Não havia vento nem brisa naquela tarde de domingo. Apenas imperava o tédio que, lentamente, ia percorrendo as ruas, as escadinhas e as vielas de Cascais. O tédio que assomava às pequenas janelas da rua dos Pescadores e lá para dentro espreitava. Gatos e cães dormiam em abandono nas sombras possíveis. O tédio passou então pelo Café Baía e deu um encosto aos rapazes ali sentados, que bocejavam por dentro e malcriadavam por fora. Ouviam-se as moscas. Enfim, passeou pela Praia do Peixe e subiu lentamente à estação dos comboios. A um canto, sentado no carrinho de mão com as costas e a cabeça encostadas à parede, dormitava em paz o Nabiça, destacando-se, na lapela do seu casaco mal enjorcado, um pequeno ramo de espigas. Durante todo o ano, alguma flor, ou legume, tinha de ornar a sua farpela.
“O senhor Nabiça”, como lhe davam trato os veraneantes e turistas que precisavam de alguém que lhes levasse as malas e demais atavios, quando chegavam. Ele conhecia todas as ruas e todos os becos da vila, apesar de ter vindo gaseado da guerra e não dizer, inúmeras vezes, coisa com coisa.
Os rapazes, ainda com a marca do tédio na testa, desejavam uma ideia para se divertir. E tanto procuraram que a encontraram na pessoa do senhor Nabiça. “Damos-lhe uns trocos e ele vai até ao albergue…”
Havia nessa data o GACA 1, Grupo de Artilharia Contra Aeronaves ou, como o povo dizia, Grande Albergue das Crianças Abandonadas, em frente à Cidadela.
Com geral regozijo, lá se foi levar a encomenda ao Nabiça juntamente com dez escudos e procurar um sítio onde se pudesse desfrutar a cena.
O Nabiça foi buscar a condecoração, colocou-a ao lado da espiga e lá foi em passo lento para a porta da Cidadela. Parou frente à sentinela que, esparvoada, olhava de revés para aquela figura. Nisto um raio caiu-lhe na cabeça. Então o mal enjorcado não tinha a Cruz de Guerra?! E lança em pânico um berro longo e forte de “Às armas!”, como se viessem aí outra vez os franceses, mas agora em maior número. Surgem então os restantes elementos da Guarda, arrumando-se enfraldiscados, bocejando, mailo cabo, o sargento e, finalmente, um tenente, magro e comprido, como um ponto de exclamação no fim desta oração fardada. E o ritual obrigatório cumpriu-se: fez-se sentido e os soldados apresentaram armas. O Nabiça, que tinha inchado com a cerimónia, primeiro agradeceu e depois desinchou e encaminhou-se na direcção do Roxo, descendo depois para o Baía.
Os rapazes, entre gargalhadas, fizeram-lhe uma grande recepção e organizavam-se para uma segunda expedição, quando, assombrados, viram o ponto de exclamação na sua frente. Ficaram mudos e quedos.
Sem zanga, disse-lhes o tenente:
- Vocês não sabem o que fizeram. Este homem, o senhor Nabiça, tem a mais alta condecoração militar portuguesa, por coragem e bravura. Mas infelizmente apanhou gases na Primeira Guerra Mundial. Ele merece o nosso respeito e não a nossa chacota. Se o senhor Nabiça voltar à Porta de Armas, mandar-vos-ei prender a todos. Perceberam?
Os rapazes compreenderam. O Nabiça fez uma desajeitada continência e saiu atrás do tenente. Nessa altura o tédio corria como louco pela lota do peixe.
Monday, November 02, 2009
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment