Thursday, January 17, 2008

UM CÃO CHAMADO SAUDADE

Quando fomos para o quintal naquela manhã, o cão saltou de contente e lambeu-nos as mãos. Nunca nos tínhamos visto. Chamámos pela mãe e, quando ela viu o bicho, disse que ainda era novinho, que estava bem tratado e completou:
- Deve ter vindo com o vosso pai. Os boémios e os cães dão-se bem.
Resolvida a origem, tratámos de lhe arranjar um nome. Vários foram ditos mas, quando a mãe referiu que o bicho era um fox-terrier, ele levantou a cabeça. Tentámos mais vezes e ele reagia sempre à palavra Fox. Ficou Fox.
Resolvidos a origem e o nome, havia que resolver a co-habitação com dois gatos residentes: o Dom Fuas Roupinho e o Espadinha-até-à-última. Este, de aspecto asqueroso, cheio de pinceladas de amarelo no corpo e com os pêlos do rabo cortados em forma de um raio celeste, terminando em ponta de cauda de diabo, uma ignomínia efectuada por um dos rapazes. Éramos três, com uma menina mais velha a aquietar-nos.
Os gatos residentes, bem novinhos também, fizeram a sua parte encarquilhando a espinha eriçada e bufando. O Fox riu-se para eles bem-disposto. Passados poucos dias já os gatos dormiam, sem qualquer respeito, sobre o seu dorso.
O Fox, como todo o mundo, tinha coisas boas e coisas divertidas. As boas eram as suas maneiras, gostar de nós, ir connosco para a praia, brincar connosco ao “faz de conta que te agarro o rabo”; as divertidas eram as cenas dele a correr atrás dos gatos da vizinhança, ladrando furioso e depois regressar olhando para nós e dizendo: “Vêem como defendo o quartel?” Outra curiosidade do Fox: quando ia com a mãe às compras, era a de não se sentar no chão, fosse ele de que matéria fosse: mármore, alcatrão, madeira. Nenhuma era suficientemente nobre para acolher o seu rabo. Entrava em qualquer loja com a mãe e procurava imediatamente um papel, um bilhete de eléctrico, o que fosse, para se sentar. Um dia, no talho, não encontrando nada para o efeito, sentou-se na biqueira do sapato da mãe. Um cão divertido.
Aos sábados, domingos e feriados, íamos todos com o Fox para a praia da Polana. Tomávamos banho na área protegida contra os tubarões e às vezes os meus irmãos nadavam para a prancha de saltos, montada numa plataforma, com o Fox atrás. Ainda estou para saber por que razão não batiam todos os recordes pois o Fox a nadar, em sua perseguição, arranhava as costas que tinha à sua frente. A mais velha, a menina, tinha as costas dignas de figuração em qualquer filme de romanos contra os cristãos. Um dia ela fez-lhe uma partida: saltou da prancha e, submersa, nadou para a traseira da plataforma. O Fox corria de um lado para o outro, olhando o mar, ladrando e ganindo aflito. Pobre bicho preocupado.
No regresso da praia, cheios de fome e sede, fazíamos, por hábito, escala no “Paraíso” uma quinta abandonada com várias laranjeiras enxertadas em limoeiros. O Fox via-nos a comer limão e também queria. Dávamos-lhe pequenos pedaços que ele enrolava na boca, desgostoso, olhando para nós numa aflição, mas mesmo assim engolindo-os. Valente cão.
E um dia aconteceu o inimaginável: o Fox desapareceu. Corremos os arredores, perguntámos. Ninguém vira. Ninguém sabia. Nem o dono da mercearia. Percebemos que sofria por ter perdido o seu melhor cliente. À porta da loja prantava-se uma lata grande com azeite e chouriços e ele punha sempre alguns na conta da mãe dizendo ter sido o Fox a roubá-los.
Passaram-se dois dias e nada de Fox, para nosso desespero e também para desgosto do Dom Fuas e do Espadinha.
Até que telefonou uma senhora à mãe dizendo que o Fox estava em sua casa, que era afinal a casa do Fox, aliás Peludo. A senhora era casada mas não tinha filhos. Contou que, quando o cão lhe desapareceu, ela e o marido foram perguntando até que descobriram onde aquele figurão se aboletara. Perceberam também que tratávamos bem do bicho e que ele era feliz com as crianças. Disse à mãe que, assim como ele fora à sua antiga casa, o mais certo seria qualquer dia regressar à nossa, para matar saudades dos meninos. E assim foi. Quase passou a rotina: quando lhe dava a saudade, vinha Fox por três meses para o pé de nós. Depois, quatro ou cinco meses vividos, chamava-se Peludo e ia viver com os antigos e verdadeiros donos. Quando a mãe nos dizia de manhã, “Há uma surpresa agradável para vocês”, já sabíamos. Íamos a gritar por ele até lá fora e sujávamo-nos todos nas brincadeiras de rebolar no chão.
Neste momento, o cão não se chama Fox nem Peludo. Apenas saudade.

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