17.
Eram nove e meia da manhã quando Eugene O'Hara subiu
de elevador até ao apartamento de Maureen. Levava a
arma destravada, no amplo bolso do sobretudo.
Maureen acabara de se arrumar. Uma camisola branca de
malha, de gola alta, e umas calças de veludo vermelho,
justas ambas ao corpo, realçavam a sua silhueta. A casa
cheirava ao café da manhã, acabado de fazer. Acendeu um
cigarro e pegou na TV News.
O toque da campainha não a incomodou. Foi atender
indiferente.
- Quem é?
- Eugene O'Hara
Abriu.
Especado, olhando-a fixamente com um só olho, estava
O'Hara.
Maureen sentiu o sangue subir-lhe ao rosto. Uma pequena
vertigem levou os seus pensamentos, em turbilhão, a
uma rápida sequência de infância, adolescência e presente.
O coração acelerou. "Oh não! Não pode ser! Como é
possível?!"
A muito custo, o polícia disse, como em segredo:
- Ainda me chamo Eugene - e estendeu a mão humana.
Maureen cada vez mais perturbada, pegou nela
carinhosamente e puxou-o para dentro de casa.
Olharam-se atónitos.
- Finalmente, querido! Óh, meu Deus! Não pode ser! Não
acredito! Não é verdade! Essas coisas não acontecem...
não há milagres...
E, esquecendo-se de fechar a porta, abraçou-se a O'Hara,
passando-lhe as mãos pela cabeça e pelas costas, com
inexcedível carinho, mas também um certo sentido de
posse.
- Lys, meu amor - murmurou O'Hara, com voz rouca. -
Lys... sempre andei perdido... sempre andei perdido
sem ti...
Maureen, aliás Lys Anderson, fechou a porta de entrada
e ajudou o detective a despir o sobretudo.
- Querido. Soube que tinhas ficado estropiado no
Vietnam, mas ninguém me soube dizer mais nada. Cheguei
a falar com o adjunto do secretário de estado da Defesa.
Tratou-me e falou como se tivesses deixado de existir.
Fez-se um silêncio total à tua volta. Sofri tanto...
- Um atentado à bomba. Não vim directamente para os
Estados Unidos. Por questões de segutança, fiquei alguns
anos em Inglaterra. Combinação entre as suas secretas.
- Anda, meu querido, senta-te.
Ainda confuso, sentindo a irrealidade do momento,
sentou-se no sofá e estendeu a perna de pau sobre uma
cadeira.
- Porquê O'Hara? Ouvi falar do "Chefe O'Hara"... nunca
imaginaria que fosses tu.
- Trabalhei na contra-espionagem. Parece que fiz algumas
coisas de jeito, pelo que há vários sócios que me apagarão
com todo o prazer. O departamento sugeriu uma longa
estadia em Inglaterra e que usasse o apelido de meu avô.
Que desaparecesse da circulação. Assim... sem um olho,
sem perna e sem mão, será difícil reconhecerem-me... e
não penso que ainda andem à minha procura... acabou tudo.
Saí da agência e ingressei na Polícia... para mais segurança.
- Conheci-te logo.
- Não foi pela vista que me conheceste; foi pelo coração.
- Pela vista... como podes observar, também eu tive um
problema.
- Conta-me, Lys, meu amor.
- Espera, querido. Temos tanto que dizer um ao outro...
vamos tomar um café, meu amor...
Lys pouco demorou na cozinha. O café da manhã já estava
pronto. Durante estes breves momentos, O'Hara
murmurava apenas : "Ó meu Deus! Ó meu Deus!"
Ela trouxe uma bandeja com duas chávenas e um globo de
vidro de café. A bandeja tremia-lhe nas mãos. Serviram-se,
sorrindo um para o outro, como dois parvos adolescentes.
- Fui operada, após o acidente com o carro. O vidro da
frente estilhaçou-se e um pedaço cortou-me uma vista.
Nada se pôde fazer. Coloquei, então, este olho artificial.
De início incomoda, mas depois o hábito faz o resto.
- Quase que não se nota, Lys. Precisamente na mesma cor e
formato do outro, do bom.
- Queres experimentar, Eugene?
- Pôr o teu olho? Posso?
- O meu não. Anda cá.
Pegou-lhe na mão e levou-o para o quarto. De um pequeno
armário, retirou uma bonita caixa envernizada. Abriu-a.
Dentro, sobre veludo branco, uma colecção de olhos de
várias cores e tamanhos. Parecia uma multidão curiosa
a espreitar para Lys e para o polícia.
- Nem sempre temos os olhos da mesma cor. Há suaves
tonalidades que cambiam consoante a nossa disposição
e a luz do dia. Com esta colecção, estou sempre mais apta
a escolher.
- Mas... e os tamanhos?
- Bem... se bebemos um pouco mais, à noite, no outro dia
temos os olhos maiores...
O'Hara retirou um olho, levantou rapidamente a pála e
colocou-o na cavidade ocular, mirando-se no espelho do
toucador. Estava com um olho castanho e outro verde-
-escuro. Ou melhor, o castanho vigiando curiosamente
o verde-escuro.
- Esse não te fica bem, querido. Experimenta este
castanho.
-Áh! - exclamou O'Hara, mirando-se novamente ao
espelho.
Parecia verdadeiramente outro homem. Quae não se
notava a diferença entre o olho verdadeiro e o falso,
excepto quando se olhava para um dos lados e o outro
se recusava a acompanhar o parceiro. O'Hara
endireitou-se, cresceu e abraçou fogosamente Lys.
Beijaram-se como há quinze anos, com extremo ardor
e primaveril juventude.
- Eugene, meu amor... - balbuciou ternamente Lys, mas
logo se recompôs.
- Pronto, Eugene. Vamos para a sala. Temos de falar...
anda, querido.
Regressaram, arfando, para a sala, devorando-se
mutuamente, cada um com o seu olho são.
O'Hara sorriu da ideia.
- Lys. Se na rua, fores sempre do meu lado direito,
poderemos vermo-nos perfeitamente, já que o meu olho
falso é o esquerdo e o teu é o direito...
Lys riu-se também, sem complexos; já os ultrapassara
há muito.
Fez-se então o silêncio que ambos temiam. O café, nas
chávenas, esperava.
- Eugene.
- Sim.
- Vieste prender-me?
- Vim.
- Acreditas no bem, na moral, na humanidade, em
ideologias políticas, na fraternidade, no amor, na Cruz
Vermelha, na UNICEF...
- Talvez... mas menos que antigamente.
Em tom calmo e baixo continuou:
- Quantos mataste no Vietnam, entre agentes e inocentes,
entre soldados e civis indefesos?
O'Hara atravessava agora a pior crise da sua vida.
- Lys, peço-te...
- Querido. Tem coragem e encara a verdade da vida,
frontalmente. Quantos? Quantos mataste?
- Dezenas... talvez centenas... não sei.
- E a que título? Com que direito? E, possivelmente, alguns
com as tuas próprias mãos.
O'Hara tremeu e baixou a cabeça, caindo-lhe no tapete o
olho artificial.
- Não podes ter lágrimas nos olhos, Eugene. Terás de fazer
exercícios com a pálpebra e semicerrar os olhos. Ensinar-te-ei
se... houver tempo e ainda quiseres.
- Eu quero-te, Lys. Sempre te quis. Depois de ti, não houve
mais ninguém na minha vida.
- Então esperamos o quê? Agora já falámos. Já sei o que queria
saber. E tu? Também já sabes tudo...
E começou a despir-se, sem pressa, mas com adulta
determinação. Peça a peça, até ficar nua. Um belo e ainda
jovem corpo de mulher.
- Eugéne. Não estamos a três dias da tua partida para a
guerra. Somos mais adultos agora e mais experientes.
O'Hara levantou-se com dificuldade. A perna de pau
escorregara juntamente com o tapete. Equilibrou-se e cobriu
Lys com o seu corpo. Abraçaram-se e beijaram-se com
fúria, numa bebedeira de desejo. De amor.
No chão, o olho castanho de O'Hara parecia divertidíssimo.
Só ao segundo toque ouviram a campainha da porta.
O'Hara teve reflexos mais rápidos do que Lys. Deu-lhe o
sobretudo e atirou as peças de roupa de Lys para debaixo
do sofá. A cena não enganava ninguém, mas estava mais
composta, segundo o pensamento de Eugene O'Hara.
Foi abrir a porta, enquanto Lys vestia o amplo sobretudo.
Bronco Vale, de mãos dolentes repousando nos bolsos,
sorria para O'Hara.
- Posso entrar?
E entrou, apesar de ninguém o ter convidado. Tirou o chapéu
e cumprimentou, irónico:
- Viva, Maureen. É Maureen, não é? Não imaginava que
fosse tão bonita... apesar desse velho sobretudo, que julgo
pertencer aqui ao Chefe O'Hara. A propósito: Já lhe deu
ordem de prisão?
- Sente-se, Bronco... se puder.
- Posso, de lado. Mas não me quero sentar.
- Como chegou até aqui?
Lys, sentada numa ampla almofada e apertando ao corpo o
sobretudo, olhava para um e para o outro, aparentemente
calma.
- Segui o seu percurso. Falei com o cego que me deu o
nome. Depois foi fácil. A ordem que me deu pelo telefone,
para eu estar quieto, não era para respeitar, como deve ter
calculado. Os crimes estão esclarecidos. O Bone explodiu
no gabinete do Inspector-Chefe. Julgo que era um dos
implicados.
- Continue...
- No seu apartamento encontraram-se elementos que
levarão, talvez neste momento, à prisão de um químico
chamado Boyle e que mora no Bronx. Bone passava droga e,
ultimamente, parecia andar muito assustado.
- Já sabia tudo isso, Bronco.
- Ah já?! Agora sou eu que lhe digo "curioso"...
E de novo o silêncio. Lys olhava agora fixamente para
O'Hara. Esperava, de maãos nos bolsos do sobretudo.
- Então, Chefe. Leva-a ou não?
O'Hara respirou fundo e disse, baixinho:
- Não.
- Não sei se estou a perceber.
- Julgo que está a perceber. Eu e ela vamos desaparecer
da circulação... recuperar quinze anos da nossa vida.
Recuperá-la completamente.
- Não, Chefe. Não vão desaparecer. Tenho obrigação de a
prender. Depois já não é comigo.
- Não, Bronco Vale. Você apenas quer é o nome nos joanais
e nas televisões. Você continua a ser um puto que pouco
ou nada sabe da vida. Julga que sabe, lá por ter andado na
guerra, mas não sabe. Todos os homens que andaram na
guerra julgam saber mais do que os outros, como se a
guerra fosse uma universidade. Também andei na guerra
e não sei nada. Vocês também não sabem mais, por vezes
até sabem menos.
Olhou com ternura para Lys e continuou:
- Neste caso, vai ficar quietinho e voltar para o seu
escritório. Os crimes acabaram. Já não há Bone e o
químico não se deixará prender. De Maureen não há
rasto, nem qualquer denúncia ou documento ou prova. Só
há você, que vai ser um bom menino e esquecer o que viu
e que encontrou Maureen.
- Porquê?
- Porque assim será melhor para a minha vida e... para
a dela.
- Já se esqueceu dos seus agentes mortos?
- Linda Marlowe já não teria esquecido o marido?
- Velho esperto! Por acaso já está a esquecer... já não tenho
cliente para representar. Mas, quer você deixe quer não,
vou levar a dama comigo... e agora.
Três factos se passaram então em fracções de segundo: dois
movimentos e um disparo.
Bronco faz um gesto na direcção a Lys, ao mesmo tempo que
O'Hara avança, colocando-se à sua frente, para o impedir de
continuar e recebendo, nas costas, a bala que Lys endereçara,
com determinação, ao detective particular.
O'Hara cai, devagar, segurado pelos braços de Bronco. Lys
abraçase no chão a O'Hara, enquanto Bronco permanece
estupidificado, sem saber o que fazer.
- Querido! Meu amor!
- Lys... minha amante antiga... não vou morrer... esse estúpido...
não vai destruir a nossa... felicidade... o nosso encontro, a
nossa vida...
Estremece nos braços de Lys, junto ao seu corpo nu, golfando
sobre ele o seu sangue quente. O'Hara morre.
Lys gritou. Não um grito histérico, ou de medo, ou de vingança.
Apenas um grito, como se lhe tivessem partido as cordas
ocultas da vida. Levanta-se então lentamente. Mete a mão no
bolso do sobretudo e volta a disparar, caindo-lhe o olho
artificial, devido às lágrimas.
Bronco, atónito com toda aquela cena, não teve reflexos para
impedir ou para fugir ao disparo, que lhe atravessou o ombro
direito e o derrubou, a um metro de O'Hara.
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(De Ed B. Silverman. Termina amanhã a novela.)
Monday, April 10, 2006
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