Tuesday, March 11, 2008

O AVEJÃO (1)


Um enorme e estranho avejão mira do alto dos céus os homenzinhos cá em baixo. Parece – aos tais homenzinhos –, uma águia gigante, preta e ameaçadora. Mas ela não está totalmente parada, não. Ela caminha lentamente para Sul. Devagarinho. Sinistra na sua quase imobilidade.
Durante a noite o avejão muda de poiso. Podemos acordar com ele sobre o Algarve, albatroz gigante de asas aparadas olhando-nos e lançando os seus malefícios. Por exemplo
Ontem estava sobre S. Sebastião do Escoural. Por acaso cruzei-me com Silva Pinto, que estava na sua rua a apanhar chuva, quando embato no professor Peter, de calções, apesar do tempo, e de boné alentejano sobre a testa. O avejão parou a ver e a ouvir.
- Olá, professor, que faz por aqui?
Sorridente respondeu-me, olhando para cima, para o avejão.
- Estatística, meu caro. Conto pessoas.
Foi assim tal e qual como vos estou a contar. O barco já ia longe quando dou por mim a analisar a cidade vista da barra – tão bonita como qualquer outra, claro. Não havia Sol nesse dia. A sombra do avejão parecia ter aumentado nos últimos tempos e isso notava-se na imprensa e nas notícias da televisão.
- Vai arrancar o Festival da Canção – disse ela toda contente como se lhe tivesse saído o euromilhões.
A dona Margarida voltou-se para a turma, que éramos nós, e disse:
- Sujeito: Festival da Canção. Predicado: arranca. Arranca o quê?
E a turma toda, incluindo o gago do Artur:
- Pregos!
Cinco dias depois o avejão estacionou sobre a capital que ficou mergulhada numa tonalidade cinzenta-clara. Os meteorologistas disseram pela televisão, pois claro, que não era nada, apenas fenómenos atmosféricos sem importância por causa de uma depressão situada no peito dos portugueses continentais, a noroeste do peito dos açorianos insulares.
Os portugueses continuaram a fazer as suas vidinhas, muito preocupados com os respectivos carros enquanto fui dar com o professor Peter sentado com o Fernando Pessoa, os dois a conversar em voz baixa. É evidente que o professor já falava muito bem português, ao contrário do Pessoa. Puxei uma cadeira e sentei-me ao pé deles. Dizia o mestre:
- É como lhe digo meu caro Poeta. Este avejão, esta nuvem negra e enorme, há décadas que esparge o vírus da incompetência. Todos estão aos poucos a atingir esse nível. A democracia virou mediocracia. O Zé Povinho já não faz manguitos e a Amália já morreu.
E o Poeta:
- E o que tenho eu com isso?
- Ó homem, isto é a gente conversar.
Vim-me embora. Que adiantava estar ali a ouvi-los?
Se todos tínhamos atingido já o nível de incompetência, o melhor era comprar casa a 40 anos e, depois de paga e de fome pelo meio, viver nas ruínas. Pois então.

Quando me der na gana escrevo o Avejão (2)

A.B.M.

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