Não havia vento nem brisa naquela tarde de domingo. Apenas imperava o tédio que, lentamente, ia percorrendo as ruas, as escadinhas e as vielas de Cascais. O tédio que assomava às pequenas janelas da rua dos Pescadores e lá para dentro espreitava. Gatos e cães dormiam em abandono nas sombras possíveis. O tédio passou então pelo Café Baía e deu um encosto aos rapazes ali sentados, que bocejavam por dentro e malcriadavam por fora. Ouviam-se as moscas. Enfim, passeou pela Praia do Peixe e subiu lentamente à estação dos comboios. A um canto, sentado no carrinho de mão com as costas e a cabeça encostadas à parede, dormitava em paz o Nabiça, destacando-se, na lapela do seu casaco mal enjorcado, um pequeno ramo de espigas. Durante todo o ano, alguma flor, ou legume, tinha de ornar a sua farpela.
“O senhor Nabiça”, como lhe davam trato os veraneantes e turistas que precisavam de alguém que lhes levasse as malas e demais atavios, quando chegavam. Ele conhecia todas as ruas e todos os becos da vila, apesar de ter vindo gaseado da guerra e não dizer, inúmeras vezes, coisa com coisa.
Os rapazes, ainda com a marca do tédio na testa, desejavam uma ideia para se divertir. E tanto procuraram que a encontraram na pessoa do senhor Nabiça. “Damos-lhe uns trocos e ele vai até ao albergue…”
Havia nessa data o GACA 1, Grupo de Artilharia Contra Aeronaves ou, como o povo dizia, Grande Albergue das Crianças Abandonadas, em frente à Cidadela.
Com geral regozijo, lá se foi levar a encomenda ao Nabiça juntamente com dez escudos e procurar um sítio onde se pudesse desfrutar a cena.
O Nabiça foi buscar a condecoração, colocou-a ao lado da espiga e lá foi em passo lento para a porta da Cidadela. Parou frente à sentinela que, esparvoada, olhava de revés para aquela figura. Nisto um raio caiu-lhe na cabeça. Então o mal enjorcado não tinha a Cruz de Guerra?! E lança em pânico um berro longo e forte de “Às armas!”, como se viessem aí outra vez os franceses, mas agora em maior número. Surgem então os restantes elementos da Guarda, arrumando-se enfraldiscados, bocejando, mailo cabo, o sargento e, finalmente, um tenente, magro e comprido, como um ponto de exclamação no fim desta oração fardada. E o ritual obrigatório cumpriu-se: fez-se sentido e os soldados apresentaram armas. O Nabiça, que tinha inchado com a cerimónia, primeiro agradeceu e depois desinchou e encaminhou-se na direcção do Roxo, descendo depois para o Baía.
Os rapazes, entre gargalhadas, fizeram-lhe uma grande recepção e organizavam-se para uma segunda expedição, quando, assombrados, viram o ponto de exclamação na sua frente. Ficaram mudos e quedos.
Sem zanga, disse-lhes o tenente:
- Vocês não sabem o que fizeram. Este homem, o senhor Nabiça, tem a mais alta condecoração militar portuguesa, por coragem e bravura. Mas infelizmente apanhou gases na Primeira Guerra Mundial. Ele merece o nosso respeito e não a nossa chacota. Se o senhor Nabiça voltar à Porta de Armas, mandar-vos-ei prender a todos. Perceberam?
Os rapazes compreenderam. O Nabiça fez uma desajeitada continência e saiu atrás do tenente. Nessa altura o tédio corria como louco pela lota do peixe.
Monday, November 02, 2009
Friday, October 23, 2009
BOURRÉ A MEIO DA TARDE
Álvaro Belo Marques
O Pavilhão dos Desportos estava cheio e decorado para concerto. Eu comprara um bilhete na segunda fila e já estava sentado quando as luzes se apagaram para a segunda parte, na qual ela actuaria como solista. Cerca de trinta anos tinham passado desde aquela vez que nos conhecemos. O nosso único encontro. Quando ela entrou com o maestro, o Pavilhão quase ruiu com os aplausos – estava no auge da sua carreira. Sentou-se, fez-se quase silêncio e ela atacou o primeiro andamento do Concerto para Piano e Orquestra, opus 16 de Grieg com o mesmo virtuosismo do autor. Lembram-se? É uma entrada vigorosa.
Estava madura, mais cheia e mais bonita. A menina do vestido estampado com flores azuis, que assomava à janela para descansar as mãos e os braços, naquela moradia de dois pisos em S. João do Estoril, era agora uma consagrada pianista.
Passei cinco tardes encostado ao muro com gradeamento, que rodeava a sua casa, ouvindo-a estudar. Deveríamos ter dezassete anos. Logo no primeiro dia que parei para a ouvir, ela deu por mim. Como a pausa fosse grande, olhei para cima. Demos um pelo outro no mesmo centésimo de segundo. Olhámo-nos com curiosidade. Ela perguntando com o olhar “Estavas aqui a ouvir-me tocar?” E eu, na mesma linguagem “Fui apanhado!”
Nos cinco dias que passei ouvindo-a estudar, o esquema era normalmente o mesmo: umas escalas, depois um ou dois Estudos de Czerny, mais uma sonatina de Beethoven, alguns Nocturnos e Estudos de Chopin e parava aquele período de trabalho com uma peça ligeirinha, muito bonita, que ela já tocava com muita alma: “Fur Elise”. Depois talvez fosse lanchar, altura em que eu partia com a cabeça cheia de música.
Parecia que os deuses se interessaram por nós, primeiro, fazendo-me passar sob aquela janela naquele dia àquela hora. Segundo, proporcionando no domingo o nosso encontro na Patinagem de Cascais. Devíamos ter sido destinados um ao outro. Disse-lhe o meu nome e ela que se chamava Cecília. Falámos o resto da tarde com entusiasmo e franqueza. Ainda houve uns segundos para lhe perguntar “porquê o Fur Elise todos os dias e que tocas tão bem?” Ela sorriu e respondeu como uma criança que era “Porque gosto”.
Ficou tacitamente estabelecido que nos encontraríamos no domingo seguinte. Mas não aconteceu assim. Meus pais regressaram a Lisboa e eu com eles. Neste momento estava a vê-la, ao fim de cerca de trinta anos, a terminar o último andamento do Concerto em Lá Menor para piano e orquestra, de Grieg.
O Pavilhão parecia vir abaixo com a permanente ovação em forma de onda: subia e descia, mas não parava. Por indicação do maestro, a orquestra e a solista saíram mas ela voltou para tocar alguns extras e acalmar aquele auditório conquistado pela beleza e a perfeição da execução, que gritava o seu nome. Ao terceiro extra fui eu que gritei, já perdido, deseducadamente, “Fur Elise”. Fez-se um quase silêncio. Ela olhou em redor, tentando detectar o autor do pedido. Sentou-se de novo e tocou a bela peça que Beethoven tinha escrito para a Elisa.
Segui depois a fila das pessoas que iam ao seu camarim cumprimentá-la; toda a gente a ver e a ouvir o meu coração a bater. Estendeu-me a mão a sorrir e dizendo “Foste tu…” Beijei-a respondendo “Fui”. E nunca mais voltámos a ver-nos.
O Pavilhão dos Desportos estava cheio e decorado para concerto. Eu comprara um bilhete na segunda fila e já estava sentado quando as luzes se apagaram para a segunda parte, na qual ela actuaria como solista. Cerca de trinta anos tinham passado desde aquela vez que nos conhecemos. O nosso único encontro. Quando ela entrou com o maestro, o Pavilhão quase ruiu com os aplausos – estava no auge da sua carreira. Sentou-se, fez-se quase silêncio e ela atacou o primeiro andamento do Concerto para Piano e Orquestra, opus 16 de Grieg com o mesmo virtuosismo do autor. Lembram-se? É uma entrada vigorosa.
Estava madura, mais cheia e mais bonita. A menina do vestido estampado com flores azuis, que assomava à janela para descansar as mãos e os braços, naquela moradia de dois pisos em S. João do Estoril, era agora uma consagrada pianista.
Passei cinco tardes encostado ao muro com gradeamento, que rodeava a sua casa, ouvindo-a estudar. Deveríamos ter dezassete anos. Logo no primeiro dia que parei para a ouvir, ela deu por mim. Como a pausa fosse grande, olhei para cima. Demos um pelo outro no mesmo centésimo de segundo. Olhámo-nos com curiosidade. Ela perguntando com o olhar “Estavas aqui a ouvir-me tocar?” E eu, na mesma linguagem “Fui apanhado!”
Nos cinco dias que passei ouvindo-a estudar, o esquema era normalmente o mesmo: umas escalas, depois um ou dois Estudos de Czerny, mais uma sonatina de Beethoven, alguns Nocturnos e Estudos de Chopin e parava aquele período de trabalho com uma peça ligeirinha, muito bonita, que ela já tocava com muita alma: “Fur Elise”. Depois talvez fosse lanchar, altura em que eu partia com a cabeça cheia de música.
Parecia que os deuses se interessaram por nós, primeiro, fazendo-me passar sob aquela janela naquele dia àquela hora. Segundo, proporcionando no domingo o nosso encontro na Patinagem de Cascais. Devíamos ter sido destinados um ao outro. Disse-lhe o meu nome e ela que se chamava Cecília. Falámos o resto da tarde com entusiasmo e franqueza. Ainda houve uns segundos para lhe perguntar “porquê o Fur Elise todos os dias e que tocas tão bem?” Ela sorriu e respondeu como uma criança que era “Porque gosto”.
Ficou tacitamente estabelecido que nos encontraríamos no domingo seguinte. Mas não aconteceu assim. Meus pais regressaram a Lisboa e eu com eles. Neste momento estava a vê-la, ao fim de cerca de trinta anos, a terminar o último andamento do Concerto em Lá Menor para piano e orquestra, de Grieg.
O Pavilhão parecia vir abaixo com a permanente ovação em forma de onda: subia e descia, mas não parava. Por indicação do maestro, a orquestra e a solista saíram mas ela voltou para tocar alguns extras e acalmar aquele auditório conquistado pela beleza e a perfeição da execução, que gritava o seu nome. Ao terceiro extra fui eu que gritei, já perdido, deseducadamente, “Fur Elise”. Fez-se um quase silêncio. Ela olhou em redor, tentando detectar o autor do pedido. Sentou-se de novo e tocou a bela peça que Beethoven tinha escrito para a Elisa.
Segui depois a fila das pessoas que iam ao seu camarim cumprimentá-la; toda a gente a ver e a ouvir o meu coração a bater. Estendeu-me a mão a sorrir e dizendo “Foste tu…” Beijei-a respondendo “Fui”. E nunca mais voltámos a ver-nos.
Friday, September 11, 2009
Aproximam-se eleições - todos sabemos isso. O que talvez nem todos conheçam é o poema de Mário-Henrique Leiria "A Nêspera". É para estes que dedico esta transcrição.
A Nêspera
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
A Nêspera
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
Wednesday, August 19, 2009
A FILHA DO POLACO
Pastoreava às vezes a estante do meu padrinho quando tinha dezasseis anos (idade que os rapazes nunca têm - passam dos catorze logo, de um salto, para os dezoito), quando vi os cinco volumes muito alinhadinhos de A Filha do Polaco, de um senhor chamado Campos Júnior.
Na altura, esfomeado, devorava com lombada e tudo, o Ponson du Terrail e mais o Dumas Pai quando o apanhava a jeito. Enxergar, pois, A Filha do Polaco, assim de repente, foi um milagre que na altura não relacionei com um livro largo de peito e de amplos dourados que se encontrava no final da prateleira, talvez pelo seu porte e ar abastado.
Atirei-me (literariamente) à filha do dito senhor e, no espaço de alguns dias, devorei-a completamente. Não sobrou nada. Trata o livro de um romance de amor, um romance histórico, decorrendo aqueles amores inflamados (portanto contrariados) durante as Invasões Francesas, com maiúsculas que logo saberão porquê.
O meu padrinho comprara esta obra em fascículos, com direito, no seu final, a encadernação grátis. A sogra dele, a minha avó algarvia, por seu lado, recortava o folhetim diário de O Século, que depois cosia com carinho agulha e linha - e não lia.
Na escola eu era um péssimo aluno a História. Tinha dificuldade em decorar datas, nomes e, na altura, não sabia para quê tanto ingrediente entrosado e de difícil explicação. E depois as árvores genealógicas - para mim gene-ilógicas, pois tudo se casava por interesse, primos com primas e coisas assim. A História era para mim um tormento. Mais o professor. Um parvalhão de óculos, que os tirava e olhava para as raparigas nas carteiras e perguntava: "Não tenho uns olhos bonitos?" Obviamente diziam que sim. (Eu e os outros rapazes agoniados.) "O que me atrofia e inferioriza é a vista cansada", adiantava penoso.
Literalmente acabada a filha do senhor polaco, voltei um dia à estante e retirei o tal livro largo de peito e com efeitos dourados. Comecei a folheá-lo e sentei-me. E comecei a lê-lo. E era uma maravilha de imaginação e de poesia, com imensas gravuras e capitulares arrendadas a ouro, cheias de beleza e imaginação.
Levei quase um mês a ler este livro poético, eu, que devorara em quatro dias as cerca de duas mil páginas de O Conde de Monte Cristo! Mais As Danadas de Paris, (às escondidas, emprestadado pelo meu pai, um boémio esquerdista), mais os Vinte Anos depois, A Mão do Finado, etc.
O exame de História dividia-se em duas partes: uma, a Antiguidade Clássica; a outra, História Contemporânea (mas não muito pormenorizada por causa da ditadura).
A primeira parte levei-a bem com o Egipto, aí com um dez vírgula zero um ou coisa parecida. Depois os três inquisidores passaram para a História Contemporânea e um deles disse-me assim: "Diga lá o que sabe sobre as Invasões Francesas."
Ai, Michel! Foi uma alegria e um ver se te avias! Já ultrapassara o tempo há muito quando me mandaram calar. Brilhante. Verdadeiramente brilhante para um aluno que, literalmente, não sabia fosse o que fosse de História. Nota final catorze.
Foi um milagre.
Na altura atribuí o acontecimento à influência do livro de largo peito e com efeitos dourados, eu, um agnóstico com documento passado pela Junta de Freguesia. Mas que houve coisa, houve.
O livro cheio de dourados, de ilustrações belíssimas e de capitulares de sonho, chamava-se A Bíblia Sagrada.
Friday, July 17, 2009
MARK TWAIN....AGAIN
Dando continuidade ao projecto de edição de uma Biblioteca de leituras para os mais jovens, as Edições Nelson de Matos estão a apresentar ao mercado através da sua Distribuidora Sodilivros, uma nova edição de AS AVENTURAS DE TOM SAWYER, de Mark Twain, em nova tradução de Maria João Freire de Andrade e com texto integral.
Uma das obras mais conhecidas de Mark Twain, um escritor de quem William Faulkner não hesitava em se considerar herdeiro.
Textos já publicados nesta Colecção
1. As Aventuras de Robinson Crusoe, Daniel Defoe
2. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
3. As Minas de Salomão, Rider Haggard
4. As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain
5. As Aventuras de Huckleberry Finn, Mark Twain (em preparação)
Uma das obras mais conhecidas de Mark Twain, um escritor de quem William Faulkner não hesitava em se considerar herdeiro.
Textos já publicados nesta Colecção
1. As Aventuras de Robinson Crusoe, Daniel Defoe
2. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
3. As Minas de Salomão, Rider Haggard
4. As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain
5. As Aventuras de Huckleberry Finn, Mark Twain (em preparação)
Wednesday, July 01, 2009
A VAQUINHA VITÓRIA AINDA VAI VIVER MUITO TEMPO?
Da revista dos Jovens Agricultores, publico com prazer e vénia, o artigo da Drª. Isabel do Carmo. A foto é da médica veterinária Vera Marques.
Comer localmente, pensar globalmente
"Eu compro português. Refiro-me aos produtos de agricultura. Seja no mercado, na chamada praça, seja no supermercado, todos os produtos frescos de agricultura são obrigados a ter indicado no expositor o país de origem. E portanto, entre a Argentina e Portugal, escolho Portugal, entre a Espanha e Portugal, escolho Portugal, entre Israel e Portugal, escolho Portugal.
E defendo esta escolha. Não a faço por qualquer patriotismo mais ou menos lírico e bacoco, mas por razões práticas e concretas.
Penso que se deve consumir aquilo que é produzido junto de nós, à nossa volta, por pessoas que nos rodeiam, falam a nossa língua, que podiam ser da nossa família ou que já o foram mesmo em tempos remotos. Os produtos frescos, legumes e fruta, chegam deles até nós, com mais possibilidades de conservar essa frescura, sem que ela seja muito forçada por produtos de conservação.
Por outro lado o caminho que esses produtos fazem desde o campo em que são produzidos até à bancada do meu mercado é um pequeno caminho, comparado com a longa distância que nos separa da Argentina, de Israel, de França ou mesmo de Espanha. Desse modo a fruta que estou a comer, gastou pouco combustível para chegar até mim. Não concorro para o absurdo que é consumir combustível, que é um recurso limitado, libertar CO2, aquecer o planeta, para que me tragam uma maçã de Israel ou da Argentina, quando tenho uma igual ou melhor aqui ao lado. Isto faz parte da esquizofrenia (que outro nome é que há?) económica e é bom que toque o sinal de alarme dentro da nossa cabeça. Será que todos os nossos gestos terão que ser alienados e automáticos sem que possamos reflectir uns segundos sobre eles? Ou seja, estamos disponíveis para nos manifestarmos como declarados ecologistas de alma e coração, de papel e de boca, mas estamos indirectamente a poluir o planeta com as nossas escolhas absurdas?
Escolho os produtos portugueses também porque o futuro é imprevisível. Não sei se pode haver uma crise, uma epidemia, uma catástrofe. Sei que o meu país não é auto-suficiente em alimentos, mas quanto menos dependente for melhor... Por tudo isto penso que deveria haver a "excepção agrícola", com protecção dos produtos agrícolas (e do pescado) portugueses.
A globalização é muito bonita para os globalizadores.
Mas esses, os que ganham com a abertura do comércio mundial, os EUA, a França, a Alemanha, estão sempre dispostos a proteger os seus produtos quando isso lhes dá jeito. Ou seja globalizam para fora e protegem para dentro. Claro que o confronto com produtos de outros países tem a sua vantagem, que é a competição na qualidade. Passámos pelo período de protecção absoluta no Estado Novo em que se produzia toda a espécie de porcarias, as quais tinham o mercado exclusivo e garantido das colónias. Isso levou à estagnação de alguns sectores, a um atraso e a uma falta de qualidade, da qual ainda estamos a pagar a factura.
No entanto, hoje temos muito bons produtos, nos legumes, na fruta, nos lacticínios, na agro-pecuária, nos produtos conservados. É sabido e está provado que os legumes frescos e a fruta são bons para a saúde. São bons na prevenção das doenças cardiovasculares (coração e cérebro) e na prevenção de alguns cancros. Têm vitaminas, sais minerais e fibras insubstituíveis. A sopa é um alimento excelente - cheia de vegetais, com a água de coser os mesmos conservando nutrientes, desinfectada porque levanta fervura e saciante. No prato princípal devemos ocupar metade com vegetais, mas lá estarão também os "farináceos" - batatas, arroz, massa- e um pouco de carne, peixe e ovos. A fruta pode ser distribuída pelas refeições do dia. E o leite e derivados são indispensáveis. Claro que prefiro os vegetais e a fruta sem fertilizantes e pesticidas químicos. Que bom que é podermos dar uma dentada numa maça com a certeza de que não estão ali insecticidas! Mas também nessa área pode ser feito um esforço de qualidade e essa qualidade é uma distinção no mercado.
Pergunto-me porque é que há tão poucas campanhas para se comerem produtos portugueses.
Porque não há mais publicidade a boas novidades na área agrícola, porque as há, que vêm ao encontro das preocupações em saúde.
Calculo que não há porque as campanhas...custam dinheiro. E entretanto são os produtos estrangeiros e prejudiciais para a saúde que nos entram pelos olhos dentro. E sobretudo que entram pelos olhos dentro das nossas crianças."
Isabel do Carmo, médica, in Revista "Jovens Agricultores" nº 72
Comer localmente, pensar globalmente
"Eu compro português. Refiro-me aos produtos de agricultura. Seja no mercado, na chamada praça, seja no supermercado, todos os produtos frescos de agricultura são obrigados a ter indicado no expositor o país de origem. E portanto, entre a Argentina e Portugal, escolho Portugal, entre a Espanha e Portugal, escolho Portugal, entre Israel e Portugal, escolho Portugal.
E defendo esta escolha. Não a faço por qualquer patriotismo mais ou menos lírico e bacoco, mas por razões práticas e concretas.
Penso que se deve consumir aquilo que é produzido junto de nós, à nossa volta, por pessoas que nos rodeiam, falam a nossa língua, que podiam ser da nossa família ou que já o foram mesmo em tempos remotos. Os produtos frescos, legumes e fruta, chegam deles até nós, com mais possibilidades de conservar essa frescura, sem que ela seja muito forçada por produtos de conservação.
Por outro lado o caminho que esses produtos fazem desde o campo em que são produzidos até à bancada do meu mercado é um pequeno caminho, comparado com a longa distância que nos separa da Argentina, de Israel, de França ou mesmo de Espanha. Desse modo a fruta que estou a comer, gastou pouco combustível para chegar até mim. Não concorro para o absurdo que é consumir combustível, que é um recurso limitado, libertar CO2, aquecer o planeta, para que me tragam uma maçã de Israel ou da Argentina, quando tenho uma igual ou melhor aqui ao lado. Isto faz parte da esquizofrenia (que outro nome é que há?) económica e é bom que toque o sinal de alarme dentro da nossa cabeça. Será que todos os nossos gestos terão que ser alienados e automáticos sem que possamos reflectir uns segundos sobre eles? Ou seja, estamos disponíveis para nos manifestarmos como declarados ecologistas de alma e coração, de papel e de boca, mas estamos indirectamente a poluir o planeta com as nossas escolhas absurdas?
Escolho os produtos portugueses também porque o futuro é imprevisível. Não sei se pode haver uma crise, uma epidemia, uma catástrofe. Sei que o meu país não é auto-suficiente em alimentos, mas quanto menos dependente for melhor... Por tudo isto penso que deveria haver a "excepção agrícola", com protecção dos produtos agrícolas (e do pescado) portugueses.
A globalização é muito bonita para os globalizadores.
Mas esses, os que ganham com a abertura do comércio mundial, os EUA, a França, a Alemanha, estão sempre dispostos a proteger os seus produtos quando isso lhes dá jeito. Ou seja globalizam para fora e protegem para dentro. Claro que o confronto com produtos de outros países tem a sua vantagem, que é a competição na qualidade. Passámos pelo período de protecção absoluta no Estado Novo em que se produzia toda a espécie de porcarias, as quais tinham o mercado exclusivo e garantido das colónias. Isso levou à estagnação de alguns sectores, a um atraso e a uma falta de qualidade, da qual ainda estamos a pagar a factura.
No entanto, hoje temos muito bons produtos, nos legumes, na fruta, nos lacticínios, na agro-pecuária, nos produtos conservados. É sabido e está provado que os legumes frescos e a fruta são bons para a saúde. São bons na prevenção das doenças cardiovasculares (coração e cérebro) e na prevenção de alguns cancros. Têm vitaminas, sais minerais e fibras insubstituíveis. A sopa é um alimento excelente - cheia de vegetais, com a água de coser os mesmos conservando nutrientes, desinfectada porque levanta fervura e saciante. No prato princípal devemos ocupar metade com vegetais, mas lá estarão também os "farináceos" - batatas, arroz, massa- e um pouco de carne, peixe e ovos. A fruta pode ser distribuída pelas refeições do dia. E o leite e derivados são indispensáveis. Claro que prefiro os vegetais e a fruta sem fertilizantes e pesticidas químicos. Que bom que é podermos dar uma dentada numa maça com a certeza de que não estão ali insecticidas! Mas também nessa área pode ser feito um esforço de qualidade e essa qualidade é uma distinção no mercado.
Pergunto-me porque é que há tão poucas campanhas para se comerem produtos portugueses.
Porque não há mais publicidade a boas novidades na área agrícola, porque as há, que vêm ao encontro das preocupações em saúde.
Calculo que não há porque as campanhas...custam dinheiro. E entretanto são os produtos estrangeiros e prejudiciais para a saúde que nos entram pelos olhos dentro. E sobretudo que entram pelos olhos dentro das nossas crianças."
Isabel do Carmo, médica, in Revista "Jovens Agricultores" nº 72
Wednesday, June 24, 2009
MAPUTO, NOITE DE 9 DE OUTUBRO DE 1979
Naquela noite resolvemos confraternizar fazendo música. Ao piano, dando-nos esperança de se tocar com alma e afinco, Né Afonso ou Santana Afonso, que aos 18 anos já tocava numa boate na Beira, fugindo à Polícia dizendo-se maior de 21 anos. Ricardo Timane (infelizmente já não nos podemos encontrar) cantava o Summertime, de Gershwin, com a sua bela voz quente, afinada e bem colocada. (Como se fosse possível um negro desafinar!) No violão temos o Ricardo Rangel que, apesar de não ser músico, sabia dar-nos um baixo acertado e feliz. A harmónica bocal solava com emoção.
As fotos também servem para chorarmos sobre elas de saudade.
As fotos também servem para chorarmos sobre elas de saudade.
Thursday, June 18, 2009
16 de JUNHO
Da crónica de Luis Fernando Veríssimo, no ZeroHora, retiramos com a devida vénia este pedaço de prosa.
Anthony Burgess escreveu um livro sobre Joyce chamado ReJoyce. O trocadilho do título – que quer dizer, ao mesmo tempo, “referente a Joyce”, uma releitura de Joyce e “regozije-se com Joyce” – é uma homenagem ao autor que tornou o trocadilho literariamente respeitável. O livro de Joyce que se seguiu ao Ulisses, Finnegans Wake é um interminável - literalmente, pois não termina mesmo, a última frase do livro emenda na primeira – jogo de palavras no qual só deve se aventurar quem tem tempo, além de erudição ou um bom manual explicativo, como o de Burgess.
Tuesday, June 02, 2009
A JUSTIÇA EM PORTUGAL
Na minha caixa do correio apareceu este texto do senhor JOÃO MIGUEL TAVARES que, com a devida vénia, transcrevo.
"A justiça em Portugal parece-lhe confusa? Não faz ideia porque é que todos os processos que envolvem pessoas importantes acabam sempre em regabofe? Diga não à desorientação! Em apenas 20 passos, eis o guia ideal para entender todos os casos que em Portugal começam com a palavra "caso":
1) Os jornais publicam uma notícia sobre qualquer pessoa muito importante que alegadamente fez qualquer coisa muito má.
2) Essa pessoa muito importante considera-se vítima de perseguição por parte de forças ocultas.
3) Outras pessoas importantes vêm alertar para o vergonhoso desrespeito do segredo de justiça em Portugal, que possibilita a actuação de forças ocultas.
4) Inicia-se o debate sobre o segredo de justiça em Portugal.
5) Toda a gente tem opiniões firmes sobre o que é preciso mudar na legislação portuguesa para que estas coisas não aconteçam.
6) Toda a gente conclui que não se pode mudar a quente a legislação portuguesa.
7) A legislação portuguesa não chega a ser mudada para que estas coisas não aconteçam.
8) As coisas voltam a acontecer: os jornais publicam notícias sobre essa pessoa muito importante dizendo que ainda fez coisas piores do que as muito más.
9) Outras pessoas importantes vêm alertar para o vergonhoso jornalismo que se faz em Portugal, que nada investiga e se deixa manipular por forças ocultas.
10) Inicia-se o debate sobre o jornalismo português.
11) Toda a gente tem opiniões firmes sobre o que é preciso mudar no jornalismo português.
12) Toda a gente conclui que estas mudanças só estão a ser debatidas porque quem alegadamente fez uma coisa muito má é uma pessoa muito importante.
13) Nada muda no jornalismo português.
14) Enquanto o mecanismo se desenrola do ponto 1) ao ponto 13) a justiça continua a investigar. 15) Após um período de investigação suficientemente longo para que já ninguém se lembre do que se estava a investigar, a justiça finaliza as investigações e conclui que a pessoa muito importante: a) Não fez nada de muito mau. b) Já prescreveu o que quer que tenha feito de muito mau. c) É possível que tenha feito algo de muito mau mas não se reuniram provas suficientes. d) Afinal o que fez não era assim tão mau.
16) Pessoas importantes que são amigas dessa pessoa muito importante concluem que ela foi vítima de perseguição por parte de forças ocultas.
17) Pessoas importantes que não são amigas dessa pessoa muito importante concluem que em Portugal nada acontece às pessoas muito importantes que fazem coisas alegadamente muito más.
18) As pessoas citadas no ponto 17) iniciam mais um debate sobre a justiça em Portugal.
19) As pessoas citadas no ponto 16) iniciam mais um debate sobre o jornalismo em Portugal.
20) Os jornais publicam uma outra notícia sobre uma outra pessoa... etc, etc,
"A justiça em Portugal parece-lhe confusa? Não faz ideia porque é que todos os processos que envolvem pessoas importantes acabam sempre em regabofe? Diga não à desorientação! Em apenas 20 passos, eis o guia ideal para entender todos os casos que em Portugal começam com a palavra "caso":
1) Os jornais publicam uma notícia sobre qualquer pessoa muito importante que alegadamente fez qualquer coisa muito má.
2) Essa pessoa muito importante considera-se vítima de perseguição por parte de forças ocultas.
3) Outras pessoas importantes vêm alertar para o vergonhoso desrespeito do segredo de justiça em Portugal, que possibilita a actuação de forças ocultas.
4) Inicia-se o debate sobre o segredo de justiça em Portugal.
5) Toda a gente tem opiniões firmes sobre o que é preciso mudar na legislação portuguesa para que estas coisas não aconteçam.
6) Toda a gente conclui que não se pode mudar a quente a legislação portuguesa.
7) A legislação portuguesa não chega a ser mudada para que estas coisas não aconteçam.
8) As coisas voltam a acontecer: os jornais publicam notícias sobre essa pessoa muito importante dizendo que ainda fez coisas piores do que as muito más.
9) Outras pessoas importantes vêm alertar para o vergonhoso jornalismo que se faz em Portugal, que nada investiga e se deixa manipular por forças ocultas.
10) Inicia-se o debate sobre o jornalismo português.
11) Toda a gente tem opiniões firmes sobre o que é preciso mudar no jornalismo português.
12) Toda a gente conclui que estas mudanças só estão a ser debatidas porque quem alegadamente fez uma coisa muito má é uma pessoa muito importante.
13) Nada muda no jornalismo português.
14) Enquanto o mecanismo se desenrola do ponto 1) ao ponto 13) a justiça continua a investigar. 15) Após um período de investigação suficientemente longo para que já ninguém se lembre do que se estava a investigar, a justiça finaliza as investigações e conclui que a pessoa muito importante: a) Não fez nada de muito mau. b) Já prescreveu o que quer que tenha feito de muito mau. c) É possível que tenha feito algo de muito mau mas não se reuniram provas suficientes. d) Afinal o que fez não era assim tão mau.
16) Pessoas importantes que são amigas dessa pessoa muito importante concluem que ela foi vítima de perseguição por parte de forças ocultas.
17) Pessoas importantes que não são amigas dessa pessoa muito importante concluem que em Portugal nada acontece às pessoas muito importantes que fazem coisas alegadamente muito más.
18) As pessoas citadas no ponto 17) iniciam mais um debate sobre a justiça em Portugal.
19) As pessoas citadas no ponto 16) iniciam mais um debate sobre o jornalismo em Portugal.
20) Os jornais publicam uma outra notícia sobre uma outra pessoa... etc, etc,
Wednesday, May 20, 2009
É ASSIM...
"Rien ne vous tue un homme comme d’être obligé de
représenter un pays."
JACQUES VACHÉ, carta a André Breton.
Se, por qualquer reazão bizarra, me mandassem representar
Portugal, fugiria novamente para o estrangeiro.
représenter un pays."
JACQUES VACHÉ, carta a André Breton.
Se, por qualquer reazão bizarra, me mandassem representar
Portugal, fugiria novamente para o estrangeiro.
Friday, May 15, 2009
O VICENTE
Ao longo da estorinha, nota-se que este Vicente tem alguns pontos em comum com o Vicente do Torga; um deles, a teimosia, outra a sua aparência durante o dilúvio. Pois o meu Vicente, modestíssimo Renault estafado e olheirento, tão triste era a sua sorte que nem foi comprado por mim; foi trocado, como nos tempos anteriores à moeda.
A sua vida conta-se em dois tempos e duas lágrimas: uma professora, comprou-o e, consta, teve um acidente com ele. O carro (ainda não se chamava Vicente, mas sim um monte de sucata) ficou tão danificado que a senhora não teve dinheiro para pagar a respectiva reparação. Ficou o carro então para o mecânico como pagamento, o qual passou a utilizá-lo para emprestar aos clientes que ficavam com os veículos em reparação na oficina.
Andou, pois, de mão em mão e maltratado a maior parte das vezes, como sempre acontece com os carros alheios e modestos. (Com as pessoas também isto acontece.) E ele, coitado, não protestava. Sempre de cabeça baixa lá ia de mão em mão, que remédio, era a sua sina. Então um dia animou-se quando ouviu o patrão mandar lavá-lo e limpá-lo por dentro. Talvez desta vez fosse para mãos decentes, amigas. Foi.
E lá viemos os dois, do norte até ao Alentejo, vigiando-nos, não fosse sair alguma válvula pelo tubo de escape. Mas via-se mesmo, sentia-se o seu esforço em se portar bem, em ser simpático. Na auto-estrada chegou a dar 120 mas ruidava por todo o lado pelo que lhe fiz uma festa no pescoço dos seus 67 cavalos e passei para modestos 90 quilómetros por hora, o que ele agradeceu chocalhando menos.
Quando chegámos no monte alentejano, olhei-o bem nos olhos e disse-lhe: - Passas a chamar-te Vicente, como o Corvo que desafiou Deus . - E ele não foi contra isso; não tugiu nem mugiu.
Nos meses seguintes procedeu-se a pequenas renovações, beneficiações, alindamentos. Tapetes, travões, bomba de água, pneus novinhos e lindos e ainda uma “placa de aquecimento”, brilhante, nova em folha, por causa dos nocturnos frios alentejanos que, como sabem, são muito ásperos.
Foi então que a Fazenda mandou dizer que eu tinha de pagar uma fortuna ao fisco por uma empresa que nunca funcionou, da qual se dera baixa e cujo processo já tinha sido arquivado há anos. Mas não paguei porque não tinha e porque achava injusto castigar um homem por querer exportar livros portugueses para Moçambique. Então, mandaram-me entregar o livrete e o título de propriedade, pois o carro estava confiscado. Assim se fez. Pusemos (eu e o dono do sítio) o Vicente sob uma oliveira, à entrada do monte, quietinho e eu disse-lhe: “Não te preocupes; é só por uns dias.” Foi por mais de dois anos, que nestas coisas com a Fazenda nunca ninguém sabe.
E um dia, depois de, por duas vezes, ter ajudado o TiZéMarques a apanhar as nozes, a dita Fazenda manda uma carta de meia dúzia de linhas a dizer que estava tudo sem efeito e enviando os documentos para que o Vicente pudesse circular. Mas já não podia, coitado. Era tarde. Tinha-se finado sob a oliveira. Ali abandonado demasiado tempo, demasiado frio, demasiada chuva e humidade, demasiada geada nocturna, demasiada má sina.
Fui dar-lhe a notícia mas nem reagiu. Indiferente. Quieto. Sujo. Enfim morto.
Acabaram-se as idas a Lisboa para ver a família, às vezes com o avisador da gasolina a piscar desesperadamente, e eu a dizer-lhe “não me deixes ficar mal, sabes que não tenho saúde para andar quilómetros com uma lata de gasolina na mão”. E ele não deixava. Uma vez cheguei ao supermercado de Montemor mesmo, mesmo com a última gota, que se foi quando o Vicente parou na bomba. Ouvi então um sopro. Deveria ser ele a dizer em desabafo “Uf! chegámos!”
Um vizinho distante, levou-mo – julgo que para o desmanchar.
Agora, quando passo na entrada do monte, naquele cantinho sob a oliveira, faço por não o recordar porque, mesmo que vos pareça estranho, tenho-lhe saudades. Transportava-me e fazia-me companhia.
In TempoLivre, nº.204, Maio, 2009
A sua vida conta-se em dois tempos e duas lágrimas: uma professora, comprou-o e, consta, teve um acidente com ele. O carro (ainda não se chamava Vicente, mas sim um monte de sucata) ficou tão danificado que a senhora não teve dinheiro para pagar a respectiva reparação. Ficou o carro então para o mecânico como pagamento, o qual passou a utilizá-lo para emprestar aos clientes que ficavam com os veículos em reparação na oficina.
Andou, pois, de mão em mão e maltratado a maior parte das vezes, como sempre acontece com os carros alheios e modestos. (Com as pessoas também isto acontece.) E ele, coitado, não protestava. Sempre de cabeça baixa lá ia de mão em mão, que remédio, era a sua sina. Então um dia animou-se quando ouviu o patrão mandar lavá-lo e limpá-lo por dentro. Talvez desta vez fosse para mãos decentes, amigas. Foi.
E lá viemos os dois, do norte até ao Alentejo, vigiando-nos, não fosse sair alguma válvula pelo tubo de escape. Mas via-se mesmo, sentia-se o seu esforço em se portar bem, em ser simpático. Na auto-estrada chegou a dar 120 mas ruidava por todo o lado pelo que lhe fiz uma festa no pescoço dos seus 67 cavalos e passei para modestos 90 quilómetros por hora, o que ele agradeceu chocalhando menos.
Quando chegámos no monte alentejano, olhei-o bem nos olhos e disse-lhe: - Passas a chamar-te Vicente, como o Corvo que desafiou Deus . - E ele não foi contra isso; não tugiu nem mugiu.
Nos meses seguintes procedeu-se a pequenas renovações, beneficiações, alindamentos. Tapetes, travões, bomba de água, pneus novinhos e lindos e ainda uma “placa de aquecimento”, brilhante, nova em folha, por causa dos nocturnos frios alentejanos que, como sabem, são muito ásperos.
Foi então que a Fazenda mandou dizer que eu tinha de pagar uma fortuna ao fisco por uma empresa que nunca funcionou, da qual se dera baixa e cujo processo já tinha sido arquivado há anos. Mas não paguei porque não tinha e porque achava injusto castigar um homem por querer exportar livros portugueses para Moçambique. Então, mandaram-me entregar o livrete e o título de propriedade, pois o carro estava confiscado. Assim se fez. Pusemos (eu e o dono do sítio) o Vicente sob uma oliveira, à entrada do monte, quietinho e eu disse-lhe: “Não te preocupes; é só por uns dias.” Foi por mais de dois anos, que nestas coisas com a Fazenda nunca ninguém sabe.
E um dia, depois de, por duas vezes, ter ajudado o TiZéMarques a apanhar as nozes, a dita Fazenda manda uma carta de meia dúzia de linhas a dizer que estava tudo sem efeito e enviando os documentos para que o Vicente pudesse circular. Mas já não podia, coitado. Era tarde. Tinha-se finado sob a oliveira. Ali abandonado demasiado tempo, demasiado frio, demasiada chuva e humidade, demasiada geada nocturna, demasiada má sina.
Fui dar-lhe a notícia mas nem reagiu. Indiferente. Quieto. Sujo. Enfim morto.
Acabaram-se as idas a Lisboa para ver a família, às vezes com o avisador da gasolina a piscar desesperadamente, e eu a dizer-lhe “não me deixes ficar mal, sabes que não tenho saúde para andar quilómetros com uma lata de gasolina na mão”. E ele não deixava. Uma vez cheguei ao supermercado de Montemor mesmo, mesmo com a última gota, que se foi quando o Vicente parou na bomba. Ouvi então um sopro. Deveria ser ele a dizer em desabafo “Uf! chegámos!”
Um vizinho distante, levou-mo – julgo que para o desmanchar.
Agora, quando passo na entrada do monte, naquele cantinho sob a oliveira, faço por não o recordar porque, mesmo que vos pareça estranho, tenho-lhe saudades. Transportava-me e fazia-me companhia.
In TempoLivre, nº.204, Maio, 2009
Friday, May 08, 2009
VÍRUS A
Lembrei-me de uma máxima de Pitigrilli, a propósito do drama que vivemos agora com a gripe mexicana:
"Beijo: a mais deliciosa troca de bacilos."
"Beijo: a mais deliciosa troca de bacilos."
Thursday, May 07, 2009
MUDAR DE VIDA
Sunday, April 26, 2009
DÁRIO VIDAL
"Com o correr dos anos, quando queremos ouvir o passado, damos conta de que as memórias se vão confundindo com sonhos.
A minha infância em santo amaro de oeiras, terra onde nasci, a praia deserta, os golfinhos, os aviões militares, o zepelim a caminho da américa, as pessoas que conheci, as escolas de arte, nova york, o teatro, a minha vida profissional. Tudo isto formou uma panóplia de vivências, cores, sentidos e afectos.
Afinal, nas memórias e sonhos, há sempre muitas estórias que podem ser contadas.
Eu contei-as à minha maneira: pintando!"
Dário Vidal
(Texto e foto retirados de um catálogo do pintor.)
Em breve voltaremos a ele, para falar da sua produção de cadeiras, de árvores e demais arte que agora o ocupa.
A minha infância em santo amaro de oeiras, terra onde nasci, a praia deserta, os golfinhos, os aviões militares, o zepelim a caminho da américa, as pessoas que conheci, as escolas de arte, nova york, o teatro, a minha vida profissional. Tudo isto formou uma panóplia de vivências, cores, sentidos e afectos.
Afinal, nas memórias e sonhos, há sempre muitas estórias que podem ser contadas.
Eu contei-as à minha maneira: pintando!"
Dário Vidal
(Texto e foto retirados de um catálogo do pintor.)
Em breve voltaremos a ele, para falar da sua produção de cadeiras, de árvores e demais arte que agora o ocupa.
Saturday, April 25, 2009
DIA MUNDIAL DA ESPERANÇA - 25 DE ABRIL
Hoje, à meia-noite e um minuto, estralejaram 4 foguetes. Os foguetes podem acontecer por alegria ou por obrigação.
Hoje actuaram por obrigação. Não havia qualquer alegria neles. Quer a subir quer a explodir. "Rápido, rápido para irmos para casa." E o último foguete se o não disse, a mim pareceu-me:
- Que frete!
Bebi o meu espumante recordando factos e amigos. Que se lichem os foguetes!
Hoje actuaram por obrigação. Não havia qualquer alegria neles. Quer a subir quer a explodir. "Rápido, rápido para irmos para casa." E o último foguete se o não disse, a mim pareceu-me:
- Que frete!
Bebi o meu espumante recordando factos e amigos. Que se lichem os foguetes!
Thursday, April 23, 2009
DIA MUNDIAL DO LIVRO
Estava aqui a pensar nos amigos que gostam de livros, que os amam
como eu. Na Clara. No João Paulo e no João Manuel, que até os escrevem para que nunca nos falte livro novo para ler e devorar. Na Maria Assis mais conhecida pela Milu (a que já leu tudo!). Nas filhas Maria Alexandra e Vera Maria, que não vêm em primeiro lugar, para vocês não começarem com coisas. Na Ana, que ainda não percebi bem se ama os livros para os ver e manusear ou para dormir abraçada a eles no divã. Na Michele, que os ama tanto que até os quer ler às outras pessoas. No Dário que ao longo da vida fez centenas de capas, não para ganhar dinheiro ou prestígio, mas por amor, por acto criativo com amor. Na Ana Sampaio, que o melhor que lhe podem proporcionar é deixá-la em paz, sentada na cadeirinha ao sol, à porta de casa, lendo avidamente um livro. E tantos outros que me entram em casa e primeiro cumprimentam os livros e depois a mim. Ainda bem que tenho estes amigos.
Monday, April 20, 2009
BOURRÉ A MEIO DA TARDE
O Pavilhão dos Desportos estava cheio e decorado para concerto. Eu comprara um bilhete na segunda fila e já estava sentado quando as luzes se apagaram para a segunda parte, na qual ela actuaria como solista. Cerca de trinta anos tinham passado desde aquela vez que nos conhecemos. O nosso único encontro. Quando ela entrou com o maestro, o Pavilhão quase ruiu com os aplausos – estava no auge da sua carreira. Sentou-se, fez-se quase silêncio e ela atacou o primeiro andamento do Concerto para Piano e Orquestra, opus 16 de Grieg com o mesmo virtuosismo do autor.
Lembram-se? É uma entrada vigorosa.
Estava madura, mais cheia e mais bonita. A menina do vestido estampado com flores azuis, que assomava à janela para descansar as mãos e os braços, naquela moradia de dois pisos em S. João do Estoril, era agora uma consagrada pianista.
Passei cinco tardes encostado ao muro com gradeamento, que rodeava a sua casa, ouvindo-a estudar. Deveríamos ter dezassete anos. Logo no primeiro dia que parei para a ouvir, ela deu por mim. Como a pausa fosse grande, olhei para cima. Demos um pelo outro no mesmo centésimo de segundo. Olhámo-nos com curiosidade. Ela perguntando com o olhar “Estavas aqui a ouvir-me tocar?” E eu, na mesma linguagem “Fui apanhado!”
Nos cinco dias que passei ouvindo-a estudar, o esquema era normalmente o mesmo: umas escalas, depois um ou dois Estudos de Czerny, mais uma sonatina de Beethoven, alguns Nocturnos e Estudos de Chopin e parava aquele período de trabalho com uma peça ligeirinha, muito bonita, que ela já tocava com muita alma: “Fur Elise”. Depois talvez fosse lanchar, altura em que eu partia com a cabeça cheia de música.
Parecia que os deuses se interessaram por nós, primeiro, fazendo-me passar sob aquela janela naquele dia àquela hora. Segundo, proporcionando no domingo o nosso encontro na Patinagem de Cascais. Devíamos ter sido destinados um ao outro. Disse-lhe o meu nome e ela que se chamava Cecília. Falámos o resto da tarde com entusiasmo e franqueza. Ainda houve uns segundos para lhe perguntar “porquê o Fur Elise todos os dias e que tocas tão bem?” Ela sorriu e respondeu como uma criança que era “Porque gosto”.
Ficou tacitamente estabelecido que nos encontraríamos no domingo seguinte. Mas não aconteceu assim. Meus pais regressaram a Lisboa e eu com eles. Neste momento estava a vê-la, ao fim de cerca de trinta anos, a terminar o último andamento do Concerto em Lá Menor para piano e orquestra, de Grieg.
O Pavilhão parecia vir abaixo com a permanente ovação em forma de onda: subia e descia, mas não parava. Por indicação do maestro, a orquestra e a solista saíram mas ela voltou para tocar alguns extras e acalmar aquele auditório conquistado pela beleza e a perfeição da execução, que gritava o seu nome. Ao terceiro extra fui eu que gritei, já perdido, deseducadamente, “Fur Elise”. Fez-se um quase silêncio. Ela olhou em redor, tentando detectar o autor do pedido. Sentou-se de novo e tocou a bela peça que Beethoven tinha escrito para a Elisa.
Segui depois a fila das pessoas que iam ao seu camarim cumprimentá-la; toda a gente a ver e a ouvir o meu coração a bater. Estendeu-me a mão a sorrir e dizendo “Foste tu…” Beijei-a respondendo “Fui”. E nunca mais voltámos a ver-nos.
Passei cinco tardes encostado ao muro com gradeamento, que rodeava a sua casa, ouvindo-a estudar. Deveríamos ter dezassete anos. Logo no primeiro dia que parei para a ouvir, ela deu por mim. Como a pausa fosse grande, olhei para cima. Demos um pelo outro no mesmo centésimo de segundo. Olhámo-nos com curiosidade. Ela perguntando com o olhar “Estavas aqui a ouvir-me tocar?” E eu, na mesma linguagem “Fui apanhado!”
Nos cinco dias que passei ouvindo-a estudar, o esquema era normalmente o mesmo: umas escalas, depois um ou dois Estudos de Czerny, mais uma sonatina de Beethoven, alguns Nocturnos e Estudos de Chopin e parava aquele período de trabalho com uma peça ligeirinha, muito bonita, que ela já tocava com muita alma: “Fur Elise”. Depois talvez fosse lanchar, altura em que eu partia com a cabeça cheia de música.
Parecia que os deuses se interessaram por nós, primeiro, fazendo-me passar sob aquela janela naquele dia àquela hora. Segundo, proporcionando no domingo o nosso encontro na Patinagem de Cascais. Devíamos ter sido destinados um ao outro. Disse-lhe o meu nome e ela que se chamava Cecília. Falámos o resto da tarde com entusiasmo e franqueza. Ainda houve uns segundos para lhe perguntar “porquê o Fur Elise todos os dias e que tocas tão bem?” Ela sorriu e respondeu como uma criança que era “Porque gosto”.
Ficou tacitamente estabelecido que nos encontraríamos no domingo seguinte. Mas não aconteceu assim. Meus pais regressaram a Lisboa e eu com eles. Neste momento estava a vê-la, ao fim de cerca de trinta anos, a terminar o último andamento do Concerto em Lá Menor para piano e orquestra, de Grieg.
O Pavilhão parecia vir abaixo com a permanente ovação em forma de onda: subia e descia, mas não parava. Por indicação do maestro, a orquestra e a solista saíram mas ela voltou para tocar alguns extras e acalmar aquele auditório conquistado pela beleza e a perfeição da execução, que gritava o seu nome. Ao terceiro extra fui eu que gritei, já perdido, deseducadamente, “Fur Elise”. Fez-se um quase silêncio. Ela olhou em redor, tentando detectar o autor do pedido. Sentou-se de novo e tocou a bela peça que Beethoven tinha escrito para a Elisa.
Segui depois a fila das pessoas que iam ao seu camarim cumprimentá-la; toda a gente a ver e a ouvir o meu coração a bater. Estendeu-me a mão a sorrir e dizendo “Foste tu…” Beijei-a respondendo “Fui”. E nunca mais voltámos a ver-nos.
Friday, April 17, 2009
Este é o novo livro de João Paulo Guerra. Para ler e chorar por mais.
A carreira de Jornalista acaba, parece-me, em redactor principal. O que está mal. Deveria acabar em "Mestre", única categoria que poderia ser oferecida a João Paulo Guerra, que alia o Jornalismo e o Radialismo.
Publicou, entre outras, as obras "Memória das Guerras Coloniais, Savimbi - Vida e Morte" e "Descolonização Portuguesa - O Regresso das Caravelas".
Prémios: da Casa da Imprensa, dois prémios Gazeta, do Clube de Jornalismo e dois prémios de Reportagem Rádio do Clube Português de Imprensa, Prémio Procópio de Jornalismo e Prémio Nacional de Reportagem, do Clube de Jornalistas do Porto.
Voltarei em breve a este livro pois ainda estou a lê-lo com sofreguidão.
A carreira de Jornalista acaba, parece-me, em redactor principal. O que está mal. Deveria acabar em "Mestre", única categoria que poderia ser oferecida a João Paulo Guerra, que alia o Jornalismo e o Radialismo.
Publicou, entre outras, as obras "Memória das Guerras Coloniais, Savimbi - Vida e Morte" e "Descolonização Portuguesa - O Regresso das Caravelas".
Prémios: da Casa da Imprensa, dois prémios Gazeta, do Clube de Jornalismo e dois prémios de Reportagem Rádio do Clube Português de Imprensa, Prémio Procópio de Jornalismo e Prémio Nacional de Reportagem, do Clube de Jornalistas do Porto.
Voltarei em breve a este livro pois ainda estou a lê-lo com sofreguidão.
Friday, April 03, 2009
A NOVA MINISTRA
por Mia Couto*
“Quer dizer, a grande vantagem de estarmos no Poder é que, para sermos empresários, não
precisamos de empreender nada. A bem dizer, nem precisamos de empresas.”
- Meu querido marido, escutou o noticiário?
- Não. Há novidades importantes?
- Diz o noticiário que você deixou de ser ministro.
- Afinal, eu ainda era ministro?
- Disseram que era. Não sabia?
- Tinha uma vaga ideia. Mas acho que se enganaram, também estes jornalistas divulgam cada
coisa, sabe como é: jornalismo preguiçoso...
- Mas aquilo era um comunicado oficial. E disseram claramente o seu nome. Eu não fazia ideia.
Pensei que era só empresário.
- Ai é? Saí no noticiário? Mostraram a minha foto?
- Não. Mas, diga-me lá, marido, você era Ministro de quê?
- Ministro dos Assuntos Gerais. Uma coisa assim... Já agora, você reparou se disseram quem era o novo ministro?
- É um dos anteriores vice-ministros.
- Afinal havia mais que um?
-Havia sete vice-ministros.
- Sete? Eh pá, aquilo não era um Ministério, era um Vice-Ministério.
- Fica triste, marido?
- Bom, pá, paciência. Mais importante são os meus cargos nas 15 grandes empresas.
- Ontem, no nosso jantar, você disse que eram 35...
- Minha querida, você escutou mal. Não há, no país inteiro, 35 grandes empresas. Aliás, a maior
parte dos empresários de sucesso ainda anda à procura de empresas.
- Não entendo essa matemática.
- É que, no nosso país, há mais empresários que empresas.
- Trinta e cinco... Trinta e cinco são os nossos anos de casados. E estou tão orgulhosa de si, meu
ex-ministro, você foi sempre tão ambicioso...
- Ambicioso, não. Ganancioso.
- E qual é a diferença?
- O ambicioso faz coisas. O ganancioso apropria-se das coisas já feitas por outros.
- Você apropriou-se de mim que fui feita por outros.
- Isso é verdade, cara esposa. Uma coisa é verdade: vai-me fazer falta o poder.
- O poder? Não me diga que lhe a está faltar o poder, marido?
- Alto lá, falo apenas do poder político. Quer dizer, a grande vantagem de estarmos no Poder é
que, para sermos empresários, não precisamos de empreender nada. A bem dizer, nem precisamos
de empresas.
- Mas, marido, eu também tenho empresas, você diz que colocou uma data de empresas em meu
nome.
- Tem razão, minha querida. Vou usar das minhas influências e pedir para você ser nomeada
Ministra.
- Eu, Ministra? Para quê?
- Que é para, a partir de agora, você abrir empresas em meu nome.
* Crónica de Mia Couto publicada também na revista África 21, Luanda
“Quer dizer, a grande vantagem de estarmos no Poder é que, para sermos empresários, não
precisamos de empreender nada. A bem dizer, nem precisamos de empresas.”
- Meu querido marido, escutou o noticiário?
- Não. Há novidades importantes?
- Diz o noticiário que você deixou de ser ministro.
- Afinal, eu ainda era ministro?
- Disseram que era. Não sabia?
- Tinha uma vaga ideia. Mas acho que se enganaram, também estes jornalistas divulgam cada
coisa, sabe como é: jornalismo preguiçoso...
- Mas aquilo era um comunicado oficial. E disseram claramente o seu nome. Eu não fazia ideia.
Pensei que era só empresário.
- Ai é? Saí no noticiário? Mostraram a minha foto?
- Não. Mas, diga-me lá, marido, você era Ministro de quê?
- Ministro dos Assuntos Gerais. Uma coisa assim... Já agora, você reparou se disseram quem era o novo ministro?
- É um dos anteriores vice-ministros.
- Afinal havia mais que um?
-Havia sete vice-ministros.
- Sete? Eh pá, aquilo não era um Ministério, era um Vice-Ministério.
- Fica triste, marido?
- Bom, pá, paciência. Mais importante são os meus cargos nas 15 grandes empresas.
- Ontem, no nosso jantar, você disse que eram 35...
- Minha querida, você escutou mal. Não há, no país inteiro, 35 grandes empresas. Aliás, a maior
parte dos empresários de sucesso ainda anda à procura de empresas.
- Não entendo essa matemática.
- É que, no nosso país, há mais empresários que empresas.
- Trinta e cinco... Trinta e cinco são os nossos anos de casados. E estou tão orgulhosa de si, meu
ex-ministro, você foi sempre tão ambicioso...
- Ambicioso, não. Ganancioso.
- E qual é a diferença?
- O ambicioso faz coisas. O ganancioso apropria-se das coisas já feitas por outros.
- Você apropriou-se de mim que fui feita por outros.
- Isso é verdade, cara esposa. Uma coisa é verdade: vai-me fazer falta o poder.
- O poder? Não me diga que lhe a está faltar o poder, marido?
- Alto lá, falo apenas do poder político. Quer dizer, a grande vantagem de estarmos no Poder é
que, para sermos empresários, não precisamos de empreender nada. A bem dizer, nem precisamos
de empresas.
- Mas, marido, eu também tenho empresas, você diz que colocou uma data de empresas em meu
nome.
- Tem razão, minha querida. Vou usar das minhas influências e pedir para você ser nomeada
Ministra.
- Eu, Ministra? Para quê?
- Que é para, a partir de agora, você abrir empresas em meu nome.
* Crónica de Mia Couto publicada também na revista África 21, Luanda
Friday, March 20, 2009
CÃES A ENLOUQUECER
Consegue imaginar o que é viver e trabalhar num largo de Lisboa (Conde Ottolini, em Benfica), onde vários cães ladram de manhã à noite? Quando o número diminui, fica sempre um a marcar a presença. Está de piquete.
Ao fim destes anos todos, concluí que se trata de um acordo entre eles como vingança pelo mal que os homens lhes fazem. Então, ladram. Muito. Das varandas para os que vão no jardim(?). Os do jardim(?) para os que estão nas varandas. Alguns, com mais personalidade, uivam. E há a grande confusão dos donos. Os animais não são domésticos; são domesticados. Eram primitivamente selvagens e o homem domesticou-os (algumas raças). O que não lhe permite levá-los para dentro de um apartamento em plena cidade e deixá-los na varanda, pedindo-lhes que se imaginem no campo, numa quinta, numa floresta ou pinhal. Mas ainda afirmam que amam os animais quando, afinal, lhes estão a roubar o seu habitat, impondo-lhes condições degradantes até para um cão. Alguns, da maneira como nos olham e se movimentam, devem já estar meio-loucos. Talvez em mutação.
Há então um, já desesperado que, mal se vê no largo, corre para uma pedra que baliza os jogos dos rapazes e lhe ladra para debaixo, cheirando, ladrando, raspando, fungando, fingindo que ali está uma entrada de furão ou de coelho. É a maneira que o bicho encontrou de não enlouquecer de todo.
Agora o leitor junta a este regabofe canino (diário e desde a manhã até às 22 horas), os dejectos por todo o lado e os tiros, também de manhã à noite, num clube de tiro aos pratos, em Monsanto (zona de protecção ecológica).
Às vezes há crianças a brincar numa caixa de areia onde os cães urinam e defecam. Às vezes lancham sem lavar as mãos.
Consegue imaginar?
Ao fim destes anos todos, concluí que se trata de um acordo entre eles como vingança pelo mal que os homens lhes fazem. Então, ladram. Muito. Das varandas para os que vão no jardim(?). Os do jardim(?) para os que estão nas varandas. Alguns, com mais personalidade, uivam. E há a grande confusão dos donos. Os animais não são domésticos; são domesticados. Eram primitivamente selvagens e o homem domesticou-os (algumas raças). O que não lhe permite levá-los para dentro de um apartamento em plena cidade e deixá-los na varanda, pedindo-lhes que se imaginem no campo, numa quinta, numa floresta ou pinhal. Mas ainda afirmam que amam os animais quando, afinal, lhes estão a roubar o seu habitat, impondo-lhes condições degradantes até para um cão. Alguns, da maneira como nos olham e se movimentam, devem já estar meio-loucos. Talvez em mutação.
Há então um, já desesperado que, mal se vê no largo, corre para uma pedra que baliza os jogos dos rapazes e lhe ladra para debaixo, cheirando, ladrando, raspando, fungando, fingindo que ali está uma entrada de furão ou de coelho. É a maneira que o bicho encontrou de não enlouquecer de todo.
Agora o leitor junta a este regabofe canino (diário e desde a manhã até às 22 horas), os dejectos por todo o lado e os tiros, também de manhã à noite, num clube de tiro aos pratos, em Monsanto (zona de protecção ecológica).
Às vezes há crianças a brincar numa caixa de areia onde os cães urinam e defecam. Às vezes lancham sem lavar as mãos.
Consegue imaginar?
Wednesday, February 04, 2009
TROVOADA À ESQUERDA
A carripana carregada de livros, descia a Alexandre Herculano, passava obrigatoriamente pelo Paraíso, pelo contista Loureiro Botas a vender copos de leite à esquina, cortava à direita pela avenida da Liberdade e, mais abaixo, outra vez à direita entrando no Parque Mayer. Era o Movimento Literário Português dos anos 50. Esta carripana era constituída por um enorme gavetão rectangular, com quatro rodas de bicicleta (uma delas empenada) um varão com o timoneiro traseiro empurrando, gordo, mal-enjorcado e talvez o maior crítico português da actualidade. Uma frente sem beleza nem carranca, completava o Movimento muitas vezes aguardado por clientes fiéis e discretos vendedores com livros embrulhados em papel pardo.
Os livros tinham o preço mínimo de um escudo e o máximo de dois. Havia, porém, umas promoções (financiadas possivelmente pelo Ministério da Cultura): dois livros pelo preço de um. Ele sabia perfeitamente a que livros deveria botar o preço de um ou de dois escudos. Mesmo que os não lesse, pois não lia, obviamente. Aliás, desconfiei durante muitos anos que o presidente do Movimento, e seu principal dinamizador, fosse analfabeto, o que estaria então politicamente correcto.
Como, à época, só tinha dinheiro para o pequeno-almoço e para o almoço, bisbilhotava assiduamente a livralhada, sob o olhar aparentemente desatento do mal-enjorcado, e só ali podia encontrar as novidades literárias que ao fim de um ano não se tinham vendido e alguns restos de colecções, de que os editores se desfaziam para obter espaço no armazém.
Uma vez, por um escudo, comprei um livro chamado “E deitaram fogo ao Planeta”, escrito por um senhor que assinava discretamente J. Matias. A história era simples: um indivíduo com febre altíssima, tinha um pesadelo em que a humanidade, devido à sua sofreguidão em destruir, arrasando florestas e poluindo rios, mares e ares, lançara fogo ao Planeta. Um livro que, a ser publicado hoje, teria actualidade e por certo sucesso, além do patrocínio da Quercos.
Ora vai daí, eu tinha um professor de Física e de Química que se chamava Jorge Matias – um homem inteligentíssimo, culto e de esquerda, obviamente. Abordei-o na primeira oportunidade, perguntando-lhe se era o autor. Disse que não mas descaiu-se ao perguntar, já a dois passos de distância, se eu havia gostado. Cerca de um ano mais tarde voltei ao ataque e o resultado foi novamente negativo. Mas estava na cara que era dele já que o livro denunciava amplos conhecimentos científicos, como era o seu caso, autor dos manuais das disciplinas que leccionava e tinha uma linguagem que se aproximava muito com a utilizada nas aulas.
Numa Sexta-Feira de Alegria, desatinei e comprei dois livros: um de Artur Portela (na altura era Filho mas agora é Órfão), intitulado “A Funda”, e um de Cristopher Morley, que eu desconhecia mas cujo título, em inglês e português, me chamou a atenção: “Trovoada à Esquerda”, da Editorial Gleba, lda. E que livro! – comi-o todo no fim-de-semana, com capa dura e tudo! Uma obra-prima que tanto, mas tanto, publicitei aos amigos que fiquei sem ela. O livro conta uma história simples e profunda. Uma história que começa na meninice e acaba nos trinta e tal anos. Um casal que recebe, na sua casa de férias, uns amigos para o fim-de-semana. Num Verão quente e com trovoada. À esquerda. Várias vidas entrosadas, jogos de espelhos, a riqueza interior de cada ser. “A vida é uma língua estrangeira; poucos a pronunciam correctamente.”
E foi mesmo assim: cinquenta anos depois, a minha amiga Maria de Lourdes arranja-me o livro (com a ajuda de um feiticeiro africano morador em Algés) e abracei-o e reli-o e folheei-o encantado. Então notei que tinha a mesma página 90 suja de tinta tipográfica, tinha a mesma página mal guilhotinada na 181 e o mesmo nome apagado com violência na página um. Em resumo: era o meu, que voltara por amor.
Álvaro Belo Marques
(In TempoLivre, de Fevereiro de 2009
Os livros tinham o preço mínimo de um escudo e o máximo de dois. Havia, porém, umas promoções (financiadas possivelmente pelo Ministério da Cultura): dois livros pelo preço de um. Ele sabia perfeitamente a que livros deveria botar o preço de um ou de dois escudos. Mesmo que os não lesse, pois não lia, obviamente. Aliás, desconfiei durante muitos anos que o presidente do Movimento, e seu principal dinamizador, fosse analfabeto, o que estaria então politicamente correcto.
Como, à época, só tinha dinheiro para o pequeno-almoço e para o almoço, bisbilhotava assiduamente a livralhada, sob o olhar aparentemente desatento do mal-enjorcado, e só ali podia encontrar as novidades literárias que ao fim de um ano não se tinham vendido e alguns restos de colecções, de que os editores se desfaziam para obter espaço no armazém.
Uma vez, por um escudo, comprei um livro chamado “E deitaram fogo ao Planeta”, escrito por um senhor que assinava discretamente J. Matias. A história era simples: um indivíduo com febre altíssima, tinha um pesadelo em que a humanidade, devido à sua sofreguidão em destruir, arrasando florestas e poluindo rios, mares e ares, lançara fogo ao Planeta. Um livro que, a ser publicado hoje, teria actualidade e por certo sucesso, além do patrocínio da Quercos.
Ora vai daí, eu tinha um professor de Física e de Química que se chamava Jorge Matias – um homem inteligentíssimo, culto e de esquerda, obviamente. Abordei-o na primeira oportunidade, perguntando-lhe se era o autor. Disse que não mas descaiu-se ao perguntar, já a dois passos de distância, se eu havia gostado. Cerca de um ano mais tarde voltei ao ataque e o resultado foi novamente negativo. Mas estava na cara que era dele já que o livro denunciava amplos conhecimentos científicos, como era o seu caso, autor dos manuais das disciplinas que leccionava e tinha uma linguagem que se aproximava muito com a utilizada nas aulas.
Numa Sexta-Feira de Alegria, desatinei e comprei dois livros: um de Artur Portela (na altura era Filho mas agora é Órfão), intitulado “A Funda”, e um de Cristopher Morley, que eu desconhecia mas cujo título, em inglês e português, me chamou a atenção: “Trovoada à Esquerda”, da Editorial Gleba, lda. E que livro! – comi-o todo no fim-de-semana, com capa dura e tudo! Uma obra-prima que tanto, mas tanto, publicitei aos amigos que fiquei sem ela. O livro conta uma história simples e profunda. Uma história que começa na meninice e acaba nos trinta e tal anos. Um casal que recebe, na sua casa de férias, uns amigos para o fim-de-semana. Num Verão quente e com trovoada. À esquerda. Várias vidas entrosadas, jogos de espelhos, a riqueza interior de cada ser. “A vida é uma língua estrangeira; poucos a pronunciam correctamente.”
E foi mesmo assim: cinquenta anos depois, a minha amiga Maria de Lourdes arranja-me o livro (com a ajuda de um feiticeiro africano morador em Algés) e abracei-o e reli-o e folheei-o encantado. Então notei que tinha a mesma página 90 suja de tinta tipográfica, tinha a mesma página mal guilhotinada na 181 e o mesmo nome apagado com violência na página um. Em resumo: era o meu, que voltara por amor.
Álvaro Belo Marques
(In TempoLivre, de Fevereiro de 2009
Monday, February 02, 2009
O BAIRRO DA LATA
Sempre que me passa pelas mãos o Bairro da Lata, não resisto a ler a passagem
da ida dos rapazes â caça das rãs e de como o Gay é louvado no final.
Devem estar recordados que o Gay ingressou no grupo quando saiu de casa por
a mulher lhe bater.
O modelo t Ford de Lee Chong possuía uma história
respeitável Em 1923 fora carro de turismo do Dr. W. T.
Waters. Este
utilizou-o durante cinco anos e vendeu-o depois a um agente
de seguros de nome Rottle. Mr. Rottle não era homem
cuidadoso. Conduzia à bruta o carro que adquirira em óptimo
estado. Mr. Rottle bebia nas noi tes de sábado e o carro
ressentia-se. Amolgaram-se e partiram-se o; guarda-lamas. O
abuso dos travões forçava à substituição frequente das cintas.
Quando Mr. Rottle desviou o dinheiro de um cliente e fugiu na
companhia de uma loura espampanante, foi apanhado e engaiolado
no espaço de dez dias. A carroçaria estava tão amachucada que
o novo proprietário cortou-a em duas e acrescentou-lhe uma
pequena caixa de camião.
O proprietário seguinte tirou-lhe a parte dianteira da
cabina e o pára-brisas. Servia-se dele para arrancar
percebes e regalava-se com a brisa fresca na cara.
Chamava-se Francis Almones e levava vida triste, pois ganhava
sempre menos uma fracção do que precisava para viver. O pai
deixara-lhe uns dinheiritos, mas ano após ano, mês após mês,
por mais que Francis trabalhasse, por mais cuidado que
tivesse, o dinheiro ia diminuindo, até que por fim secou de
todo, sumiu-se. Lee Chong recebera a camioneta em troca de
uma conta da mercearia. Por essa altura o carro não era mais
do que quatro rodas e um motor; e este tão emperrado, tão
embezerrado e caturra, que requeria cuidados e estudos
especializados.
Lee Chong não lhos proporcionava, do que resultava
permanecer o carro na relva por trás da mercearia quase sempre
com abóboras a crescerem-lhe entre os raios. Tinha pneus
sólidos nas rodas traseiras
e uns cepos erguiam do chão as da frente.
É provável que qualquer dos rapazes do Palácio Flophouse
pudesse pôr o carro em boa forma, pois eram todos mecânicos
competentes e com prática, mas Gay era um mecânico inspirado.
Não há termo aplicável a semelhante mecânico que se compare a
mãos de fada, mas devia haver. Porque existiam homens capazes
de ver, ouvir, sondar, ajustar, e a máquina funciona. Na
verdade, há homens nas mãos dos quais um motor funciona
melhor. Assim era Gay. Os seus dedos sobre um distribuidor ou
um parafuso de afinação do carburador eram leves, seguros,
conhecedores. Conseguira consertar os delicados motores
eléctricos no Laboratório. Podia, se quisesse, ter sempre
trabalho nas fábricas, pois nessa indústria, onde amargamente
se queixam quando não realizam cada ano o total do capital em
lucros, são muito menos importantes as máquinas do que as
declarações fiscais. De facto, se fosse possível enlatar
sardinhas com relatórios, os donos ficariam imensamente
felizes. Assim, empregavam uns velhos horrores de máquinas
decrépitas, trepidantes, necessitando dos cuidados constantes
de um homem como Gay. Mack fez os rapazes levantarem-se
cedo. Tomaram o seu café e dirigiram-se logo para onde o carro
se encontrava, entre as ervas. Gay superintendia. Deu uns
pontapés nas rodas encalhadas da frente.Vão pedir uma bomba
emprestada e encham-me isso - disse. A seguir meteu um pau no
reservatório da gasolina por baixo da prancha que servia de
assento. Por milagre havia meia polegada de gasolina no
reservatório. Depois Gay passou revista às dificuldades mais
prováveis. Tirou fora as caixas das bobinas, raspou os
platinados, ajustou a folga e voltou a colocá-los nos seus
lugares. Abriu o carburador para certificar-se de que a
gasolina chegava lá. Deu à manivela para ter a certeza de que
a cambota não gelara de todo e os pistões não estavam
enferrujados.
Entretanto chegou a bomba e Eddie e Jones, revezando-se,
encheram os pneus. Gay cantarolava - tum-ta ta, tum-ta ta -
enquanto trabalhava. Tirou as velas, limpou os eléctrodos e
raspou o carvão. Depois escorreu um pouco da gasolina para uma
lata e deitou alguma em cada um dos cilindros antes de colocar
as velas novamente nos seus lugares. Endireitou-se. - A gente
vai precisar dum par de pilhas secas - disse.
Vê se consegues quo Lee Chong tas dê.
Mack partiu e voltou quase a seguir com um não universal,
destinado por Lee Chong a cortar quaisquer pedidos futuros.
Gay reflectiu intensamente. - Sei ondhá um par delas, bem boas
por sinal, mas eu cá não vou buscá-las.
- Ondé? - perguntou Mack.
- Na cave lá de casa - disse Gay. - São as que fazem
funcionar as campainhas da entrada. Sum de vocês se esgueirar
té à cave sem a minha patroa dar por isso, stão ao cimo, no
tabique à esquerda de quem entrar. Mas pormor de Deus não se
deixem apanhar pla patroa. Em conferência, elegeram Eddie
para ir, e ele partiu. - Se fores apanhado não fales em mim -
gritou-lhe Gay à partida. Entretanto experimentava as cintas.
O pedal alto e baixo não tocava no chão, por isso concluiu que
lhe restava ainda alguma cinta. O pedal do travão, esse sim,
encostava completamente no chão, portanto não havia travão;
mas o pedal de marcha-atrás ainda conservava muita cinta por
gastar. No modelo T do Ford o pedal de marcha-atrás é a tábua
de salvação. Quando falha o travão pode utilizar-se a
marcha-atrás em sua substituição. E quando a cinta de
velocidade baixa está gasta de mais para se poder subir uma
ladeira íngreme, então pode dar-se a volta ao carro e metê-lo
em marcha-atrás. Gay verificou que a marcha-atrás estava em
bom estado e tinha a certeza de que tudo correria bem.
Foi de bom augúrio ter o Eddie regressado sem novidade com
as pilhas. Mrs. Gay encontrava-se na cozinha. Eddie ouviu-a a
andar de um lado para o outro, mas ela não ouviu o Eddie.
Tinha um jeitão para coisas destas o Eddie.
Gay ligou as pilhas, acelerou a gasolina e atrasou a
ignição. - Dá à manivela - disse ele.
Um portento, era este Gay - um mecanicozinho de Deus, o S.
Francisco de todas as coisas que rodam, torcem, explodem, o S.
Francisco das bobinas, das cambotas e dos carretos. E se algum
dia toda a caterva de calhambeques avariados, Lusenbergs,
Buicks, De Sottos e Plymouths, Austins americanos e Isotta
Fraschinis elevarem num grande coro os seus louvores a Deus -
será em grande parte devido a Gay e à sua confraria.
Um jeito, só um jeitinho, e o motor pegou, funcionou, falhou
e tornou a pegar. Gay avançou a ignição e desacelerou: Ligou
ao magneto e o Ford do Lee Chong gorgolejou, tremelicou e
estrondeou feliz como se soubesse que trabalhava para alguém
que o amava e compreendia.
da ida dos rapazes â caça das rãs e de como o Gay é louvado no final.
Devem estar recordados que o Gay ingressou no grupo quando saiu de casa por
a mulher lhe bater.
O modelo t Ford de Lee Chong possuía uma história
respeitável Em 1923 fora carro de turismo do Dr. W. T.
Waters. Este
utilizou-o durante cinco anos e vendeu-o depois a um agente
de seguros de nome Rottle. Mr. Rottle não era homem
cuidadoso. Conduzia à bruta o carro que adquirira em óptimo
estado. Mr. Rottle bebia nas noi tes de sábado e o carro
ressentia-se. Amolgaram-se e partiram-se o; guarda-lamas. O
abuso dos travões forçava à substituição frequente das cintas.
Quando Mr. Rottle desviou o dinheiro de um cliente e fugiu na
companhia de uma loura espampanante, foi apanhado e engaiolado
no espaço de dez dias. A carroçaria estava tão amachucada que
o novo proprietário cortou-a em duas e acrescentou-lhe uma
pequena caixa de camião.
O proprietário seguinte tirou-lhe a parte dianteira da
cabina e o pára-brisas. Servia-se dele para arrancar
percebes e regalava-se com a brisa fresca na cara.
Chamava-se Francis Almones e levava vida triste, pois ganhava
sempre menos uma fracção do que precisava para viver. O pai
deixara-lhe uns dinheiritos, mas ano após ano, mês após mês,
por mais que Francis trabalhasse, por mais cuidado que
tivesse, o dinheiro ia diminuindo, até que por fim secou de
todo, sumiu-se. Lee Chong recebera a camioneta em troca de
uma conta da mercearia. Por essa altura o carro não era mais
do que quatro rodas e um motor; e este tão emperrado, tão
embezerrado e caturra, que requeria cuidados e estudos
especializados.
Lee Chong não lhos proporcionava, do que resultava
permanecer o carro na relva por trás da mercearia quase sempre
com abóboras a crescerem-lhe entre os raios. Tinha pneus
sólidos nas rodas traseiras
e uns cepos erguiam do chão as da frente.
É provável que qualquer dos rapazes do Palácio Flophouse
pudesse pôr o carro em boa forma, pois eram todos mecânicos
competentes e com prática, mas Gay era um mecânico inspirado.
Não há termo aplicável a semelhante mecânico que se compare a
mãos de fada, mas devia haver. Porque existiam homens capazes
de ver, ouvir, sondar, ajustar, e a máquina funciona. Na
verdade, há homens nas mãos dos quais um motor funciona
melhor. Assim era Gay. Os seus dedos sobre um distribuidor ou
um parafuso de afinação do carburador eram leves, seguros,
conhecedores. Conseguira consertar os delicados motores
eléctricos no Laboratório. Podia, se quisesse, ter sempre
trabalho nas fábricas, pois nessa indústria, onde amargamente
se queixam quando não realizam cada ano o total do capital em
lucros, são muito menos importantes as máquinas do que as
declarações fiscais. De facto, se fosse possível enlatar
sardinhas com relatórios, os donos ficariam imensamente
felizes. Assim, empregavam uns velhos horrores de máquinas
decrépitas, trepidantes, necessitando dos cuidados constantes
de um homem como Gay. Mack fez os rapazes levantarem-se
cedo. Tomaram o seu café e dirigiram-se logo para onde o carro
se encontrava, entre as ervas. Gay superintendia. Deu uns
pontapés nas rodas encalhadas da frente.Vão pedir uma bomba
emprestada e encham-me isso - disse. A seguir meteu um pau no
reservatório da gasolina por baixo da prancha que servia de
assento. Por milagre havia meia polegada de gasolina no
reservatório. Depois Gay passou revista às dificuldades mais
prováveis. Tirou fora as caixas das bobinas, raspou os
platinados, ajustou a folga e voltou a colocá-los nos seus
lugares. Abriu o carburador para certificar-se de que a
gasolina chegava lá. Deu à manivela para ter a certeza de que
a cambota não gelara de todo e os pistões não estavam
enferrujados.
Entretanto chegou a bomba e Eddie e Jones, revezando-se,
encheram os pneus. Gay cantarolava - tum-ta ta, tum-ta ta -
enquanto trabalhava. Tirou as velas, limpou os eléctrodos e
raspou o carvão. Depois escorreu um pouco da gasolina para uma
lata e deitou alguma em cada um dos cilindros antes de colocar
as velas novamente nos seus lugares. Endireitou-se. - A gente
vai precisar dum par de pilhas secas - disse.
Vê se consegues quo Lee Chong tas dê.
Mack partiu e voltou quase a seguir com um não universal,
destinado por Lee Chong a cortar quaisquer pedidos futuros.
Gay reflectiu intensamente. - Sei ondhá um par delas, bem boas
por sinal, mas eu cá não vou buscá-las.
- Ondé? - perguntou Mack.
- Na cave lá de casa - disse Gay. - São as que fazem
funcionar as campainhas da entrada. Sum de vocês se esgueirar
té à cave sem a minha patroa dar por isso, stão ao cimo, no
tabique à esquerda de quem entrar. Mas pormor de Deus não se
deixem apanhar pla patroa. Em conferência, elegeram Eddie
para ir, e ele partiu. - Se fores apanhado não fales em mim -
gritou-lhe Gay à partida. Entretanto experimentava as cintas.
O pedal alto e baixo não tocava no chão, por isso concluiu que
lhe restava ainda alguma cinta. O pedal do travão, esse sim,
encostava completamente no chão, portanto não havia travão;
mas o pedal de marcha-atrás ainda conservava muita cinta por
gastar. No modelo T do Ford o pedal de marcha-atrás é a tábua
de salvação. Quando falha o travão pode utilizar-se a
marcha-atrás em sua substituição. E quando a cinta de
velocidade baixa está gasta de mais para se poder subir uma
ladeira íngreme, então pode dar-se a volta ao carro e metê-lo
em marcha-atrás. Gay verificou que a marcha-atrás estava em
bom estado e tinha a certeza de que tudo correria bem.
Foi de bom augúrio ter o Eddie regressado sem novidade com
as pilhas. Mrs. Gay encontrava-se na cozinha. Eddie ouviu-a a
andar de um lado para o outro, mas ela não ouviu o Eddie.
Tinha um jeitão para coisas destas o Eddie.
Gay ligou as pilhas, acelerou a gasolina e atrasou a
ignição. - Dá à manivela - disse ele.
Um portento, era este Gay - um mecanicozinho de Deus, o S.
Francisco de todas as coisas que rodam, torcem, explodem, o S.
Francisco das bobinas, das cambotas e dos carretos. E se algum
dia toda a caterva de calhambeques avariados, Lusenbergs,
Buicks, De Sottos e Plymouths, Austins americanos e Isotta
Fraschinis elevarem num grande coro os seus louvores a Deus -
será em grande parte devido a Gay e à sua confraria.
Um jeito, só um jeitinho, e o motor pegou, funcionou, falhou
e tornou a pegar. Gay avançou a ignição e desacelerou: Ligou
ao magneto e o Ford do Lee Chong gorgolejou, tremelicou e
estrondeou feliz como se soubesse que trabalhava para alguém
que o amava e compreendia.
Thursday, January 29, 2009
AMAZING, NOTE DATE
"Owners of capital will stimulate the working class to buy more and more of expensive goods, houses and technology, pushing them to take more and more expensive credits, until their debt becomes unbearable. The unpaid debt will lead to bankruptcy of banks, which will have to be nationalized, and the State will have to take the road which will eventually lead to communism"
Karl Marx, Das Kapital, 1867
Karl Marx, Das Kapital, 1867
Monday, January 26, 2009
´SÓCRATES
"É mais fácil escrever sobre Sócrates que sobre uma mulher jovem ou um cozinheiro".
Anton Tchekov
Anton Tchekov
Wednesday, January 21, 2009
HISTÓRIA DA "ÚLTIMA CEIA", DE LEONARDO
.... por muito que se esforçasse - e como ele se esforçou - , não conseguia encontrar um modelo para Judas! Pintara todos os discípulos. Este era o único que ainda estava em branco, sem rosto definido. Os anos foram-se passando enquanto ele continuava a procurar um modelo que tivese a expressão adequada. Mas inutilmente. E o fresco permanecia no mesmo estado. Incompleto. E posso mesmo dizer-lhes que houve uma altura em que Leonardo desistiu. Até que um dia - de uma maneira absolutamente incrível -, no mercado encontrou o rosto que procurava ao longo de todo aquele tempo. E foi dado vida a Judas! Deu dinheiro ao homem, elogiou-o, arrastou-o para o seu estúdios e começou a trabalhar. Conseguem imaginar a energia com que voltou a pegar nos seus pincéis? Nesse instante ergue o olhar e o que é que pensam que ele vê? O seu modelo, com a cabeça enterrada nas mãos, chora de uma maneira incontrolável. “O que é que há?”, pergunta Leonardo, “qual é o problema, homem?”
No primeiro instante o homem agita a cabeça, como todos nós fazemos quando não queremos confessar qualquer coisa. Finalmente balbucia a razão da sua angústia. Muitos anos antes sentara-se naquela mesma cadeira. Sentara-se exactamente no mesmo lugar que lhe haviam indicado desta vez. Mas da primeira vez estivera ali para posar como Cristo...
in O Mestre de Dança, de Nicholas Shakespeare.
No primeiro instante o homem agita a cabeça, como todos nós fazemos quando não queremos confessar qualquer coisa. Finalmente balbucia a razão da sua angústia. Muitos anos antes sentara-se naquela mesma cadeira. Sentara-se exactamente no mesmo lugar que lhe haviam indicado desta vez. Mas da primeira vez estivera ali para posar como Cristo...
in O Mestre de Dança, de Nicholas Shakespeare.
Monday, January 12, 2009
DITO
No periódico "Mudar de Vida", lemos na última página:
"Legalmente é um advérbio robusto, aguenta com tantas fortunas!"
Balzac "Les Paysans"
Oportunamente falaremos deste periódico popular.
"Legalmente é um advérbio robusto, aguenta com tantas fortunas!"
Balzac "Les Paysans"
Oportunamente falaremos deste periódico popular.
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