Monday, August 16, 2010

APESAR DAS GUERRAS

Ao contrário da minha filha Alexandra, para quem a época ideal para viver seria aquela em que Dartagnan ou Lagardère a convidaria para dançar no baile da rainha, gosto de ter nascido no século XX. Apesar das guerras.
Ao que eu tenho assistido! Quase não dá para contar. Uma vez, estava eu a estudar, com o Rádio Club Português em fundo, eram quase onze da noite, quando oiço o professor de Aerodinâmica no IST, doutor Varela Cid, dizer que o Sputnic era uma invenção propagandística dos russos e que era impossível lançar no espaço um satélite artificial. Logo em seguida, falou Henrique Galvão, pela Aeronáutica Civil, dizendo que, para pôr um satélite em órbita, bastava ter tecnologia e cérebros. Dá as onze e o RCP anuncia que o Observatório Nacional acabava de assinalar a passagem do Sputnic e que o seu bip-bip se poderia ouvir na frequência tal e tal, a dos crédulos. O professor, se tivesse esperado cinco minutos, não teria caído no ridículo. Isto apesar das guerras.
Depois, a rainha do nosso mais antigo desaliado, resolve vir ver os seus súbditos mais escurinhos devido ao sol. E passámos todos a ver televisão a cores. Os ditos televisores a cores depressa se esgotaram nos importadores, já que se sabia de fonte segura que a rainha só gostava de se mostrar policromaticamente. Ao que eu assisti… apesar das guerras.
Rapazinho de dezassete anos, adorava a rádio e fiz uma galena, coisa que hoje ninguém sabe o que é. Depois assisti a uma das maiores conquistas científicas da história: o transístor. (Que muito veio acudir e ajudar nas guerras, incluindo a das estrelas.) Na altura andava eu às voltas com a 117L7, uma válvula de funções múltiplas, para construir o meu emissor-receptor, indispensável ao radioamadorismo.
De repente, estava eu muito sossegado a ler, casado e pai de filhas, veio a minha mulher a correr, a chamar-me, excitada, que estava um homem na Lua. E fiquei toda a noite a ver o homem na Lua. Apesar das guerras, ou por causa delas.
O transístor, voltamos a ele, foi um sarilho: permitiu realizar o sonho de todos os autores de FC, desde Azimov a Ray Bradbury, passando pelos Clarks e companhia: a miniaturização. Diminuíram de tamanho os rádio-receptores e os aparelhos de televisão. Entretanto já tinha comprado um kit americano com as peças todas e construí o primeiro amplificador estéreo que entrou lá em casa. Entrou digno pelo seu pé e por lá ficou, após trinta noites a montá-lo. Era um encanto. Ficávamos a ouvir estereofonia e a babarmo-nos de prazer. Olha este canal… olha agora este… O jazz era mais jazz mas, para Beethoven, estéreo ou monoral era-lhe indiferente. Feitios. E quanto aos discos, fomos passando do 78 r.p.m., em massa, para o de 45, depois o de 33 e um terço em vinil, e agora o compacto. Comum a todos eles, o buraco no meio.
Ao que eu assisti, leitor! Estava eu muito distraído a fazer a tropa e o Fleming a exportar Penicilina para todo o mundo… para bem da guerra. E por causa da guerra também veio o DDT, o insecticida em pó que se dava aos soldados por causa dos bichinhos. Testado antes pelos soldados americanos. Na guerra. E também por causa dela, o sonar e o radar.
Tinha lido num periódico acerca do concurso da BBC para um minicomputador. Um concorrente importante mas que não ganhou, chamava-se Clovis Sinclair, um génio a quem mais tarde, por culpa da rainha, se chamou depreciativamente Lord. Ora o Clovis, com um menino tão bonito nas mãos, apesar de recusado pela BBC, resolveu fabricá-lo às toneladas e vendê-lo em todo o mundo. Foi assim que eu recebi o meu primeiro ZX Spectrum, um miniprocessador que, acoplado a um gravador de fita magnetofónica, fazia maravilhas. Depois veio o QL, depois o Philips, depois o… e o… e o… e o Hyundai agora a olhar para mim e eu desgostoso de ver este maldito aparelho ter mais memória que eu.
Uma noite deu-me na cabeça e fui fazer o meu 25 de Abril. Por dentro dele. Inolvidável madrugada em que os redactores, chamados a meio ou no começo do sono, não se apresentaram contrariados ou reclamantes. Vieram a rir e a abraçarem-se uns aos outros. Alguns vertiam lágrimas felizes. Alguns trouxeram mais cinco. E isto por causa das guerras. Não posso esquecer ter andado quarenta dias na clandestinidade, a dormir no chão, tendo por almofada uma resma de papel para duplicador. Depois do 25 de Abril.
Mas o que realmente tem sempre estragado tudo, estimado leitor, é esse estúpido flagelo humano: a guerra, ou seja, o homem.

Álvaro Belo Marques

(in TempoLivre, revista do Inatel)

1 comment:

Dario Belo Marques said...

Já tinha lido esta crónica. No entanto, não me canso de a reler. Está brilhante e mordaz.
Grande abraço Pai.