saudades dos meninos. E assim foi. Quase passou a rotina: quando lhe dava a saudade, vinha Fox por três meses para o pé de nós. Depois, quatro ou cinco meses vividos, chamava-se Peludo e ia viver com os antigos e verdadeiros donos. Quando a mãe nos dizia de manhã, “Há uma surpresa agradável para vocês”, já sabíamos. Íamos a gritar por ele até lá fora e sujávamo-nos todos nas brincadeiras de rebolar no chão.
Neste momento, o cão não se chama Fox nem Peludo. Apenas saudade.
- Deve ter vindo com o vosso pai. Os boémios e os cães dão-se bem.
Resolvida a origem, tratámos de lhe arranjar um nome. Vários foram ditos mas, quando a mãe referiu que o bicho era um fox-terrier, ele levantou a cabeça. Tentámos mais vezes e ele reagia sempre à palavra Fox. Ficou Fox.
Resolvidos a origem e o nome, havia que resolver a co-habitação com dois gatos residentes: o Dom Fuas Roupinho e o Espadinha-até-à-última. Este, de aspecto asqueroso, cheio de pinceladas de amarelo no corpo e com os pêlos do rabo cortados em forma de um raio celeste, terminando em ponta de cauda de diabo, uma ignomínia efectuada por um dos rapazes. Éramos três, com uma menina mais velha a aquietar-nos.
Os gatos residentes, bem novinhos também, fizeram a sua parte encarquilhando a espinha eriçada e bufando. O Fox riu-se para eles bem-disposto. Passados poucos dias já os gatos dormiam, sem qualquer respeito, sobre o seu dorso.
O Fox, como todo o mundo, tinha coisas boas e coisas divertidas. As boas eram as suas maneiras, gostar de nós, ir connosco para a praia, brincar connosco ao “faz de conta que te agarro o rabo”; as divertidas eram as cenas dele a correr atrás dos gatos da vizinhança, ladrando furioso e depois regressar olhando para nós e dizendo: “Vêem como defendo o quartel?” Outra curiosidade do Fox: quando ia com a mãe às compras, era a de não se sentar no chão, fosse ele de que matéria fosse: mármore, alcatrão, madeira. Nenhuma era suficientemente nobre para acolher o seu rabo. Entrava em qualquer loja com a mãe e procurava imediatamente um papel, um bilhete de eléctrico, o que fosse, para se sentar. Um dia, no talho, não encontrando nada para o efeito, sentou-se na biqueira do sapato da mãe. Um cão divertido.
Aos sábados, domingos e feriados, íamos todos com o Fox para a praia da Polana. Tomávamos banho na área protegida contra os tubarões e às vezes os meus irmãos nadavam para a prancha de saltos, montada numa plataforma, com o Fox atrás. Ainda estou para saber por que razão não batiam todos os recordes pois o Fox a nadar, em sua perseguição, arranhava as costas que tinha à sua frente. A mais velha, a menina, tinha as costas dignas de figuração em qualquer filme de romanos contra os cristãos. Um dia ela fez-lhe uma partida: saltou da prancha e, submersa, nadou para a traseira da plataforma. O Fox corria de um lado para o outro, olhando o mar, ladrando e ganindo aflito. Pobre bicho preocupado.
No regresso da praia, cheios de fome e sede, fazíamos, por hábito, escala no “Paraíso” uma quinta abandonada com várias laranjeiras enxertadas em limoeiros. O Fox via-nos a comer limão e também queria. Dávamos-lhe pequenos pedaços que ele enrolava na boca, desgostoso, olhando para nós numa aflição, mas mesmo assim engolindo-os. Valente cão.
E um dia aconteceu o inimaginável: o Fox desapareceu. Corremos os arredores, perguntámos. Ninguém vira. Ninguém sabia. Nem o dono da mercearia. Percebemos que sofria por ter perdido o seu melhor cliente. À porta da loja prantava-se uma lata grande com azeite e chouriços e ele punha sempre alguns na conta da mãe dizendo ter sido o Fox a roubá-los.
Passaram-se dois dias e nada de Fox, para nosso desespero e também para desgosto do Dom Fuas e do Espadinha.
Até que telefonou uma senhora à mãe dizendo que o Fox estava em sua casa, que era afinal a casa do Fox, aliás Peludo. A senhora era casada mas não tinha filhos. Contou que, quando o cão lhe desapareceu, ela e o marido foram perguntando até que descobriram onde aquele figurão se aboletara. Perceberam também que tratávamos bem do bicho e que ele era feliz com as crianças. Disse à mãe que, assim como ele fora à sua antiga casa, o mais certo seria qualquer dia regressar à nossa, para matar saudades dos meninos. E assim foi. Quase passou a rotina: quando lhe dava a saudade, vinha Fox por três meses para o pé de nós. Depois, quatro ou cinco meses vividos, chamava-se Peludo e ia viver com os antigos e verdadeiros donos. Quando a mãe nos dizia de manhã, “Há uma surpresa agradável para vocês”, já sabíamos. Íamos a gritar por ele até lá fora e sujávamo-nos todos nas brincadeiras de rebolar no chão.
Neste momento, o cão não se chama Fox nem Peludo. Apenas saudade.
Sunday, January 13, 2008
A MESA ONDE OS RICOS SE SENTAM
À minha caixa do correio chegou esta bela short story da autoria de Byrd Baylor a qual, com a ajuda de Luís Lemos, consigo fazê-la publicar neste blog. Espero que gostem.
Esta iniciativa de enviar histórias pela Net partiu do
Clube dos Contadores de Histórias
contamoshistorias7@gmail.com
Se nos vissem sentados na nossa mesa de cozinha, feita à mão e toda arranhada, saberiamlogo que não somos ricos.Mas o meu pai está a tentar fazer-nos ver que somos. Será que não vê os meus sapatos gastos? Ou que o meu irmãozinho tem remendos nascalças que leva para a escola?E como explicará ele aquela carrinha a desfazer-se, estacionada à nossa porta?
─ Não consegues enganar-me ─ digo-lhe. ─ Somos pobres. Será que os ricos se sentariam a uma mesa como esta?
A minha mãe, como que acariciando a mesa, diz:
─ Bem, nós somos ricos e sentamo-nos aqui todos os dias.
Às vezes, penso que sou a única pessoa sensata na família. Diga-se de passagem que os meus pais fizeram esta mesa com madeira que outras pessoas deitaram fora. Até festejaramquando a terminaram. Não me interpretem mal: eu gosto desta mesa. Só digo que se vê logo que não veio de uma lojade mobílias. Não tem ar de ser uma mesa à qual os ricos se sentariam. Mas a minha mãe pensa que, se todos os governantes do mundo se sentassem em redor deuma amigável mesa de madeira na cozinha de alguém, resolveriam os seus diferendos emmetade do tempo. E o meu pai diz que não fazia mal se houvesse um lindo prato azul com muitos bolinhos empilhados, que todos pudessem tirar, mesmo sem ter de pedir. Hoje, porém, trata-se da nossa cozinha, da nossa discussão, da nossa reunião familiar, dosnossos bolinhos de gengibre com especiarias, empilhados no melhor prato de flores azuis da minha mãe, colocado exactamente no centro da mesa.
Fui eu que convoquei a reunião, cujo tema é dinheiro; o meu ponto de vista é que nãotemos dinheiro que chegue. Digo aos meus pais que devem ambos arranjar empregos melhores, para podermos comprarmuitas coisas novas e boas. Digo-lhes que faço má figura na escola diante dos outros.
─ Não gosto de ter de falar disto, mas era bom que fossem ambos mais ambiciosos.
Ficam surpreendidos. Vê-se bem que nunca pensam nas coisas de que necessitamos. Devo dizer desde já que os meus pais têm umas ideias estranhas acerca do trabalho. Pensam que os únicos empregos que interessam são empregos ao ar livre. Querem terrochedos, desfiladeiros, desertos ou montanhas em redor deles, onde quer que estejam atrabalhar. Até querem ver bem o céu.Trabalham sempre juntos e a sua ocupação favorita é procurar ouro. Enfiam-nos naquela carripana e lá vamos nós em direcção às montanhas rochosas e desertas ou em direcção aalguma ravina estreita, onde todas as estradas se assemelham a trilhos de coiotes. Adoram caminhar pelas amplas margens de rios agora secos, onde se podem encontrar pequenos salpicos de ouro. Costumavam dizer-nos que a carrinha sabia exactamente que tiposde estrada bater, e que os coiotes lhes indicavam onde procurar ouro, mas eu nunca acrediteineles. Depois de passarem lá um mês ou dois, traziam sempre um pouco de minério para vender, mas vê-se bem que nunca enriqueceram. Pelo que me é dado ver, tratava-se apenas de umpretexto para acampar de novo num lugar selvagem e belo. Não se importam de plantar campos de milho doce ou de alfalfa. Gostam de apanhar pimentão-de-cheiro, abóbora e tomate. Conseguem construir vedações fortes ou domar potrosselvagens. Mas dizem que não aguentam ficar engaiolados em casa. Por isso, o meu pai pergunta:
─ Quantas pessoas há que sejam tão afortunadas como nós? Mas como fui eu quem convocou esta reunião, respondo:
─ Aposto que fariam mais dinheiro se trabalhassem num escritório na cidade.
─ Lembra-te da nossa regra número um ─ insiste o meu pai.─ Temos de poder ver o céu.
─ Podiam vê-lo através de uma janela ─ sugiro. Mas eles nem querem ouvir falar disso. Já percebem porque digo que sou o único membro sensato da família?Finalmente, a minha mãe diz:
─ Está bem, Filha da Montanha. Vamos explicar-te como fazemos contas. Hoje, vais ser a nossa contabilista.
Distribui um lápis e uma folha de papel amarelo por cada um de nós, o meu irmão incluído, embora ele só finja que escreve enquanto nós escrevemos, ou desenhe pessoas a dançar no céu.
Já agora, o meu nome não é Filha da Montanha. Chamam-me assim porque nasci numa cabana na encosta de uma montanha, no Arizona, num Verão em que os meus pais tinham idoem busca de ouro. Dizem que era um lugar mágico, a mais bela montanha que alguma vez escalaram. Talvez fosse, mas sabemos bem o quanto eles gostam de exagerar. Como queriam que a primeira coisa que eu visse fosse aquela encosta, quando tinha apenasoito minutos de vida levaram-me a ver o nascer-do-sol. A verdade é que ainda gosto muito do nascer-do-sol. Quanto ao meu irmão, chamam-lhe Filho do Oceano. Como eu tinha tido a melhormontanha como primeira paisagem da minha vida, acharam que deviam encontrar o oceanomais belo para quando ele nascesse. Penso que percorreram o México todo para encontrar um lugar onde o oceano e a selva se encontrassem. Queriam que o céu estrelado fosse azul-púrpura e que as ondas do mar fossem da cor verde que eles preferem. Ergueram-no bem alto, para que aquelas ondas fossem a primeira paisagem da sua vida. Havemos de voltar um dia àquele oceano verde e à minha montanha alta. Por ora (emboraos meus pais digam que são ricos), não há dinheiro para irmos a lado algum. Por isso, não admira que eu tenha tido de convocar esta reunião. Acreditam que o meu pai me olha bem nos olhos e me diz:
─ Mas, Filha da Montanha, eu estava persuadido de que sabias o quanto somos ricos.
Respondo-lhe:
─ Esta conversa só vai resultar se admitirmos que somos pobres.
O meu pai continua:
─ Vou provar-te agora mesmo o que disse. Façamos uma lista do dinheiro que ganhamos por ano.
─ Quanto é? ─ pergunto.
─ Preciso de anotar.
─ Calma aí ─ adverte o meu pai.
─ Temos de pensar em montes de coisas antes de somarmos tudo.
─ Que coisas? - A minha mãe contribui:
─ Sabes que não recebemos o nosso salário apenas em papel-moeda. Temos um planoespecial que nos permite ser pagos em pôres-do-sol, em tempo para escalar desfiladeiros eprocurar ninhos de águia. Não desarmo: ─ Não podem dar-me uma quantia só para que eu possa anotar?Começamos com vinte mil dólares. É quanto o meu pai diz que vale poder trabalhar ao ar livre, ver o sol durante todo o dia,sentir o vento e cheirar a chuva, uma hora antes de ela cair realmente. Diz que é quanto vale estar num sítio onde pode cantar alto quando lhe apetece, semincomodar ninguém. Mal escrevo vinte mil, a minha mãe acrescenta:
─ É melhor escreveres trinta mil, porque poder ouvir coiotes a uivar nas colinas vale, pelo menos, mais dez mil dólares.
Escrevo trinta mil. A mãe lembra-se de que também gostam de viagens longas e de montanhas distantes que mudam de cor dez vezes ao dia.
─ Para mim, isso vale mais cinco mil dólares.
O que não me surpreende, já que a minha mãe afirma ser uma especialista em sombras demontanha no deserto. Diz que consegue saber as horas pela forma como as cores das sombras variam do nascer ao pôr-do-sol. Apago o que escrevi antes e escrevo trinta e cinco mil dólares. O meu pai lembra-se, então, de outra coisa.
─ Quando um cacto floresce, temos de lá estar porque podemos não voltar a ver aquela cor em mais dia algum da nossa vida. Quanto pensas que vale essa cor?
─ Cinquenta cêntimos? ─ pergunta o meu irmão.
Decidem-se por acrescentar cinco mil à lista. Já vamos em quarenta mil dólares. Mas eu tinha-me esquecido do quanto o meu pai gosta de imitar os sons dos pássaros. Consegue imitar qualquer um, mas a sua melhor imitação são as pombas de asas brancas, os corvos, os falcões de cauda ruiva e as codornizes. Também é bom a imitar águias e corujas de grandes bicos. Por isso, lá temos nós de acrescentar mais dez mil por termos a sorte de conviver com aves diurnas e nocturnas.
Risco a soma que tinha escrito e assento cinquenta mil dólares.
─ Agora vejamos quanto vale a nossa Filha da Montanha.
Decido entrar no jogo e sugiro que valho dez mil dólares, embora o meu irmão tenha começado a rir-se.
─ Não te subestimes ─ diz o meu pai. ─ Lembra-te daquelas listas fabulosas que nos fazes.
Tem razão. Faço listas dos melhores livros que cada um de nós leu, e dos que cada um denós quer ler de novo. Também fiz uma lista de todos os animais que cada um de nós viu e daqueles que mais queremos ver ─ ao ar livre, não num jardim zoológico.O animal que eu mais gostava de ver é o leão da montanha. Já sonhei com ele quatro vezese também já lhe vi o rasto. O meu pai escolheu o urso-pardo da América. A minha mãe quer ver um lobo e ouvi-lo uivar. O meu irmão hesita entre um golfinho e uma baleia. Lembro-me de todos porque sou eu que faço as listas. Acabam por achar que valho um milhão de dólares. Protesto, mas anoto a soma. Acabamos por decidir que cada um de nós vale um milhão de dólares. A soma de toda a nossa riqueza totaliza agora quatro milhões e quinhentos mil dólares. Dou-me conta de que quero adicionar cinco mil dólares pelo prazer que me causa vaguear pelo campo, sozinha, livre com um lagarto, sem ter de seguir trilhos, sem ter um plano, apenas pelo prazer de andar ao sabor do vento. A minha família acha que isso vale cinco mil. O que totaliza quatro milhões e cinquenta e cinco mil dólares. Por fim, o meu irmão quer ainda juntar sete dólares por todas as noites em que adormecemos ao ar livre, sob as estrelas. Pensamos que sete dólares são insuficientes e convencemo-lo a arredondar para cinco mil. A minha folha regista agora quatro milhões e sessenta mil dólares ─ e ainda nem sequer começámos a contar o nosso dinheiro em papel-
-moeda. Para ser franca, esse tipo de riqueza já não conta muito neste momento. Sugiro que nem faça parte da nossa lista de riquezas. E, assim, a reunião chega ao fim.
A família foi até lá fora ver o novo quarto de lua. Mas eu fiquei sentada à nossa querida mesa feita à mão, sobre a qual o prato de flores azuis da minha mãe conserva ainda um bolinho, e escrevo este livro sobre nós. Acaricio a mesa e fico contente por a termos. Acho que o título deste livro vai ser A Mesa do.
Byrd Baylor
The Table Where Rich People Sit
New York, Aladdin Paperbacks, 1998
Esta iniciativa de enviar histórias pela Net partiu do
Clube dos Contadores de Histórias
contamoshistorias7@gmail.com
Se nos vissem sentados na nossa mesa de cozinha, feita à mão e toda arranhada, saberiamlogo que não somos ricos.Mas o meu pai está a tentar fazer-nos ver que somos. Será que não vê os meus sapatos gastos? Ou que o meu irmãozinho tem remendos nascalças que leva para a escola?E como explicará ele aquela carrinha a desfazer-se, estacionada à nossa porta?
─ Não consegues enganar-me ─ digo-lhe. ─ Somos pobres. Será que os ricos se sentariam a uma mesa como esta?
A minha mãe, como que acariciando a mesa, diz:
─ Bem, nós somos ricos e sentamo-nos aqui todos os dias.
Às vezes, penso que sou a única pessoa sensata na família. Diga-se de passagem que os meus pais fizeram esta mesa com madeira que outras pessoas deitaram fora. Até festejaramquando a terminaram. Não me interpretem mal: eu gosto desta mesa. Só digo que se vê logo que não veio de uma lojade mobílias. Não tem ar de ser uma mesa à qual os ricos se sentariam. Mas a minha mãe pensa que, se todos os governantes do mundo se sentassem em redor deuma amigável mesa de madeira na cozinha de alguém, resolveriam os seus diferendos emmetade do tempo. E o meu pai diz que não fazia mal se houvesse um lindo prato azul com muitos bolinhos empilhados, que todos pudessem tirar, mesmo sem ter de pedir. Hoje, porém, trata-se da nossa cozinha, da nossa discussão, da nossa reunião familiar, dosnossos bolinhos de gengibre com especiarias, empilhados no melhor prato de flores azuis da minha mãe, colocado exactamente no centro da mesa.
Fui eu que convoquei a reunião, cujo tema é dinheiro; o meu ponto de vista é que nãotemos dinheiro que chegue. Digo aos meus pais que devem ambos arranjar empregos melhores, para podermos comprarmuitas coisas novas e boas. Digo-lhes que faço má figura na escola diante dos outros.
─ Não gosto de ter de falar disto, mas era bom que fossem ambos mais ambiciosos.
Ficam surpreendidos. Vê-se bem que nunca pensam nas coisas de que necessitamos. Devo dizer desde já que os meus pais têm umas ideias estranhas acerca do trabalho. Pensam que os únicos empregos que interessam são empregos ao ar livre. Querem terrochedos, desfiladeiros, desertos ou montanhas em redor deles, onde quer que estejam atrabalhar. Até querem ver bem o céu.Trabalham sempre juntos e a sua ocupação favorita é procurar ouro. Enfiam-nos naquela carripana e lá vamos nós em direcção às montanhas rochosas e desertas ou em direcção aalguma ravina estreita, onde todas as estradas se assemelham a trilhos de coiotes. Adoram caminhar pelas amplas margens de rios agora secos, onde se podem encontrar pequenos salpicos de ouro. Costumavam dizer-nos que a carrinha sabia exactamente que tiposde estrada bater, e que os coiotes lhes indicavam onde procurar ouro, mas eu nunca acrediteineles. Depois de passarem lá um mês ou dois, traziam sempre um pouco de minério para vender, mas vê-se bem que nunca enriqueceram. Pelo que me é dado ver, tratava-se apenas de umpretexto para acampar de novo num lugar selvagem e belo. Não se importam de plantar campos de milho doce ou de alfalfa. Gostam de apanhar pimentão-de-cheiro, abóbora e tomate. Conseguem construir vedações fortes ou domar potrosselvagens. Mas dizem que não aguentam ficar engaiolados em casa. Por isso, o meu pai pergunta:
─ Quantas pessoas há que sejam tão afortunadas como nós? Mas como fui eu quem convocou esta reunião, respondo:
─ Aposto que fariam mais dinheiro se trabalhassem num escritório na cidade.
─ Lembra-te da nossa regra número um ─ insiste o meu pai.─ Temos de poder ver o céu.
─ Podiam vê-lo através de uma janela ─ sugiro. Mas eles nem querem ouvir falar disso. Já percebem porque digo que sou o único membro sensato da família?Finalmente, a minha mãe diz:
─ Está bem, Filha da Montanha. Vamos explicar-te como fazemos contas. Hoje, vais ser a nossa contabilista.
Distribui um lápis e uma folha de papel amarelo por cada um de nós, o meu irmão incluído, embora ele só finja que escreve enquanto nós escrevemos, ou desenhe pessoas a dançar no céu.
Já agora, o meu nome não é Filha da Montanha. Chamam-me assim porque nasci numa cabana na encosta de uma montanha, no Arizona, num Verão em que os meus pais tinham idoem busca de ouro. Dizem que era um lugar mágico, a mais bela montanha que alguma vez escalaram. Talvez fosse, mas sabemos bem o quanto eles gostam de exagerar. Como queriam que a primeira coisa que eu visse fosse aquela encosta, quando tinha apenasoito minutos de vida levaram-me a ver o nascer-do-sol. A verdade é que ainda gosto muito do nascer-do-sol. Quanto ao meu irmão, chamam-lhe Filho do Oceano. Como eu tinha tido a melhormontanha como primeira paisagem da minha vida, acharam que deviam encontrar o oceanomais belo para quando ele nascesse. Penso que percorreram o México todo para encontrar um lugar onde o oceano e a selva se encontrassem. Queriam que o céu estrelado fosse azul-púrpura e que as ondas do mar fossem da cor verde que eles preferem. Ergueram-no bem alto, para que aquelas ondas fossem a primeira paisagem da sua vida. Havemos de voltar um dia àquele oceano verde e à minha montanha alta. Por ora (emboraos meus pais digam que são ricos), não há dinheiro para irmos a lado algum. Por isso, não admira que eu tenha tido de convocar esta reunião. Acreditam que o meu pai me olha bem nos olhos e me diz:
─ Mas, Filha da Montanha, eu estava persuadido de que sabias o quanto somos ricos.
Respondo-lhe:
─ Esta conversa só vai resultar se admitirmos que somos pobres.
O meu pai continua:
─ Vou provar-te agora mesmo o que disse. Façamos uma lista do dinheiro que ganhamos por ano.
─ Quanto é? ─ pergunto.
─ Preciso de anotar.
─ Calma aí ─ adverte o meu pai.
─ Temos de pensar em montes de coisas antes de somarmos tudo.
─ Que coisas? - A minha mãe contribui:
─ Sabes que não recebemos o nosso salário apenas em papel-moeda. Temos um planoespecial que nos permite ser pagos em pôres-do-sol, em tempo para escalar desfiladeiros eprocurar ninhos de águia. Não desarmo: ─ Não podem dar-me uma quantia só para que eu possa anotar?Começamos com vinte mil dólares. É quanto o meu pai diz que vale poder trabalhar ao ar livre, ver o sol durante todo o dia,sentir o vento e cheirar a chuva, uma hora antes de ela cair realmente. Diz que é quanto vale estar num sítio onde pode cantar alto quando lhe apetece, semincomodar ninguém. Mal escrevo vinte mil, a minha mãe acrescenta:
─ É melhor escreveres trinta mil, porque poder ouvir coiotes a uivar nas colinas vale, pelo menos, mais dez mil dólares.
Escrevo trinta mil. A mãe lembra-se de que também gostam de viagens longas e de montanhas distantes que mudam de cor dez vezes ao dia.
─ Para mim, isso vale mais cinco mil dólares.
O que não me surpreende, já que a minha mãe afirma ser uma especialista em sombras demontanha no deserto. Diz que consegue saber as horas pela forma como as cores das sombras variam do nascer ao pôr-do-sol. Apago o que escrevi antes e escrevo trinta e cinco mil dólares. O meu pai lembra-se, então, de outra coisa.
─ Quando um cacto floresce, temos de lá estar porque podemos não voltar a ver aquela cor em mais dia algum da nossa vida. Quanto pensas que vale essa cor?
─ Cinquenta cêntimos? ─ pergunta o meu irmão.
Decidem-se por acrescentar cinco mil à lista. Já vamos em quarenta mil dólares. Mas eu tinha-me esquecido do quanto o meu pai gosta de imitar os sons dos pássaros. Consegue imitar qualquer um, mas a sua melhor imitação são as pombas de asas brancas, os corvos, os falcões de cauda ruiva e as codornizes. Também é bom a imitar águias e corujas de grandes bicos. Por isso, lá temos nós de acrescentar mais dez mil por termos a sorte de conviver com aves diurnas e nocturnas.
Risco a soma que tinha escrito e assento cinquenta mil dólares.
─ Agora vejamos quanto vale a nossa Filha da Montanha.
Decido entrar no jogo e sugiro que valho dez mil dólares, embora o meu irmão tenha começado a rir-se.
─ Não te subestimes ─ diz o meu pai. ─ Lembra-te daquelas listas fabulosas que nos fazes.
Tem razão. Faço listas dos melhores livros que cada um de nós leu, e dos que cada um denós quer ler de novo. Também fiz uma lista de todos os animais que cada um de nós viu e daqueles que mais queremos ver ─ ao ar livre, não num jardim zoológico.O animal que eu mais gostava de ver é o leão da montanha. Já sonhei com ele quatro vezese também já lhe vi o rasto. O meu pai escolheu o urso-pardo da América. A minha mãe quer ver um lobo e ouvi-lo uivar. O meu irmão hesita entre um golfinho e uma baleia. Lembro-me de todos porque sou eu que faço as listas. Acabam por achar que valho um milhão de dólares. Protesto, mas anoto a soma. Acabamos por decidir que cada um de nós vale um milhão de dólares. A soma de toda a nossa riqueza totaliza agora quatro milhões e quinhentos mil dólares. Dou-me conta de que quero adicionar cinco mil dólares pelo prazer que me causa vaguear pelo campo, sozinha, livre com um lagarto, sem ter de seguir trilhos, sem ter um plano, apenas pelo prazer de andar ao sabor do vento. A minha família acha que isso vale cinco mil. O que totaliza quatro milhões e cinquenta e cinco mil dólares. Por fim, o meu irmão quer ainda juntar sete dólares por todas as noites em que adormecemos ao ar livre, sob as estrelas. Pensamos que sete dólares são insuficientes e convencemo-lo a arredondar para cinco mil. A minha folha regista agora quatro milhões e sessenta mil dólares ─ e ainda nem sequer começámos a contar o nosso dinheiro em papel-
-moeda. Para ser franca, esse tipo de riqueza já não conta muito neste momento. Sugiro que nem faça parte da nossa lista de riquezas. E, assim, a reunião chega ao fim.
A família foi até lá fora ver o novo quarto de lua. Mas eu fiquei sentada à nossa querida mesa feita à mão, sobre a qual o prato de flores azuis da minha mãe conserva ainda um bolinho, e escrevo este livro sobre nós. Acaricio a mesa e fico contente por a termos. Acho que o título deste livro vai ser A Mesa do.
Byrd Baylor
The Table Where Rich People Sit
New York, Aladdin Paperbacks, 1998
Friday, January 04, 2008
HISTÓRIA DO ARCO-DA-VELHA
Quando o António de Sousa Mendes, passeando na floresta, encontrou dona Florinda Dos Santos, quedou-se espantadíssimo. Todos sabiam que dona Florinda dos Santos tinha sido promovida a bruxa de segunda, com equivalência a mágico de terceira.
Alegre com a sua nova categoria (quem o não estaria?!), pegou no saco dos desejos e disse a António de Sousa Mendes que retirasse três. Ele que não, que não, por quem era, tantos também não, que não merecia, não senhora. Tirou três.
Contente como um passarinho (1), António de Sousa Mendes chegou a casa, um espectacular apartamento de duas divisões – uma para dormir, outra para se lavar de pé, comer de pé, descansar de pé e sonhar de pé – e guardou dois desejos num saquinho de plástico o qual, meticulosamente, alfinetou ao forro do blusão.
1º. DESEJO
Com o primeiro desejo muito direitinho na mão e concentrado como convém a um aprendiz de feiticeiro, disse em voz alta, clara e quase imperiosa:
– Desejo habitar uma casa idêntica à maior parte das pessoas!
Imediatamente, entre duas explosões e três nuvens de fumo branco com estrelas azuis, António de Sousa Mendes viu-se confortavelmente instalado numa barraca counstruída com bidões da Standard Oil e bonitas janelas feitas de caixas de televisores Siera. Uma única divisão, sem latrina nem sanita, sem chuveiro, sem água, sem fogão nem chaminé.
----------
(1) – Os passarinhos nunca estão contentes porque não são mamíferos. Há mamíferos que também nunca estão contentes contudo, a expressão é muito bonita, não é?
2º. DESEJO
António de Sousa Mendes quedou-se triste com a sua primeira experiência e, maldosamente, sempre foi pensando se dona Florinda dos Santos não o estaria a desfrutar. Mas não. Arredou logo essa ideia da mente. Ela sempre se mostrara bondosa para com ele. Bondosa quando, em menino, lhe deu duas laranjas. Bondosa quando, em adulto, lhe deu os três desejos. Dona Florinda dos Santos não era péssima, se bem que as más-línguas se referissem, censurando, ao facto de ter transformado o marido em réptil anfíbio da ordem dos anuros e família dos buforídeos. Por raiva ou por outras razões, chamavam ao marido da dona Florinda dos Santos, após a transformação, de o sapo.
Bem, adiante.
António de Sousa Mendes, triste com a sua nova casa (1), retira o saquinho de plástico e espreita, atento. No fundo, a um cantinho, dois desejos saltitantes e bem frescos aguardavam. Com todo o cuidado pega no segundo desejo, coloca-o na mão estendida e diz:
– Daqui para o futuro quero ser feliz!
O desejo desapareceu, mas sem nuvens de fumo, nem explosões. Houve silêncio apenas. Quietude no seu lar. António olha em redor e vê, sentada num monte de listas amarelas, dona Florinda dos Santos. No bolso da blusa, aos pulos, o seu marido, o sapo.
– António de Sousa Mendes... és parvo!
– Sou, minha senhora.
– E, por seres parvo, já não ficas com o terceiro desejo. Dá cá!
Ele deu lá.
– Querias então ser feliz?!
– Bem... querer, queria.
– Não contes mais comigo. Isso não são coisas que se desejem. Creio mesmo que, por tua causa, já não serei promovida a bruxa de primeira, que me daria equivalência, nas coisas oficiais, a mágico de segunda.
Dona Florinda dos Santos desaparece levando o marido no bolso da blusa. António de Sousa Mendes vê-se com o saco de plástico vazio e naquela casa alatada. Desesperado, vai até à entrada, senta-se numa pedra e começa a uivar.
Felizmente, nesse momento, passa o Gustavo Picão, ferrador de profissão, que se comove e da lancheira retira um osso enorme que lhe oferece, gentil.
António de Sousa Mendes agora já sorri. No fundo, é tudo uma questão de hábito.
(1) – Que possuía, à entrada, um quadrinho bordado à mão, dizendo: “Tinbox, sweet tinbox.”
Alegre com a sua nova categoria (quem o não estaria?!), pegou no saco dos desejos e disse a António de Sousa Mendes que retirasse três. Ele que não, que não, por quem era, tantos também não, que não merecia, não senhora. Tirou três.
Contente como um passarinho (1), António de Sousa Mendes chegou a casa, um espectacular apartamento de duas divisões – uma para dormir, outra para se lavar de pé, comer de pé, descansar de pé e sonhar de pé – e guardou dois desejos num saquinho de plástico o qual, meticulosamente, alfinetou ao forro do blusão.
1º. DESEJO
Com o primeiro desejo muito direitinho na mão e concentrado como convém a um aprendiz de feiticeiro, disse em voz alta, clara e quase imperiosa:
– Desejo habitar uma casa idêntica à maior parte das pessoas!
Imediatamente, entre duas explosões e três nuvens de fumo branco com estrelas azuis, António de Sousa Mendes viu-se confortavelmente instalado numa barraca counstruída com bidões da Standard Oil e bonitas janelas feitas de caixas de televisores Siera. Uma única divisão, sem latrina nem sanita, sem chuveiro, sem água, sem fogão nem chaminé.
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(1) – Os passarinhos nunca estão contentes porque não são mamíferos. Há mamíferos que também nunca estão contentes contudo, a expressão é muito bonita, não é?
2º. DESEJO
António de Sousa Mendes quedou-se triste com a sua primeira experiência e, maldosamente, sempre foi pensando se dona Florinda dos Santos não o estaria a desfrutar. Mas não. Arredou logo essa ideia da mente. Ela sempre se mostrara bondosa para com ele. Bondosa quando, em menino, lhe deu duas laranjas. Bondosa quando, em adulto, lhe deu os três desejos. Dona Florinda dos Santos não era péssima, se bem que as más-línguas se referissem, censurando, ao facto de ter transformado o marido em réptil anfíbio da ordem dos anuros e família dos buforídeos. Por raiva ou por outras razões, chamavam ao marido da dona Florinda dos Santos, após a transformação, de o sapo.
Bem, adiante.
António de Sousa Mendes, triste com a sua nova casa (1), retira o saquinho de plástico e espreita, atento. No fundo, a um cantinho, dois desejos saltitantes e bem frescos aguardavam. Com todo o cuidado pega no segundo desejo, coloca-o na mão estendida e diz:
– Daqui para o futuro quero ser feliz!
O desejo desapareceu, mas sem nuvens de fumo, nem explosões. Houve silêncio apenas. Quietude no seu lar. António olha em redor e vê, sentada num monte de listas amarelas, dona Florinda dos Santos. No bolso da blusa, aos pulos, o seu marido, o sapo.
– António de Sousa Mendes... és parvo!
– Sou, minha senhora.
– E, por seres parvo, já não ficas com o terceiro desejo. Dá cá!
Ele deu lá.
– Querias então ser feliz?!
– Bem... querer, queria.
– Não contes mais comigo. Isso não são coisas que se desejem. Creio mesmo que, por tua causa, já não serei promovida a bruxa de primeira, que me daria equivalência, nas coisas oficiais, a mágico de segunda.
Dona Florinda dos Santos desaparece levando o marido no bolso da blusa. António de Sousa Mendes vê-se com o saco de plástico vazio e naquela casa alatada. Desesperado, vai até à entrada, senta-se numa pedra e começa a uivar.
Felizmente, nesse momento, passa o Gustavo Picão, ferrador de profissão, que se comove e da lancheira retira um osso enorme que lhe oferece, gentil.
António de Sousa Mendes agora já sorri. No fundo, é tudo uma questão de hábito.
(1) – Que possuía, à entrada, um quadrinho bordado à mão, dizendo: “Tinbox, sweet tinbox.”
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