A carripana carregada de livros, descia a Alexandre Herculano, passava obrigatoriamente pelo Paraíso, pelo contista Loureiro Botas a vender copos de leite à esquina, cortava à direita pela avenida da Liberdade e, mais abaixo, outra vez à direita entrando no Parque Mayer. Era o Movimento Literário Português dos anos 50. Esta carripana era constituída por um enorme gavetão rectangular, com quatro rodas de bicicleta (uma delas empenada) um varão com o timoneiro traseiro empurrando, gordo, mal-enjorcado e talvez o maior crítico português da actualidade. Uma frente sem beleza nem carranca, completava o Movimento muitas vezes aguardado por clientes fiéis e discretos vendedores com livros embrulhados em papel pardo.
Os livros tinham o preço mínimo de um escudo e o máximo de dois. Havia, porém, umas promoções (financiadas possivelmente pelo Ministério da Cultura): dois livros pelo preço de um. Ele sabia perfeitamente a que livros deveria botar o preço de um ou de dois escudos. Mesmo que os não lesse, pois não lia, obviamente. Aliás, desconfiei durante muitos anos que o presidente do Movimento, e seu principal dinamizador, fosse analfabeto, o que estaria então politicamente correcto.
Como, à época, só tinha dinheiro para o pequeno-almoço e para o almoço, bisbilhotava assiduamente a livralhada, sob o olhar aparentemente desatento do mal-enjorcado, e só ali podia encontrar as novidades literárias que ao fim de um ano não se tinham vendido e alguns restos de colecções, de que os editores se desfaziam para obter espaço no armazém.
Uma vez, por um escudo, comprei um livro chamado “E deitaram fogo ao Planeta”, escrito por um senhor que assinava discretamente J. Matias. A história era simples: um indivíduo com febre altíssima, tinha um pesadelo em que a humanidade, devido à sua sofreguidão em destruir, arrasando florestas e poluindo rios, mares e ares, lançara fogo ao Planeta. Um livro que, a ser publicado hoje, teria actualidade e por certo sucesso, além do patrocínio da Quercos.
Ora vai daí, eu tinha um professor de Física e de Química que se chamava Jorge Matias – um homem inteligentíssimo, culto e de esquerda, obviamente. Abordei-o na primeira oportunidade, perguntando-lhe se era o autor. Disse que não mas descaiu-se ao perguntar, já a dois passos de distância, se eu havia gostado. Cerca de um ano mais tarde voltei ao ataque e o resultado foi novamente negativo. Mas estava na cara que era dele já que o livro denunciava amplos conhecimentos científicos, como era o seu caso, autor dos manuais das disciplinas que leccionava e tinha uma linguagem que se aproximava muito com a utilizada nas aulas.
Numa Sexta-Feira de Alegria, desatinei e comprei dois livros: um de Artur Portela (na altura era Filho mas agora é Órfão), intitulado “A Funda”, e um de Cristopher Morley, que eu desconhecia mas cujo título, em inglês e português, me chamou a atenção: “Trovoada à Esquerda”, da Editorial Gleba, lda. E que livro! – comi-o todo no fim-de-semana, com capa dura e tudo! Uma obra-prima que tanto, mas tanto, publicitei aos amigos que fiquei sem ela. O livro conta uma história simples e profunda. Uma história que começa na meninice e acaba nos trinta e tal anos. Um casal que recebe, na sua casa de férias, uns amigos para o fim-de-semana. Num Verão quente e com trovoada. À esquerda. Várias vidas entrosadas, jogos de espelhos, a riqueza interior de cada ser. “A vida é uma língua estrangeira; poucos a pronunciam correctamente.”
E foi mesmo assim: cinquenta anos depois, a minha amiga Maria de Lourdes arranja-me o livro (com a ajuda de um feiticeiro africano morador em Algés) e abracei-o e reli-o e folheei-o encantado. Então notei que tinha a mesma página 90 suja de tinta tipográfica, tinha a mesma página mal guilhotinada na 181 e o mesmo nome apagado com violência na página um. Em resumo: era o meu, que voltara por amor.
Álvaro Belo Marques
(In TempoLivre, de Fevereiro de 2009
Wednesday, February 04, 2009
Monday, February 02, 2009
O BAIRRO DA LATA
Sempre que me passa pelas mãos o Bairro da Lata, não resisto a ler a passagem
da ida dos rapazes â caça das rãs e de como o Gay é louvado no final.
Devem estar recordados que o Gay ingressou no grupo quando saiu de casa por
a mulher lhe bater.
O modelo t Ford de Lee Chong possuía uma história
respeitável Em 1923 fora carro de turismo do Dr. W. T.
Waters. Este
utilizou-o durante cinco anos e vendeu-o depois a um agente
de seguros de nome Rottle. Mr. Rottle não era homem
cuidadoso. Conduzia à bruta o carro que adquirira em óptimo
estado. Mr. Rottle bebia nas noi tes de sábado e o carro
ressentia-se. Amolgaram-se e partiram-se o; guarda-lamas. O
abuso dos travões forçava à substituição frequente das cintas.
Quando Mr. Rottle desviou o dinheiro de um cliente e fugiu na
companhia de uma loura espampanante, foi apanhado e engaiolado
no espaço de dez dias. A carroçaria estava tão amachucada que
o novo proprietário cortou-a em duas e acrescentou-lhe uma
pequena caixa de camião.
O proprietário seguinte tirou-lhe a parte dianteira da
cabina e o pára-brisas. Servia-se dele para arrancar
percebes e regalava-se com a brisa fresca na cara.
Chamava-se Francis Almones e levava vida triste, pois ganhava
sempre menos uma fracção do que precisava para viver. O pai
deixara-lhe uns dinheiritos, mas ano após ano, mês após mês,
por mais que Francis trabalhasse, por mais cuidado que
tivesse, o dinheiro ia diminuindo, até que por fim secou de
todo, sumiu-se. Lee Chong recebera a camioneta em troca de
uma conta da mercearia. Por essa altura o carro não era mais
do que quatro rodas e um motor; e este tão emperrado, tão
embezerrado e caturra, que requeria cuidados e estudos
especializados.
Lee Chong não lhos proporcionava, do que resultava
permanecer o carro na relva por trás da mercearia quase sempre
com abóboras a crescerem-lhe entre os raios. Tinha pneus
sólidos nas rodas traseiras
e uns cepos erguiam do chão as da frente.
É provável que qualquer dos rapazes do Palácio Flophouse
pudesse pôr o carro em boa forma, pois eram todos mecânicos
competentes e com prática, mas Gay era um mecânico inspirado.
Não há termo aplicável a semelhante mecânico que se compare a
mãos de fada, mas devia haver. Porque existiam homens capazes
de ver, ouvir, sondar, ajustar, e a máquina funciona. Na
verdade, há homens nas mãos dos quais um motor funciona
melhor. Assim era Gay. Os seus dedos sobre um distribuidor ou
um parafuso de afinação do carburador eram leves, seguros,
conhecedores. Conseguira consertar os delicados motores
eléctricos no Laboratório. Podia, se quisesse, ter sempre
trabalho nas fábricas, pois nessa indústria, onde amargamente
se queixam quando não realizam cada ano o total do capital em
lucros, são muito menos importantes as máquinas do que as
declarações fiscais. De facto, se fosse possível enlatar
sardinhas com relatórios, os donos ficariam imensamente
felizes. Assim, empregavam uns velhos horrores de máquinas
decrépitas, trepidantes, necessitando dos cuidados constantes
de um homem como Gay. Mack fez os rapazes levantarem-se
cedo. Tomaram o seu café e dirigiram-se logo para onde o carro
se encontrava, entre as ervas. Gay superintendia. Deu uns
pontapés nas rodas encalhadas da frente.Vão pedir uma bomba
emprestada e encham-me isso - disse. A seguir meteu um pau no
reservatório da gasolina por baixo da prancha que servia de
assento. Por milagre havia meia polegada de gasolina no
reservatório. Depois Gay passou revista às dificuldades mais
prováveis. Tirou fora as caixas das bobinas, raspou os
platinados, ajustou a folga e voltou a colocá-los nos seus
lugares. Abriu o carburador para certificar-se de que a
gasolina chegava lá. Deu à manivela para ter a certeza de que
a cambota não gelara de todo e os pistões não estavam
enferrujados.
Entretanto chegou a bomba e Eddie e Jones, revezando-se,
encheram os pneus. Gay cantarolava - tum-ta ta, tum-ta ta -
enquanto trabalhava. Tirou as velas, limpou os eléctrodos e
raspou o carvão. Depois escorreu um pouco da gasolina para uma
lata e deitou alguma em cada um dos cilindros antes de colocar
as velas novamente nos seus lugares. Endireitou-se. - A gente
vai precisar dum par de pilhas secas - disse.
Vê se consegues quo Lee Chong tas dê.
Mack partiu e voltou quase a seguir com um não universal,
destinado por Lee Chong a cortar quaisquer pedidos futuros.
Gay reflectiu intensamente. - Sei ondhá um par delas, bem boas
por sinal, mas eu cá não vou buscá-las.
- Ondé? - perguntou Mack.
- Na cave lá de casa - disse Gay. - São as que fazem
funcionar as campainhas da entrada. Sum de vocês se esgueirar
té à cave sem a minha patroa dar por isso, stão ao cimo, no
tabique à esquerda de quem entrar. Mas pormor de Deus não se
deixem apanhar pla patroa. Em conferência, elegeram Eddie
para ir, e ele partiu. - Se fores apanhado não fales em mim -
gritou-lhe Gay à partida. Entretanto experimentava as cintas.
O pedal alto e baixo não tocava no chão, por isso concluiu que
lhe restava ainda alguma cinta. O pedal do travão, esse sim,
encostava completamente no chão, portanto não havia travão;
mas o pedal de marcha-atrás ainda conservava muita cinta por
gastar. No modelo T do Ford o pedal de marcha-atrás é a tábua
de salvação. Quando falha o travão pode utilizar-se a
marcha-atrás em sua substituição. E quando a cinta de
velocidade baixa está gasta de mais para se poder subir uma
ladeira íngreme, então pode dar-se a volta ao carro e metê-lo
em marcha-atrás. Gay verificou que a marcha-atrás estava em
bom estado e tinha a certeza de que tudo correria bem.
Foi de bom augúrio ter o Eddie regressado sem novidade com
as pilhas. Mrs. Gay encontrava-se na cozinha. Eddie ouviu-a a
andar de um lado para o outro, mas ela não ouviu o Eddie.
Tinha um jeitão para coisas destas o Eddie.
Gay ligou as pilhas, acelerou a gasolina e atrasou a
ignição. - Dá à manivela - disse ele.
Um portento, era este Gay - um mecanicozinho de Deus, o S.
Francisco de todas as coisas que rodam, torcem, explodem, o S.
Francisco das bobinas, das cambotas e dos carretos. E se algum
dia toda a caterva de calhambeques avariados, Lusenbergs,
Buicks, De Sottos e Plymouths, Austins americanos e Isotta
Fraschinis elevarem num grande coro os seus louvores a Deus -
será em grande parte devido a Gay e à sua confraria.
Um jeito, só um jeitinho, e o motor pegou, funcionou, falhou
e tornou a pegar. Gay avançou a ignição e desacelerou: Ligou
ao magneto e o Ford do Lee Chong gorgolejou, tremelicou e
estrondeou feliz como se soubesse que trabalhava para alguém
que o amava e compreendia.
da ida dos rapazes â caça das rãs e de como o Gay é louvado no final.
Devem estar recordados que o Gay ingressou no grupo quando saiu de casa por
a mulher lhe bater.
O modelo t Ford de Lee Chong possuía uma história
respeitável Em 1923 fora carro de turismo do Dr. W. T.
Waters. Este
utilizou-o durante cinco anos e vendeu-o depois a um agente
de seguros de nome Rottle. Mr. Rottle não era homem
cuidadoso. Conduzia à bruta o carro que adquirira em óptimo
estado. Mr. Rottle bebia nas noi tes de sábado e o carro
ressentia-se. Amolgaram-se e partiram-se o; guarda-lamas. O
abuso dos travões forçava à substituição frequente das cintas.
Quando Mr. Rottle desviou o dinheiro de um cliente e fugiu na
companhia de uma loura espampanante, foi apanhado e engaiolado
no espaço de dez dias. A carroçaria estava tão amachucada que
o novo proprietário cortou-a em duas e acrescentou-lhe uma
pequena caixa de camião.
O proprietário seguinte tirou-lhe a parte dianteira da
cabina e o pára-brisas. Servia-se dele para arrancar
percebes e regalava-se com a brisa fresca na cara.
Chamava-se Francis Almones e levava vida triste, pois ganhava
sempre menos uma fracção do que precisava para viver. O pai
deixara-lhe uns dinheiritos, mas ano após ano, mês após mês,
por mais que Francis trabalhasse, por mais cuidado que
tivesse, o dinheiro ia diminuindo, até que por fim secou de
todo, sumiu-se. Lee Chong recebera a camioneta em troca de
uma conta da mercearia. Por essa altura o carro não era mais
do que quatro rodas e um motor; e este tão emperrado, tão
embezerrado e caturra, que requeria cuidados e estudos
especializados.
Lee Chong não lhos proporcionava, do que resultava
permanecer o carro na relva por trás da mercearia quase sempre
com abóboras a crescerem-lhe entre os raios. Tinha pneus
sólidos nas rodas traseiras
e uns cepos erguiam do chão as da frente.
É provável que qualquer dos rapazes do Palácio Flophouse
pudesse pôr o carro em boa forma, pois eram todos mecânicos
competentes e com prática, mas Gay era um mecânico inspirado.
Não há termo aplicável a semelhante mecânico que se compare a
mãos de fada, mas devia haver. Porque existiam homens capazes
de ver, ouvir, sondar, ajustar, e a máquina funciona. Na
verdade, há homens nas mãos dos quais um motor funciona
melhor. Assim era Gay. Os seus dedos sobre um distribuidor ou
um parafuso de afinação do carburador eram leves, seguros,
conhecedores. Conseguira consertar os delicados motores
eléctricos no Laboratório. Podia, se quisesse, ter sempre
trabalho nas fábricas, pois nessa indústria, onde amargamente
se queixam quando não realizam cada ano o total do capital em
lucros, são muito menos importantes as máquinas do que as
declarações fiscais. De facto, se fosse possível enlatar
sardinhas com relatórios, os donos ficariam imensamente
felizes. Assim, empregavam uns velhos horrores de máquinas
decrépitas, trepidantes, necessitando dos cuidados constantes
de um homem como Gay. Mack fez os rapazes levantarem-se
cedo. Tomaram o seu café e dirigiram-se logo para onde o carro
se encontrava, entre as ervas. Gay superintendia. Deu uns
pontapés nas rodas encalhadas da frente.Vão pedir uma bomba
emprestada e encham-me isso - disse. A seguir meteu um pau no
reservatório da gasolina por baixo da prancha que servia de
assento. Por milagre havia meia polegada de gasolina no
reservatório. Depois Gay passou revista às dificuldades mais
prováveis. Tirou fora as caixas das bobinas, raspou os
platinados, ajustou a folga e voltou a colocá-los nos seus
lugares. Abriu o carburador para certificar-se de que a
gasolina chegava lá. Deu à manivela para ter a certeza de que
a cambota não gelara de todo e os pistões não estavam
enferrujados.
Entretanto chegou a bomba e Eddie e Jones, revezando-se,
encheram os pneus. Gay cantarolava - tum-ta ta, tum-ta ta -
enquanto trabalhava. Tirou as velas, limpou os eléctrodos e
raspou o carvão. Depois escorreu um pouco da gasolina para uma
lata e deitou alguma em cada um dos cilindros antes de colocar
as velas novamente nos seus lugares. Endireitou-se. - A gente
vai precisar dum par de pilhas secas - disse.
Vê se consegues quo Lee Chong tas dê.
Mack partiu e voltou quase a seguir com um não universal,
destinado por Lee Chong a cortar quaisquer pedidos futuros.
Gay reflectiu intensamente. - Sei ondhá um par delas, bem boas
por sinal, mas eu cá não vou buscá-las.
- Ondé? - perguntou Mack.
- Na cave lá de casa - disse Gay. - São as que fazem
funcionar as campainhas da entrada. Sum de vocês se esgueirar
té à cave sem a minha patroa dar por isso, stão ao cimo, no
tabique à esquerda de quem entrar. Mas pormor de Deus não se
deixem apanhar pla patroa. Em conferência, elegeram Eddie
para ir, e ele partiu. - Se fores apanhado não fales em mim -
gritou-lhe Gay à partida. Entretanto experimentava as cintas.
O pedal alto e baixo não tocava no chão, por isso concluiu que
lhe restava ainda alguma cinta. O pedal do travão, esse sim,
encostava completamente no chão, portanto não havia travão;
mas o pedal de marcha-atrás ainda conservava muita cinta por
gastar. No modelo T do Ford o pedal de marcha-atrás é a tábua
de salvação. Quando falha o travão pode utilizar-se a
marcha-atrás em sua substituição. E quando a cinta de
velocidade baixa está gasta de mais para se poder subir uma
ladeira íngreme, então pode dar-se a volta ao carro e metê-lo
em marcha-atrás. Gay verificou que a marcha-atrás estava em
bom estado e tinha a certeza de que tudo correria bem.
Foi de bom augúrio ter o Eddie regressado sem novidade com
as pilhas. Mrs. Gay encontrava-se na cozinha. Eddie ouviu-a a
andar de um lado para o outro, mas ela não ouviu o Eddie.
Tinha um jeitão para coisas destas o Eddie.
Gay ligou as pilhas, acelerou a gasolina e atrasou a
ignição. - Dá à manivela - disse ele.
Um portento, era este Gay - um mecanicozinho de Deus, o S.
Francisco de todas as coisas que rodam, torcem, explodem, o S.
Francisco das bobinas, das cambotas e dos carretos. E se algum
dia toda a caterva de calhambeques avariados, Lusenbergs,
Buicks, De Sottos e Plymouths, Austins americanos e Isotta
Fraschinis elevarem num grande coro os seus louvores a Deus -
será em grande parte devido a Gay e à sua confraria.
Um jeito, só um jeitinho, e o motor pegou, funcionou, falhou
e tornou a pegar. Gay avançou a ignição e desacelerou: Ligou
ao magneto e o Ford do Lee Chong gorgolejou, tremelicou e
estrondeou feliz como se soubesse que trabalhava para alguém
que o amava e compreendia.
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