Thursday, February 28, 2008

DANIEL MAQUINASSE, O FIEL GUERRILHEIRO

Levávamos já algumas semanas de trabalho quando Daniel Maquinasse me deu a sua primeira lição. Lição de respeito e de dignidade.
Tínhamos à nossa frente, numa ampla mesa rectangular, milhares de fotografias a preto e branco, de vários formatos e tonalidades, sobre Moçambique e a sua guerra de libertação. Sob a orientação de um quadro político superior mas também ele um amante da fotografia e um esteta, fazíamos a selecção das fotos que deveriam figurar no livro do III Congresso.
Como é de prever, a maioria das fotos era comentada para meu esclarecimento. Quando não o faziam livremente e a minha curiosidade apertava, não hesitava em perguntar.
As fotos eram divididas por temas, um monte para cada, levando-nos muitas vezes a seleccionar um e voltar a vê-las para segundas e terceiras escolhas. Pois numa dessas passagens, voltei a deparar com uma bonita e elegante enfermeira, impecável na sua bata branca, sob um alpendre que me pareceu camuflado. Não resisti ao comentário pouco feliz:
- O camarada Maquinasse, apesar de todas as dificuldades na guerrilha, tinha boa assistência médica. Muito boa.
Ele, homem alto e entroncado, forte, pegou na foto, mirou-a (saudade?) e disse-me com uma ponta de censura:
- É mamana. De três filhos.
Sabendo já o respeito do moçambicano pelas mães, um título reverenciado e sempre respeitado, apressei-me a desculpar-me pela minha ignorância.
Primeira lição.

Este trabalho para O Livro do III Congresso continuou por várias semanas, de tarde e de noite, fazendo-nos mais próximos e amigos, como é natural. E um dia perguntei-lhe:
- O camarada Maquinasse com que máquina fotografava os objectivos?
Olhou-me por um momento, vendo onde eu queria chegar. Como na esteira do seu olhar não vislumbrasse maldade ou ironia, respondeu:
- Câmara normal com uma lente 50.
Tive autenticamente um sobressalto.
- Uma 50?!
- Sim, uma 50.
- Mas com essa objectiva, tinha de se colocar a poucos metros dos alvos para sair alguma coisa com utilidade militar… Mesmo junto das tropas e dos quartéis dos militares portugueses. Quase um suicídio…
- É verdade, mas eu não tinha outra…
Um herói, de poucas palavras e muita dignidade. Um guerrilheiro assumido e consciente das suas obrigações e tarefas.
Segunda lição.

Em outro momento de conversa, querendo mostrar o meu “africanismo”, sempre lhe fui contando que em miúdo, quando passava todas as manhãs pela Escola Primária na antiga Lourenço Marques, apanhara matacanha.
- Sabe lá, camarada Maquinasse. Aquilo dói e ao mesmo tempo faz uma comichão dos diabos. Era no dedo grande do pé direito. O mainato, com uma agulha, enquanto me explicava a cirurgia, avisava que deveria haver o cuidado de não rebentar a bolsa para que os bichinhos não se espalhassem pelo pé.
Ele sorria com a explicação. Depois emudeceu. (Agora sei que considerava se devia ou não contar-me.)
– Matacanha… O camarada Belo Marques não sabe o que é matacanha. Eu e quase todos os guerrilheiros estávamos com os pés cheios. Não era só num dedo… era em todos! Quando tínhamos tempo e havia petróleo, encharcávamos os pés… - e continuou a recordar muito sério, como era seu hábito – fazíamos dezenas de quilómetros… quarenta, cinquenta…
- Com matacanha nos pés?!
- Sim. Tínhamos de assentar o calcanhar primeiro… andar nos calcanhares…
- Isso era muito doloroso…
- E com um morteiro ligeiro ao ombro…
Abnegação e sofrimento. Em silêncio, sem alardes.
Terceira lição.

Soube que o Daniel Maquinasse todas as manhãs, de fato de treino, corria na marginal e subia a barreira. Era um bom exercício físico para um jovem, não para o Maquinasse. Como já tinha um certo à-vontade com ele, falei-lhe nisso. Calmo e sério, como sempre, respondeu-me:
- Faço isso, sim. Nunca sei se o camarada presidente vai precisar de mim. Não podemos saber, não é? Sou seu guarda-costas em vários momentos. Não sei se haverá outros e quero estar em forma se ele me chamar.
Na verdade, quando o Presidente Samora fazia férias no Bilene, era o Maquinasse que o acompanhava a nadar, um pouco mais atrás e vigilante.
Fidelidade e respeito.
Quarta lição.

No dia 19 de Outubro de 1986 foi assassinado Samora Machel.
Daniel Maquinasse, o fiel guerrilheiro, morreu com ele.

Álvaro Belo Marques
(In Savana, ssemanário de Moçambique)

1 comment:

Unknown said...

tive conhecido Daniel em Maputo no 1983 e deixou-me uma boa lembrança que encontrei no seu artigo.
Obrigado Sr Marques.
Lorenzo Audisio