Monday, March 24, 2008

ESPÍRITO SANTO DE ORELHA

O Fiat 500 decrépito estava sempre estacionado no mesmo sítio, no largo fronteiro ao Convento de Mafra. Sabia que era o do padre e, soube-o mais tarde também, que ele parava sempre ali não por gostar daquele local, mas sim por falta de gasolina.
Aliás, qualquer observador mais atento veria que as suas vestes eram incrivelmente pobres, russas, passajadas e, sem querer fazer humor, de ver a Deus. Este padre, por minha bondade monsenhor, talvez primo do D. Quixote de Graham Green tinha, no jogo do bilhar francês, um vício vigoroso, que o deveria fazer sofrer mas do qual, aparentemente, não se conseguia livrar, ou era semanalmente absolvido em confissão. Mas isto, claro, na hipótese de ele o considerar um vício e, mesmo que sim, desejar livrar-se por feiura e irrespeito pela profissão. Especulações que nós os seis, milicianos sanguíneos guelrosos e esquerdistas em Mafra, às vezes colocámos como tema de desfastio, à mesa do café.
Pois muitas noites chegava monsenhor, passava por entre as mesas sem que alguém desse por ele, sentava-se na primeira cadeira livre que ao caminho se lhe oferecia e, bebendo um café, punha-se a ver os jogos que se desenrolavam na mesa de bilhar, completamente absorto em tudo o mais que o rodeava para além de Deus.
Por qualquer motivação para nós desconhecida, mas não muito distante da alegria e barulho que caracterizava todas as noites a nossa mesa, monsenhor foi-se colocando cada vez mais próximo de nós. Isso notámos. Ele olhava para o bilhar mas deixava descair um ouvido orientando-o para o nosso lado, por certo necessitando um pouco da nossa juventude e irreverência. Mas não era velho; parecia, isso sim, velho, acabado, estafado, esgotado. Quarenta e tal anos, talvez, para fazer a pé, como soubemos pela empregada da pensão, as diversas freguesias dando a extrema-unção e outros carinhos de seu mister, a qualquer hora do dia ou da noite, ao sol e à chuva e ao frio. Por certo um santo homem com o vício do bilhar e sem dinheiro para o alimentar.
Tinha outro vício ainda que já me esquecia de vos referir: o santo fumava. Muito. Talvez ele poupasse na gasolina para o tabaco e para o bilhar, mas isto já pode ser considerada uma opção maldosa de um ateu, mas a sua fama de bom padre (há padres maus?), dedicado, fraterno, amigo e confidente dos seus paroquianos, fazia a empregada contadora arredondar os olhos negros e aumentar a beleza da sua expressão louçã. “Um santo, é o que lhes digo, meninos! Um santo!”
Uma noite acabei uma partida de bilhar e fiquei sem parceiro. Perguntei a monsenhor se queria jogar mas com uma condição, e ele que sim que sim e qual. Irreverente, talvez deseducado, mas certamente por defesa, disse-lhe que nem ele me falaria de religião nem eu a ele de política. Um trato entre cavalheiros de diferentes credos. Olhou-me bem no fundo dos olhos, talvez procurando-me a alma que, naquelas idades, sei hoje ainda estarem em formação cubista e disse-me com simplicidade: “Está bem.”
Nunca assombrei ninguém a jogar ao bilhar, mas conseguia fazer umas coisas com jeito se estivesse aplicado. Obviamente que lhe propus que fosse “ao perde-paga”. E também obviamente que perdi e que passei a ser o seu parceiro favorito. Entrava no café e já me procurava com os olhos; eu era, bem observadas as coisas, o seu dealer.
E fomos mantendo o nosso trato, poucas frases trocando que não fossem de circunstância, de tabelas, de meteorologia, de efeitos bolísticos, e coisas assim.
E uma noite, na pensão, combinámos ajudar o padre.
Um de nós perguntou se já tínhamos reparado que o Fiat já estava há mais de quinze dias a dormir à sombra protectora do Convento. Alguns que sim. Fomos então comprar uma lata de cinco litros de gasolina e vertê-mo-los no respectivo depósito, enquanto outros vigiavam, não fosse monsenhor ter Espírito Santo de orelha.
O miliciano que verteu a gasolina para o fanado Fiat, ficou com a mão direita molhada, pelo que a todos, espargindo o combustível sobre as nossas fardas enodoadas, nos benzeu: “Eu vos abençoo, meus bons malandros” – disse. Um irreverente acto após uma boa acção.
No dia seguinte à noite, todos queríamos observar o imaculado rosto de monsenhor e, por falta de clareza mental, nos calámos quando ele chegou ao café. Veio, cumprimentou e sentou-se, olhando para a mesa de bilhar. Mas sorria. Ele tinha mesmo Espírito Santo de orelha.

Álvaro Belo Marques

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