Wednesday, February 04, 2009

TROVOADA À ESQUERDA

A carripana carregada de livros, descia a Alexandre Herculano, passava obrigatoriamente pelo Paraíso, pelo contista Loureiro Botas a vender copos de leite à esquina, cortava à direita pela avenida da Liberdade e, mais abaixo, outra vez à direita entrando no Parque Mayer. Era o Movimento Literário Português dos anos 50. Esta carripana era constituída por um enorme gavetão rectangular, com quatro rodas de bicicleta (uma delas empenada) um varão com o timoneiro traseiro empurrando, gordo, mal-enjorcado e talvez o maior crítico português da actualidade. Uma frente sem beleza nem carranca, completava o Movimento muitas vezes aguardado por clientes fiéis e discretos vendedores com livros embrulhados em papel pardo.

Os livros tinham o preço mínimo de um escudo e o máximo de dois. Havia, porém, umas promoções (financiadas possivelmente pelo Ministério da Cultura): dois livros pelo preço de um. Ele sabia perfeitamente a que livros deveria botar o preço de um ou de dois escudos. Mesmo que os não lesse, pois não lia, obviamente. Aliás, desconfiei durante muitos anos que o presidente do Movimento, e seu principal dinamizador, fosse analfabeto, o que estaria então politicamente correcto.

Como, à época, só tinha dinheiro para o pequeno-almoço e para o almoço, bisbilhotava assiduamente a livralhada, sob o olhar aparentemente desatento do mal-enjorcado, e só ali podia encontrar as novidades literárias que ao fim de um ano não se tinham vendido e alguns restos de colecções, de que os editores se desfaziam para obter espaço no armazém.

Uma vez, por um escudo, comprei um livro chamado “E deitaram fogo ao Planeta”, escrito por um senhor que assinava discretamente J. Matias. A história era simples: um indivíduo com febre altíssima, tinha um pesadelo em que a humanidade, devido à sua sofreguidão em destruir, arrasando florestas e poluindo rios, mares e ares, lançara fogo ao Planeta. Um livro que, a ser publicado hoje, teria actualidade e por certo sucesso, além do patrocínio da Quercos.

Ora vai daí, eu tinha um professor de Física e de Química que se chamava Jorge Matias – um homem inteligentíssimo, culto e de esquerda, obviamente. Abordei-o na primeira oportunidade, perguntando-lhe se era o autor. Disse que não mas descaiu-se ao perguntar, já a dois passos de distância, se eu havia gostado. Cerca de um ano mais tarde voltei ao ataque e o resultado foi novamente negativo. Mas estava na cara que era dele já que o livro denunciava amplos conhecimentos científicos, como era o seu caso, autor dos manuais das disciplinas que leccionava e tinha uma linguagem que se aproximava muito com a utilizada nas aulas.

Numa Sexta-Feira de Alegria, desatinei e comprei dois livros: um de Artur Portela (na altura era Filho mas agora é Órfão), intitulado “A Funda”, e um de Cristopher Morley, que eu desconhecia mas cujo título, em inglês e português, me chamou a atenção: “Trovoada à Esquerda”, da Editorial Gleba, lda. E que livro! – comi-o todo no fim-de-semana, com capa dura e tudo! Uma obra-prima que tanto, mas tanto, publicitei aos amigos que fiquei sem ela. O livro conta uma história simples e profunda. Uma história que começa na meninice e acaba nos trinta e tal anos. Um casal que recebe, na sua casa de férias, uns amigos para o fim-de-semana. Num Verão quente e com trovoada. À esquerda. Várias vidas entrosadas, jogos de espelhos, a riqueza interior de cada ser. “A vida é uma língua estrangeira; poucos a pronunciam correctamente.”

E foi mesmo assim: cinquenta anos depois, a minha amiga Maria de Lourdes arranja-me o livro (com a ajuda de um feiticeiro africano morador em Algés) e abracei-o e reli-o e folheei-o encantado. Então notei que tinha a mesma página 90 suja de tinta tipográfica, tinha a mesma página mal guilhotinada na 181 e o mesmo nome apagado com violência na página um. Em resumo: era o meu, que voltara por amor.
Álvaro Belo Marques
(In TempoLivre, de Fevereiro de 2009

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