Friday, April 09, 2010

PERGUNTA EMBARAÇOSA


- O que é que o senhor sabe fazer?

Perguntou-me a moça de sorriso tão aberto quanto frio. Lembrei-me de um dos meus últimos papéis e respondi:

- Sei servir à mesa.

Como estava bem-disposto, continuei, recordando os filmes já feitos ao longo de 70 anos:

- Também dou um jeito na cozinha, já fiz de cozinheiro-chefe num palacete inglês. Fui preceptor de meninos, ladrão de gado no Oeste, padre protestante na Austrália, comandante de um cruzeiro de férias, pistoleiro a soldo num gang durante a lei seca, sabe lá, eu levava aquilo muito a sério pois sempre gostei de whiskey, depois, numa sucessão muito rápida, fui um modesto alfaiate judeu, revendedor de droga e chui antidroga, em filmes seguidos, sem jeito algum, depois… bailarino profissional, e, talvez devido à minha cor escura mediterrânica, fiz de toureiro. Não sei se reparou no leve coxear da perna esquerda, quando entrei… é uma recordação desse papel. Não quis o duplo e foi o resultado.

Ela olhava de olhos bem abertos para mim. Fixamente. Friamente.

- Não há nada de mal em lhe dizer que também fiz de corredor de bicicletas num filme francês. Isto no início, quando ainda não tinha barriga. Deixei-me ficar por França uns tempos até que fui obrigado a cumprir um contrato para uma série televisiva sobre uma célula mafiosa a actuar no Texas, de onde têm saído, como deve saber, grandes mentirosos e também mafiosos. Depois descansei uns tempos em Las Vegas, onde joguei e ganhei numa noite trezentos mil dólares, perdendo, no dia seguinte, trezentos e dez mil no mesmo casino e na mesma roleta. A imprensa menor começou a dizer que eu era um batoteiro e que estava perdido para o Cinema. Isto chegou evidentemente a Hollywood, pois passadas duas semanas, recebi um convite para interpretar uma personagem de Dostoievsky, o Jogador. Mandaram-me o script. Li-o numa noite. Gostei imenso. Isto de estar a fazer o gosto ao dedo e ainda por cima nos pagarem, é uma grande maravilha. Com o dinheiro e o êxito, efectuei o terceiro divórcio e o inevitável acordo de indemnização. Ganhei na roleta fictícia, perdi na vida real. Depois… deixe-me ver… ah! Fiz de motorista entradote ao serviço de uma multimilionária, melhor, motorista para todo o serviço. Um filme com muita graça e um enorme Rolls Royce último modelo. Quando saímos de dentro do filme e como já estávamos habituados um ao outro, com várias cenas de cama à mistura e etc., resolvemos casarmo-nos e lá fui de novo para Las Vegas onde rodei um novo filme interpretando um pugilista na decadência que se deixa subornar para ganhar uns milhares fora do ringue. Enquanto em Hollywood eu treinava no ginásio, corria, saltava à corda, fazia pushing-ball, etc., a minha nova esposa, convencida que ainda era multimilionária, gastava o que não tínhamos nos diversos casinos à sua inteira disposição. Em resumo: mais uma falência e mais um divórcio. Mas desta vez não houve pensão de alimentos.

Como nada acontecesse, ela a olhar para mim e eu para ela, continuei:

- No começo da minha carreira, entrei num dos últimos filmes mudos, um modesto miúdo que ia comprar um ice cream. Depois coisas sem importância, como engraxador – uma cena de apenas um minuto –, vendedor de jornais – um minuto a berrar que nem um desalmado o nome do jornal – também de carteirista astuto e de bêbado assumido.

Parei sem fôlego.

- Bem… - disse ela – não sabe fazer nada.

Tive de concordar. E ela encerrou a sessão:

- Acabe de preencher os impressos, assine, entregue àquela senhora ali e pode ir-se embora. – Fria como um cubo de gelo pelas costas abaixo.

- Muito bem. Obrigado – respondi delicadamente.

2 comments:

Geraldo Brito (Dado) said...

Bem interesante o texto-diálogo. parabéns pelo blog!

Ana Santos said...

Caro sr Álvaro B Marques

Ando em busca de informações acerca de um senhor "Álvaro Belo Marques", autor de umas traduções, e por motivos de pesquisa académica, e gostava de saber se por acaso quem eu procuro será o autor deste blog - ou se o autor deste blog terá algum conhecimento acerca do senhor Belo Marques que eu procuro.


cumprimentos,
Ana Santos