Thursday, April 06, 2006

35. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

16.

Linda Marlowe esperava-o já com a porta aberta.
- Entre, Bronco.
Isto enquanto a ambulância seguia em silêncio.
- Olá, Linda.
- Entre, tire essa bata e ponha-se à vontade.
A pequena sala estava cuidadosamente decorada, com
sofás confortáveis, uma estante repleta de livros,
quadros nas paredes, um pequeno aquário iluminado e
um discreto bar, perto de uma das janelas. Uma alcatifa
cor de mostarda cobria o chão. Sobre três pequenas
mesas e no bar, várias jarras com flores, por certo
gentileza para saudar o visitante, no clássico estilo
"diga-o com flores". As cortinas semicerradas, davam
uma luz acolhedora ao ambiente.
- Sente-se, Bronco.
- Tenho de me estender... sobre este lado...
- Estenda-se e descontraia-se. Isso. Agora vou servir-lhe
um uísque. Fraquinho, claro, por causa dos antibióticos.
- Que gosto terá?
Bronco sentou-se de lado, encostando-se a dois
almofadões de veludo.
Linda dominava-se quase bem; estava nervosa e
excitada.
Preparara a recepção com cuidado, não faltando ainda os
aperitivos e a alta-fidelidade sussurrando um trecho
suave.
Na gaveta da cómoda, no seu quarto, dormia uma foto
12 por 18 de Edgar Marlowe, com uma dedicatória
simples: Para a minha adorada Linda. Teu Edgar.
Sorria, o estúpido.
- Quer com mais gelo?
- Está bem assim, Linda.
Bebeu e acendeu um cigarro.
Linda sentou-se num pequeno tamborete e ajeitou a
saia.
- Tenho um recado para si. O Chefe O'Hara disse que
estava suspenso o convite para jantar e que mais tarde
falaria consigo.
O detective continuou a bebida. Linda, que, como já
dissemos, ocultava mal o nervosismo, acrescentou:
- E eu... eu queria, quero pedir-lhe para parar com as
investigações... acho que é inútil, quero dizer, para quê?
Edgar morreu. Ninguém lhe dará de novo a vida.
Levantou-se e foi servir-se também de uma bebida.
- Linda. Não tenciono desistir.
- Oiça-me. Eu amava Edgar. Edgar morreu. Não quero
que me atinja uma segunda morte...
Foi interrompida pela campainha do telefone.
- Linda Marlowe.... Sim, Chefe. Um momento. - É para
si, Bronco. É o Chefe O'Hara. Deixe-se estar. Levo aí o
telefone.
E levou mesmo. Gentilmente.
- Olá, velho. Já estava a achar muito milho papar-lhe
um jantar no seu requintado apartamento de solteiro...
não arranjou dinheiro para a comida? Foi?
E ficou à escuta, cada vez mais sério. Fez sinal a Linda
para lhe servir mais uísque e continuou a escutar,
soltando ocasionais monossílabos.
- Compreendo, Chefe. Quando chega a altura de receber
os louros, correm-se com os mastins de terceira. OK. mas
não vou parar. Pois... Dê-me um tiro e fica tudo resolvido.
E desligou, pensativo.
- Tome, Bronco.
E Linda meteu-lhe o copo na mão, pegou no seu e
sentou-se de novo no tamborete.
- Eles não vão desistir, Bronco. Não deveria andar por aí.
Preparei tudo para que possa cá ficar... já que não tem
ninguém para tomar conta de si...
- Obrigado mas não posso.
- As flores e tudo o mais foi em sua honra, em sua
intenção e... não bebia um uísque desde que o Edgar...
Começou a chorar suavemente, sem ruído; só as
lágrimas caindo pelas suas belas e pálidas faces. O
choro de uma mulher que sabia dominar-se.
- Desculpe, Linda... Amei muito uma mulher e perdi-a.
Pensava nela agora, sem conseguir recordar-me já das
suas feições. Como esquecemos depressa as feições...
Linda esboçou um leve sorriso por entre as lágrimas.
- Essa imagem de dureza, mesmo de rudeza, é só
aparente. Vi isso quando o conheci...
Bronco baixou os olhos candidamente, sorveu outro
gole e confessou:
- Uma defesa?! Talvez. Uma vida dura, numa
profissão dura e cruel. Não tive família. O resto foi
trabalho ordinário, rasteiras e guerra. O Governo
deu-me gratuitamente um curso completo de assassino.
O único curso superior que tenho. Sei matar de várias
maneiras e estilos, com vários utensílios e sem eles. Sou
formado.
E restou, entre eles, o silêncio pesado das recordações.
A tarde caía. As sombras invadiam já a sala e um turpor,
misto de drogras e de álcool, invadiu Bronco Vale.
Linda desligou a alta-fidelidade e, do seu quarto, trouxe
uma manta, cobrindo com cuidado o detective que,
entretanto, adormecera no amplo sofá. E ficou de pé,
olhando-o, não com amor, mas com uma certa ternura,
quase desejando-o.
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(De Ed. B. Silverman)

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