Thursday, February 21, 2008

TAL COMO AS TRÍFIDES

O Dia das Trífides é uma história assustadora. Não se pode esquecer mais. Toda ela. Mas o começo… a dona da casa, na cozinha, que olha distraidamente para as traseiras da casa e tem a sensação de que há qualquer coisa que se mexe, que muda de lugar. Mas, quando olha mais atentamente, não vê nada… sente apenas que o cenário mudou.
São as Trífides que se aproximam. Plantas altas e inteligentes, num figurino próximo de um girassol gigante, que irão perturbar o equilíbrio social (se é que ele existe), do Homem na Terra. Começa por o dominar pelo insólito, pelo medo e, finalmente, pela sua força e unidade. Força consciente, precisa, determinada. As Trífides serão os ditadores inflexíveis e sanguinários, os justiceiros cegos, desde o momento em que se unem. Uma história inquietante de John Windham.
Pois, quer eu queira quer não, estou a ver as Trífides. Todos os dias as vejo. À mesma hora. Da minha janela ampla e rasgada vejo, ao final do dia, a chegada das Trífides, em bandos, aparentemente desorganizados. Não vêm marchando marcialmente, como soldados, alinhados pela esquerda, e de passada firme e rítmica. Não vêm subtilmente, suavemente aos poucos, deslizando, cercando, caminhando pedaço aqui, pedaço ali, palmo a palmo. Não, senhores. As minhas Trífides vêm em bandos desorganizados, mas firmes e determinadas. E não se ocultam, não disfarçam a presença.
Quando o sol começa a recolher-se, entre belos clarões vermelhos, aí chega o bando de crianças rotas, esfarrapadas e, obviamente, esfomeadas, percorrendo o bairro e investigando o conteúdo dos caixotes do lixo. Esqueletos mal cobertos, ventres amplos, olhar astuto (próprio do esfomeado ou do assaltante), miram de longe as vivendas importantes deste meu bairro. Depois disputam aos cães aquele osso de costeleta e, a mim, aquele pedaço de paz consciencial que a todos nos parece assistir, aquando das antigas e remotas sinadas das Trindades. Dominus…
Lá estão elas agora no meu caixote do lixo. Olha a minha lata de cerveja vazia! Olha como a casca do meu queijo de ontem, é alimento daquela pequenina Trífide hoje.
O lixo das pessoas é coisa íntima, recatada. Ninguém gosta de ver o seu lixo devassado. Quando estas Trífides de palmo e meio e barriga inchada mexem no meu lixo, sinto-me nu, roto também e muito vulnerável.
Olha agora a lata vazia de leite condensado! Olha o arroz velho que foi embrulhado num jornal que dizia haver muita fome em África. Era um restinho de arroz de fundo queimado. Mas foi dividido à força pelas Trífides.
E cerro cobardemente as cortinas. Mas oiço-as ainda. Murmurando, discutindo, dividindo aos gritos, raspando, comendo. Com as cortinas fachadas continuo a vê-las, com o seu famélico aspecto, invadindo esta cidade que é menos minha que delas.
É que delas será totalmente um dia, sem benevolências, sem compaixão, sem um sorriso. Tomarão em breve conta desta cidade, não através dos caixotes de lixo, mas através da sua nudez, com fome de uma certa justiça social que, não sabendo o que é, mesmo assim a imporão. Implacavelmente. Quem tem razão, fere. Por vezes mata.
Aguardai, senhores, nos vossos leitos confortáveis e razoavelmente amenos pelas Trífides.
Elas, tal como as de John Windham, estão atentas, à espera.
Agora é o final do dia, em bandos aparentemente desorganizados. Amanhã será logo ao nascer do sol, organizadamente, com a consciência de que têm razão.
É isso.
Senhores dos Acordos, dos Protocolos, das Reuniões, da OUA, dos aviões pessoais, dos diamantes, do gás. Senhores dos fatos feitos em seda italiana, das sociedades anónimas formalizadas à pressa, dos donos dos países partilhados de helicóptero. Senhores das espingardas, das minas pessoais, dos subsídios, dos Gabinetes, dos discursos: durmam agora enquanto não vêm as Trífidas.

Álvaro Belo Marques

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