Monday, November 22, 2010

UM RAPAZ DE ESQUERDA

O Joaquim veio do Norte para estudar na universidade em Lisboa. Como era um burguês de poucos recursos, conseguiu ficar num quarto com um conhecido, o César, moço calado e, a maior parte do tempo, ausente. Raramente se viam. O César passava às vezes semanas sem aparecer. Dizia que estudava pelos cafés, mas o Joaquim nunca se encontrou com ele.

Um dia, o César disse ao Joaquim, numa manhã fria de Inverno:
- Olha, tenho de me ausentar por dois, o máximo três dias. Se eu não aparecer nesse prazo de tempo, pegas nesta pasta e deita-a fora. No lixo ou no mar.
E saiu sem mais explicações nem qualquer despedida especial. Viviam há três meses naquele quarto e pouco sabiam um do outro; eram dois autênticos estranhos. O César delicadamente impunha este regime de pouca aproximação. Era esse o seu feitio, pensava o Joaquim.

Precisamente no dia seguinte, ou melhor, na madrugada seguinte, o quarto foi invadido por três agentes da PIDE que revolveram tudo, as malas, os papéis, a roupa e, obviamente, levaram o Joaquim preso. Ele chorava e afirmava que a pasta não era dele mas, a cada nova bofetada, afirmava-o com menos ênfase.

Ficou uns oito dias a chorar e a levar bofetadas até que os esbirros acreditaram que ele nada sabia, que era um ignorante total, e que nem conhecia os exemplares do Avante que enchiam a pasta. E que a pasta nem era dele, era do colega de quarto que se chamava Joaquim. Mas nem no nome do colega acertava, pois o rapaz não se chamava Joaquim, como o informou à bofetada, um agente da PIDE.

Lá saiu com a ficha feita, arranjou outro quarto e continuou a estudar, que foi para isso que veio para a capital. Para estudar e para subir na vida.Mas precisava de dinheiro; o que o pai funcionário público mandava não chegava para nada. Por estreitas portas e ínvias travessas consegue uma entrevista recomendada com o dono de uma agência publicitária que só empregava pessoas, de preferência, de esquerda ou saídas da prisão.
- Então você deixa os Avates dentro da pasta debaixo da cama?!
- Pois foi. Um lapso que me saiu muito caro e à minha rede. (Já sabia o que era uma rede.)
Ao fim de dois anos de agência, um grande jornal em formação precisava de um chefe de publicidade. Correu todo o mercado até que se encontrou com o Joaquim. A administração precisava de um profissional com o rótulo de esquerda e o Joaquim vinha mesmo a calhar.

E ainda hoje, passados já vários anos, o Joaquim continua a ser um indivíduo apelidado de esquerda. Do César nunca soube nada de nada.

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