Monday, March 17, 2008

EM BUSCA DO ADAMASTOR

No tempo em que ainda se aprendia Português na Instrução Primária, o nosso livro de leitura para a 4ª. Classe era da autoria de Manuel Subtil, Cruz Filipe, Faria Artur e Gil Mendonça.
Pois não é que ontem a minha irmã, mais velha que eu nove anos e agora com mais de meio século de existência, me saiu a dizer Camões depois do almoço?!
Recordava ela o livro por onde tinha estudado, citando o “Apólogo das Cotovias”, do P. Manuel Bernardes, “A Chegada do Correio”, aquele tão belo texto da “Morgadinha dos Canaviais”, de Júlio Diniz, “A ida para a Escola”, dos contos de Trindade Coelho “Os Meus Amores”, naquele parte tão bonita de “a encomendinha era eu”, “O Estatuário”, do P. António Vieira e ainda, não contente, mas comigo ouvinte atento, disse de cor e com o coração:

“Porém já cinco sóis eram passados
Que dali partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados,
Prosperamento os ventos assoprando,
Quando uma noite, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.”

Ela e Camões falaram novamente do Adamastor.
Foi então que retornámos, de mão dada, a Abril de 1939 quando, assarapantados, embarcámos para a África no António Delfino, uma luxuosa cidade alemã que dava pelo modesto nome de barco.
Tirando aqueles dois dias habituais, em que se prefere morrer a viver em tais agonias baloiçantes, tudo era pasmo encanto, pois de mar só conhecíamos o que se enxerga da Costa da Caparica, lá para as bandas do Pica Galo.
Quando despertámos daquela doença tenebrosa chamada enjoo, estávamos à vista da Madeira. Quer dizer: nós olhávamos para a Ilha e a Ilha olhava para nós.
Depois de termos visto os miúdos a mergulhar para apanhar as moedas que os outros atiravam (nós não, até porque não tínhamos), desembarcámos para, logo no dia seguinte, embarcar noutro casarão a falar inglês, que se chamava Warwick Castle, rumo a Cape Town, como na altura se dizia em português Cidade do Cabo.
Aqui, no Waraick, foi um tempo giro e divertido. O cozinheiro jogava comigo ao pinguepongue, fumava cachimbo e ia-me ensinando algumas palavras que eu, obviamente, esquecia de imediato. Mas numa das primeiras lições, foi-me mostrando tachos, panelas, caixas de comida e dizendo os respectivos nomes em inglês, que eu repetia em português, rapidamente e sem atenção, pois o que eu queria mesmo era jogar pinguepongue. Assim, e não sei como, ficou assente que biscoitos se dizia em português “gelo”. Nem mais. (Infelizmente, penso que ele nunca teve a oportunidade de desfazer esse engano.)
A nossa mãe não regulava bem da saúde, pelo que lhe dava fome nas horas precisas em que não havia refeições – pelo menos na 2ª. Classe, que era o andar onde habitávamos. Mas tal deixou de constituir um problema. Quando lhe dava essas fomes extemporâneas, eu corria à cozinha e pedia "gelo" ao cozinheiro, que logo me atendia com os melhores biscoitos de Sua Majestade.
E lá íamos de vento em popa, que não precisávamos de vento para nada, quando a minha irmã nos disse que nessa noite iríamos ver o Gigante Adamastor.
O entusiasmo do clã foi geral. Ficámos toda a noite a pé, a olhar para o horizonte, à espera do Gigante, que um senhor chamado Imediato tinha prometido que se veria muito bem e que agora estava domesticado por via do desenvolvimento marítimo e da biologia idem. Que estava tão simpático que, por vezes, até se curvava num respeitoso cumprimento aos navegadores, dizia o safado.
Pois cedo nasceu o Sol e de gigante nada. Como nada também aconteceu a um rapaz que catrapiscava de viés a minha irmã e que de português só sabia dizer “caneta de tinta permanente”. Esteve, na conjugação própria, de binóculos assestados para ver ao pormenor a Linha do Equador e de nós se despediu gritando alto “caneta de tinta permaneeeeenteee!”. Tudo gente inteligente, ele e nós, como se depreende.
Tempos depois, já instalados na então Lourenço Marques, soubemos que o Warwick Castle tinha sido torpedeado por um submarino alemão, quase à vista do Brasil e que morrera a quase totalidade da tripulação e dos passageiros.
E foi assim que neste almoço ameno, com base num honesto Bacalhau à Gomes de Sá, eu e a minha irmã recordámos o nosso livro de leitura, a Instrução Primária, Camões e o Adamastor. E a nossa meninice.
Álvaro Belo Marques
(In TempoLivre - Inatel)

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