Mão amiga ofereceu-me “Alentejo sem Fim”, livro de contos de João Luís Nabo.
Se outro mérito não tivesse, este livrinho fez-me recordar dois bons amigos já na outra margem do rio: Antunes da Silva e Manuel da Fonseca.
O livro foi de estreia (2004) e não conheço mais nada do escritor. Ele foi-me oferecido pelo título, pois que troquei, com grande felicidade, décadas de cidade por um pequeno monte alentejano equidistante de Évora e de Montemor.
Os contos (editados pela Editorial Tágide):
Certa estrutura de alguns contos fazem-me lembrar O.Henri – e isto é positivo. O conto “As Botas de Cristal” é bonito e, por isso, falso. Lastimo (e possivelmente o autor também) que tudo nele seja mentira: o mestre sapateiro chamado Celestino, o professor Abílio, o padre Elias e até os dois miúdos não existem na vida real. Infelizmente.
“A Aposta” tem um enredo que, há cerca de 20 anos, meu pai me contou. Passava-se, na sua versão, com um estudante de Coimbra, ficando a capa presa pelo prego na porta da igreja. Não tem mal algum. Antes João Luís Nabo dar-lhe letra de forma e estrutura escorreita (como está) do que andar como estorinha pelas bocas do mundo a entreter serões bocejantes nas salas de estar.
Se me fosse dada a missão de escolher, entre eles, um único para concurso literário, não hesitava n’ “O Funeral de Dona Capitolina”, pelo tema e pela forma cuidada com que está desenvolvido. Um bom conto.
Uma boa short story é “O Diário”. Talvez o final contrapontista do autor fosse desnecessário, por demasiados lugares comuns.Talvez.
É, pois, um livro que se lê com muito agrado. Gostava de ler mais obras do autor. Tenho sempre medo de obras únicas promissoras, como “Nós matámos o cão tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana.
A capa. É verdade, a capa.
Parece-me que a janela tem caixilharia em alumínio anodizado. Será?
Se é realmente alumínio, então o livro poderia chamar-se “Alentejo com fim à vista”.
Monday, December 31, 2007
Friday, December 14, 2007
VOCÊS ESCOLHEM O FINAL
O SAXOFONISTA
O Cláudio trabalhava numa firma de distribuição de correio e de encomendas mas sempre que tinha um tempinho livre, ia com o seu saxofone para o pé do Joelzinho, um mendigo do bairro, andrajoso e com as pernas torcidas como se as tivessem partido quando estava numa posição do Yoga. O Joelzinho era muito estimado no bairro mas Cláudio, por ser pobre, pouco o podia ajudar. Só tocando.
O Cláudio trabalhava numa firma de distribuição de correio e de encomendas mas sempre que tinha um tempinho livre, ia com o seu saxofone para o pé do Joelzinho, um mendigo do bairro, andrajoso e com as pernas torcidas como se as tivessem partido quando estava numa posição do Yoga. O Joelzinho era muito estimado no bairro mas Cláudio, por ser pobre, pouco o podia ajudar. Só tocando.
Ele sentava-se ao pé de uma grande árvore e estendia a mão.
O saxofonista amador punha-se então sentado a seu lado, num tronco horizontal da árvore e tocava. Nesses dias a receita do Joelzinho subia em flecha. Não podia era ser em todos.
Uma tarde de dueto – um pedia e o outro tocava -, disse o Joelzinho:
- Você, Cláudio, não pode tocar outras coisas?
- Não gosta do meu reportório?
- Não é isso.
- Então o que é?
- Está aqui um gajo, todo empenado, que só ouve do ouvido esquerdo, e você senta-se ao lado desse ouvido e toca invariavelmente as mesmas coisas… podia, ao menos, tocar do lado do outro…ou mudar de reportório…
Cláudio pensou, olhando para o instrumento. Depois disse:
- Eu já toquei o concerto para saxofone e orquestra de Aaron Copland, nos bons tempos…
- Você desculpe-me, Cláudio, mas o Aaron Copland nunca escreveu um concerto para saxofone e orquestra.
- Como é que você sabe, Joelzinho?
- Eu fui professor de Música.
- Foi professor de Música?! Você?!
- Não foi bem de música… fui professor de História da Música…
- Você foi professor de História da Música e está aqui a pedir esmola?!
O saxofone também olhou, admirado.
- É.
- Conte lá, puxa! Como é que você chegou até aqui.
- É simpático da sua parte não dizer “desceu até aqui”. Mas o caso ou acaso é que…
Meteu a mão no esfarrapado casaco e tirou uma pastilha de mentol. Com a mão boa, desembrulhou-a e meteu-a na boca. Chupou um bocadinho e contou:
- Dava aulas e apaixonei-me por uma aluna muito mais nova. Gabriela. Foi uma paixão doida. Passámos a viver juntos e éramos muito felizes. Depois tive um acidente de viação. Fiquei todo quebrado e ela morreu. Levei seis meses no hospital para recuperar… recuperar isto que você vê. Mas tive logo que fugir no dia da alta do hospital pois o pai da Grabriela queria matar-me. Não o podia enquanto eu estava rodeado de médicos, enfermeiros e seguranças. Mas depois podia. O hospital está a mais de mil e quinhentos quilómetros daqui. Vim com o dinheiro do seguro que logo acabou.
- Essa é obra, amigo! Há quanto tempo foi isso? O desastre.
- Há oito anos, 4 meses e seis dias.
- E a culpa foi sua?
- Foi de ambos. Estávamo-nos a beijar.
- Áh!
- Sei que ele tem vindo atrás do meu rasto. Um dia apanha-me.
- Nem pense isso! Ele já se esqueceu.
- Ele era de ideias fixas como um touro e disse uma coisa em que acreditei: “Eu vou até ao fim do mundo para o liquidar!” Não disse “matar”. Disse “liquidar”, o que demonstra muito mais determinação.
O Cláudio tinha de fazer e viu também que o concerto de hoje já estava estragado. Abriu o estojo e guardou o saxofone. Levantou-se e sacudiu as calças das notas que tinham caído do instrumento e que, por isso, não foram tocadas. Depois pisou-as sem dar por isso.
Foi quando o Joelzinho se agitou e disse alto:
- E é precisamente hoje.
O saxofonista viu logo um homem possante a aproximar-se deles com uma carabina na mão.
- É o pai da Gabriela – disse o Joelzinho, sem necessidade.
1º. Final
Imediatamente o Cláudio se pôs à sua frente, enquanto o outro disparava. Caíram. O povo da rua agarrou o homem e desarmou-o, esperando pela polícia.
Joelzinho estava vivo mas não se podia mexer com o peso do Cláudio em cima dele.
Porque o saxofonista estava morto com um tiro em pleno peito.
2º. Final
Imediatamente o Cláudio se pôs à sua frente, com o estojo contra o peito seguro pelas duas mãos. O touro disparou e o Cláudio caiu sobre o Joelzinho. O povo da rua agarrou o homem e desarmou-o, esperando pela polícia.
Joelzinho estava vivo mas não se podia mexer com o peso do Cláudio em cima dele. Cláudio então levantou-se a custo, olhando horrorizado para o estojo desfeito e o saxofone furado pela bala que era para Joelzinho.
Ficou vivo mas sem saxofone.
O saxofonista amador punha-se então sentado a seu lado, num tronco horizontal da árvore e tocava. Nesses dias a receita do Joelzinho subia em flecha. Não podia era ser em todos.
Uma tarde de dueto – um pedia e o outro tocava -, disse o Joelzinho:
- Você, Cláudio, não pode tocar outras coisas?
- Não gosta do meu reportório?
- Não é isso.
- Então o que é?
- Está aqui um gajo, todo empenado, que só ouve do ouvido esquerdo, e você senta-se ao lado desse ouvido e toca invariavelmente as mesmas coisas… podia, ao menos, tocar do lado do outro…ou mudar de reportório…
Cláudio pensou, olhando para o instrumento. Depois disse:
- Eu já toquei o concerto para saxofone e orquestra de Aaron Copland, nos bons tempos…
- Você desculpe-me, Cláudio, mas o Aaron Copland nunca escreveu um concerto para saxofone e orquestra.
- Como é que você sabe, Joelzinho?
- Eu fui professor de Música.
- Foi professor de Música?! Você?!
- Não foi bem de música… fui professor de História da Música…
- Você foi professor de História da Música e está aqui a pedir esmola?!
O saxofone também olhou, admirado.
- É.
- Conte lá, puxa! Como é que você chegou até aqui.
- É simpático da sua parte não dizer “desceu até aqui”. Mas o caso ou acaso é que…
Meteu a mão no esfarrapado casaco e tirou uma pastilha de mentol. Com a mão boa, desembrulhou-a e meteu-a na boca. Chupou um bocadinho e contou:
- Dava aulas e apaixonei-me por uma aluna muito mais nova. Gabriela. Foi uma paixão doida. Passámos a viver juntos e éramos muito felizes. Depois tive um acidente de viação. Fiquei todo quebrado e ela morreu. Levei seis meses no hospital para recuperar… recuperar isto que você vê. Mas tive logo que fugir no dia da alta do hospital pois o pai da Grabriela queria matar-me. Não o podia enquanto eu estava rodeado de médicos, enfermeiros e seguranças. Mas depois podia. O hospital está a mais de mil e quinhentos quilómetros daqui. Vim com o dinheiro do seguro que logo acabou.
- Essa é obra, amigo! Há quanto tempo foi isso? O desastre.
- Há oito anos, 4 meses e seis dias.
- E a culpa foi sua?
- Foi de ambos. Estávamo-nos a beijar.
- Áh!
- Sei que ele tem vindo atrás do meu rasto. Um dia apanha-me.
- Nem pense isso! Ele já se esqueceu.
- Ele era de ideias fixas como um touro e disse uma coisa em que acreditei: “Eu vou até ao fim do mundo para o liquidar!” Não disse “matar”. Disse “liquidar”, o que demonstra muito mais determinação.
O Cláudio tinha de fazer e viu também que o concerto de hoje já estava estragado. Abriu o estojo e guardou o saxofone. Levantou-se e sacudiu as calças das notas que tinham caído do instrumento e que, por isso, não foram tocadas. Depois pisou-as sem dar por isso.
Foi quando o Joelzinho se agitou e disse alto:
- E é precisamente hoje.
O saxofonista viu logo um homem possante a aproximar-se deles com uma carabina na mão.
- É o pai da Gabriela – disse o Joelzinho, sem necessidade.
1º. Final
Imediatamente o Cláudio se pôs à sua frente, enquanto o outro disparava. Caíram. O povo da rua agarrou o homem e desarmou-o, esperando pela polícia.
Joelzinho estava vivo mas não se podia mexer com o peso do Cláudio em cima dele.
Porque o saxofonista estava morto com um tiro em pleno peito.
2º. Final
Imediatamente o Cláudio se pôs à sua frente, com o estojo contra o peito seguro pelas duas mãos. O touro disparou e o Cláudio caiu sobre o Joelzinho. O povo da rua agarrou o homem e desarmou-o, esperando pela polícia.
Joelzinho estava vivo mas não se podia mexer com o peso do Cláudio em cima dele. Cláudio então levantou-se a custo, olhando horrorizado para o estojo desfeito e o saxofone furado pela bala que era para Joelzinho.
Ficou vivo mas sem saxofone.
(Estorinha inédita. Ilustração do site gifmania.com.pt)
Saturday, December 08, 2007
SANDOKAN, O TIGRE DA MALÁSIA
Andávamos a preparar há um mês o primeiro folhetim radiofónico da Rádio Moçambique. Várias sugestões foram consideradas, ponderadas, relidas. A nossa memória foi buscar ao sótão, entre poeiras e teias de aranha, logo à entrada, Ponson du Terrail, Victor Hugo, o pai e o filho Dumas, Jules Verne, além de outros. No meio ou entretanto, vinham achegas de todos os lados, sugestões, pareceres, e perguntas. Muitas. Tema moderno ou antigo? Político ou aventuroso? Com muitos beijos à mistura como nos filmes de aventuras ou não?
Finalmente, fizemos uma ampla lista que apresentámos vaidosos à consideração superior. Tendo ela decidido e bem por uma obra e autor não citados na longa e estafante lista: Sandokan, O Tigre da Malásia, de Emílio Salgari.
Toda a equipa ficou tão contente com esta escolha como se tivesse de novo descoberto a penicilina. Possuía tudo o que era necessário; todos os ingredientes clássicos e imortais: amor, intriga, ciúme, traição, morte, luta contra os poderosos, combates marítimos, tiros, beijos, arrebatamentos patrióticos e amorosos, tendo até um toque de cultura ocidental com a Pérola de Labuan, uma menina inglesa de alta estirpe e estonteante beleza, a estudar o Fur Elise, de Beethoven, no piano que havia na mansão do governador inglês. Querem melhor?
Reuniu-se então uma equipa para fazer a adaptação, nela figurando o poeta e jornalista Leite Vasconcelos que, com muito humor, dizia que pertencia à Frelima, a Frente de Libertação da Malásia. Por esta sua graça, foi-lhe atribuído o papel de Lord Brooks, que desempenhou com muita elegância e, obviamente, “british style”.
Muitas e interessantes situações ocorreram durante as gravações mas uma das mais relevantes foi a fuga pela floresta de Sandokan, seguido de perto, se bem me lembro, por Tremal-Naik. Ele, para conseguir correr, tinha de abrir caminho à catanada à direita e à esquerda, vigorosamente. Fomos então gravar, comandados pelo sonoplasta Carlos Silva, para a zona de eucaliptos nos terrenos da Feira Internacional. Aliás, do outro lado da rua. Então, o que é que o povo viu, parado, espantado, confuso e boquiaberto? Um respeitável senhor de cabelo branco, à frente, com um ferro na mão a dar pancada nas árvores à direita e à esquerda, um técnico de som a captar com um gravador portátil, um ajudante e, a fechar, o realizador. Todos berravam, arfavam, corriam às voltas das árvores e suavam… As pessoas assistiam e por certo pensavam que éramos doidos ou que se tratava do ritual de uma nova seita contra a natureza, pois pancada nas árvores não faltava.
Um menino dos seus dez anos que vinha pelo trilho dos eucaliptos com uma gaiola de pássaros na mão, estava estático, sem saber se deveria agachar-se para não ser visto ou atirar a gaiola fora e desatar a fugir com quanta força tivesse. E os olhos dele por certo já tinham visto muita coisa ruim.
Conseguimos fazer a gravação antes da chegada da polícia.
Contudo, a mais “significativa” situação passou-se no último andar da Rádio Moçambique: no enorme salão de festas, que permitiu a gravação de um som necessário ao longo de vários episódios, principalmente nas abordagens e no final das reuniões com Sandokan. Como se necessitava de muitas vozes (não sabíamos ao certo quantas pessoas levava um parau), o mesmo sonoplasta já referido foi buscar todo o pessoal masculino da discoteca, mais os companheiros que foi encontrando pelo caminho. No final eram cerca de 30 ou mais os tigres que, bem-dispostos, fizeram a abordagem ao salão de festas.
Estes candidatos a lugar-tenente de Sandokan, tinham de berrar várias vezes, a plenos pulmões, “Morte aos Ingleses”, com mais gana e força que o povo português nas ruas, em 1891, aquando do ultimato.
E começou-se a gravação, com várias repetições, como sempre acontece. Estava tudo a ir bem quando alguém se lembrou de que tínhamos as janelas todas abertas, para não haver eco, e do outro lado da rua estavam os Ingleses, por certo a tomar chá gelado na sua Embaixada, rodeada de jardins copiados de Kensington. Parámos precisamente quando à porta surgiu a cabeça de um segurança, com a arma na mão, a olhar espantado e ofegante para nós. Tinha ouvido, no piso térreo, os nossos berros e subido as escadas a correr.
Explicámos o que se passava e o porquê daquela gritaria. Compreendeu perfeitamente, mas afastou-se a abanar a cabeça e a murmurar: “Morte aos Ingleses? Porquê?”
Finalmente, fizemos uma ampla lista que apresentámos vaidosos à consideração superior. Tendo ela decidido e bem por uma obra e autor não citados na longa e estafante lista: Sandokan, O Tigre da Malásia, de Emílio Salgari.
Toda a equipa ficou tão contente com esta escolha como se tivesse de novo descoberto a penicilina. Possuía tudo o que era necessário; todos os ingredientes clássicos e imortais: amor, intriga, ciúme, traição, morte, luta contra os poderosos, combates marítimos, tiros, beijos, arrebatamentos patrióticos e amorosos, tendo até um toque de cultura ocidental com a Pérola de Labuan, uma menina inglesa de alta estirpe e estonteante beleza, a estudar o Fur Elise, de Beethoven, no piano que havia na mansão do governador inglês. Querem melhor?
Reuniu-se então uma equipa para fazer a adaptação, nela figurando o poeta e jornalista Leite Vasconcelos que, com muito humor, dizia que pertencia à Frelima, a Frente de Libertação da Malásia. Por esta sua graça, foi-lhe atribuído o papel de Lord Brooks, que desempenhou com muita elegância e, obviamente, “british style”.
Muitas e interessantes situações ocorreram durante as gravações mas uma das mais relevantes foi a fuga pela floresta de Sandokan, seguido de perto, se bem me lembro, por Tremal-Naik. Ele, para conseguir correr, tinha de abrir caminho à catanada à direita e à esquerda, vigorosamente. Fomos então gravar, comandados pelo sonoplasta Carlos Silva, para a zona de eucaliptos nos terrenos da Feira Internacional. Aliás, do outro lado da rua. Então, o que é que o povo viu, parado, espantado, confuso e boquiaberto? Um respeitável senhor de cabelo branco, à frente, com um ferro na mão a dar pancada nas árvores à direita e à esquerda, um técnico de som a captar com um gravador portátil, um ajudante e, a fechar, o realizador. Todos berravam, arfavam, corriam às voltas das árvores e suavam… As pessoas assistiam e por certo pensavam que éramos doidos ou que se tratava do ritual de uma nova seita contra a natureza, pois pancada nas árvores não faltava.
Um menino dos seus dez anos que vinha pelo trilho dos eucaliptos com uma gaiola de pássaros na mão, estava estático, sem saber se deveria agachar-se para não ser visto ou atirar a gaiola fora e desatar a fugir com quanta força tivesse. E os olhos dele por certo já tinham visto muita coisa ruim.
Conseguimos fazer a gravação antes da chegada da polícia.
Contudo, a mais “significativa” situação passou-se no último andar da Rádio Moçambique: no enorme salão de festas, que permitiu a gravação de um som necessário ao longo de vários episódios, principalmente nas abordagens e no final das reuniões com Sandokan. Como se necessitava de muitas vozes (não sabíamos ao certo quantas pessoas levava um parau), o mesmo sonoplasta já referido foi buscar todo o pessoal masculino da discoteca, mais os companheiros que foi encontrando pelo caminho. No final eram cerca de 30 ou mais os tigres que, bem-dispostos, fizeram a abordagem ao salão de festas.
Estes candidatos a lugar-tenente de Sandokan, tinham de berrar várias vezes, a plenos pulmões, “Morte aos Ingleses”, com mais gana e força que o povo português nas ruas, em 1891, aquando do ultimato.
E começou-se a gravação, com várias repetições, como sempre acontece. Estava tudo a ir bem quando alguém se lembrou de que tínhamos as janelas todas abertas, para não haver eco, e do outro lado da rua estavam os Ingleses, por certo a tomar chá gelado na sua Embaixada, rodeada de jardins copiados de Kensington. Parámos precisamente quando à porta surgiu a cabeça de um segurança, com a arma na mão, a olhar espantado e ofegante para nós. Tinha ouvido, no piso térreo, os nossos berros e subido as escadas a correr.
Explicámos o que se passava e o porquê daquela gritaria. Compreendeu perfeitamente, mas afastou-se a abanar a cabeça e a murmurar: “Morte aos Ingleses? Porquê?”
(In TempoLivre, revista do Inatel. Ilustração do Google)
Wednesday, December 05, 2007
SERÁ PARA TODA A VIDA?
Um frigorífico novo é como uma nova paixão. Há pétalas de flores que pousam em nós, música ao longe com violinos, e borboletas que voam à nossa volta. Quando chegam amigos ou familiares, levam-se à cozinha e apresenta-se-lhes o novo habitante. Com vaidade. Abre-se-lhe a porta. Explica-se o que o vendedor explicou. Passa-se o antebraço pelo fecho para se lhe retirar as impressões digitais e dar-lhe mais forte brilho. Hein?! Um espanto, não é? Reparem como o espaço está todo aproveitado, como num ovo! E que bonito...olha aqui.
Um ano depois nem se lhe dá os bons-dias. E quando não há leite, ainda se lhe atira com a porta à cara. Por isso, quando me disseram que aquele frigorífico GE era “para toda a vida”, pensei “que desgraçado”. Ele e eu. Termo-nos de aturar toda a vida. Apesar disso, foi para nossa casa. E ele, calmo, bem-educado e bem-parecido, foi-se deixando ficar.
Os ciclos do frigorífico foram-se fazendo, tal como a vida foi correndo, as filhas nascendo e logo no dia seguinte pedindo dinheiro para cadernos, tempos em que acreditávamos nas estações do ano tal como Vivaldi. Depois uns saíram para ir ali, outros para ir acolá, novas vidas a construir-se em viveiros distantes, favos da mesma colmeia mas separados, não esquecendo, pelo meio, o inefável estudo de piano e as guerras em todo o lado.
Passados quarenta anos, continuava o frigorífico precisamente no mesmo sítio. Em algumas zonas com as marcas da idade: erupções castanhas na pele, fecho sem brilho prateado, marcas redondas na parte superior, onde jarras viveram bocejando, anos em equilíbrio estável mas por vezes trémulo. Mas não se queixava. Depois foi desligado da parede e a porta ficou dois dedos aberta “para arejar”. Assim ficou, com as entranhas às escuras e ele de braços caídos, espectante.
Quando uma das filhas disse que ia comprar um frigorífico, lembrei-lhe:
– Tens o da mamã.
– Está tão velho...
– Não trabalha?
– Muito bem, mesmo.
– Então...
E o frigorífico para toda a vida foi à oficina para automóveis do senhor João, numa localidade próxima de Frielas e este, com muita sabedoria e talvez um pouco de ternura (quero acreditar que sim), pintou-o como se fosse um automóvel. Ficou lindo. Novo. Sem rugas, brilhante. Uma plástica completa. Até se ria quando o fomos buscar.
Pois na nova casa da filha, ele passou a ser a estrela da companhia. Nem os móveis chineses rivalizavam com aquele old fashion frig. As visitas entravam na cozinha e ficavam paradas a olhar embevecidas e ele, qual mordomo inglês ou guarda da rainha, imperturbável, digno, mas sorrindo de contente.
De vez em quando eu tinha oportunidade de estar a sós com ele e dizia-lhe, fazendo-lhe uma festa cúmplice, estás bonito e trabalhas bem. E ele modestamente respondia-me, baixinho, faço o que posso...
A Terra deu mais umas voltas, talvez contrariada.
Vieram mais três guerras novas mas não se acabando senão com uma das antigas, que os fabricantes de armamento e os grandes políticos também têm de viver, coitados.
E o frigorífico para toda a vida, por razões várias, viajou para a Praia das Maçãs e ficou mudo e quedo na garagem de uma moradia, na companhia da tralha. Aquela que todos conhecemos. Perdeu então o seu porte erecto, digno. E, para não dar nas vistas, encolhia-se quando o carro entrava para se abrigar. Já não queria fazer-se notado e talvez pensasse que estava para breve o seu fim.
Foi quando a Terra deu mais umas voltas e se precisou no Alentejo de um frigorífico. Para mim. E foi com emoção que lhe fechei a porta na Praia das Maçãs, o embrulhei num enorme cobertor (daqueles que nos protegem dos raios) e o levei até um modesto e pequeno monte entre Évora e Montemor-o-Novo.
Está ali, na cozinha a olhar-me. Eu, aqui do computador, vejo-o de vez em quando estremecer. Não sei se é do final de um ciclo ou de prazer. Já nos conhecemos e estimamos há 48 anos. E penso às vezes que, quando a Terra der uma determinada volta e eu for obrigado a retirar-me, ele ficará ali ou para toda a vida ou aguardando que alguém lhe feche os olhos.
Monday, December 03, 2007
OS GRANDES SAFARIS AOS GALA-GALAS
A minha vizinha e amiga Leonor, ouvindo-me falar de olho a luzir em gala-galas, quis saber mais sobre o bicho. Escrevi este textinho que agora recuperei, porque estou numa da infância. Tende lá paciência!
Eu tinha oito anos e vivia com os meus irmãos mais velhos e com os pais em Lourenço Marques, antiga capital de Moçambique e às vezes eu ouvia eles dizerem que iam caçar gala-galas.
Ficava ansioso por os acompanhar, mas não me levavam. Eu era o mais novo e uma menina era a mais velha. Explico melhor: éramos quatro irmãos - e a mais velha era uma menina. Portanto, eu, o mais novo, era assim uma coisa, como um gato ou um cão, que se estima e a quem se faz festas e se dá beijinhos mas não importância.
Quando os gloriosos guerreiros voltavam dos safaris, eu ia ver o que tinham caçado e era sempre nada - e eu, por vingança, ficava todo contente.
Mas uma vez eles disseram “vem daí”, generosidade afectiva que bem me soube. E lá fui todo contente.
Ora bem. Primeiro, como se caça gala-galas? É importante que vocês saibam como é mas, primeiro que tudo, o que é um gala-gala?
Pois um gala-gala é um simpático lagarto de grande cabeça verde-azul, que atravessa as ruas a grande velocidade, que mantém sempre a cabeça bem erguida, como se fosse um bicho importante e que, se lhe cantarmos, ele dança todo contente. Não acreditam? É verdade!
Vamos então à caça.
Como se caça um gala-gala? Com uma sarabatana. Mas que coisa é essa? Fazemos assim: arranjamos uma cana direitinha, furamos os nós interiores com um arame ou um ferro, sopramos bem e temos o chamado tubo. Depois pedimos à mãe umas agulhas e arranjamos daquele papel muito fininho, papel de seda. Com bocadinhos deste papel fazemos cones muito bem enrolados e, na extremidade, põe-se a agulha. Era a “bala”.
Depois metia-se a “bala” no “cano” que, neste caso era a cana, e estávamos prontos a ir à guerra e a matar rinocerontes, leões e... os pobres gala-galas.
Como dispara? É assim: uma ponta da cana (a que tem lá dentro a “bala”) encosta-se à boca. A outra extremidade da cana aponta-se ao animal selvagem que queremos abater e, enchendo o peito de ar, sopramos com quanta força tenhamos. E lá vai a mortalha com a agulha na ponta, direita ao alvo. Não é verdade! Pelo menos no caso dos gala-galas, nunca ia direita ao alvo; nunca acertava!
Eu não tinha idade para possuir uma arma tão importante como uma sarabatana, mas fui todo contente com os meus irmãos.
Andámos pelos subúrbios toda a manhã, com os meus irmãos gesticulando para mim, impondo silêncio, caminhando devagar como os cães perdigueiros, “disparando balas mortíferas”, que voavam habilidosamente por entre as árvores sem atingir qualquer alvo, os gala-galas fugindo a rir como uns perdidos, e depois regressámos a casa sem glória nem troféus.
Fomos mais vezes. Várias vezes. Uma com dois vizinhos. Uma autêntica batida aos gala-galas. Um safari cuidadosamente preparado entre quinta-feira e sábado, com ensaio das sarabatanas, prática de tiro ao alvo e escolha criteriosa das melhores agulhas da nossa mãe e das mães dos outros corajosos caçadores. Escolheram-se canas, fizeram-se “balas” em quantidade, soprou-se a valer pelas canas. Uma aventura muito bem preparada. Ir-se-ia para mais longe nesse sábado: iríamos para a zona do Instituto de Meteorologia, onde, segundo um rapaz que era filho, precisamente, de um meteorologista, havia mais gala-galas do que em qualquer outro ponto de Moçambique.
Pois nada! Felizmente ninguém, alguma vez, caçou um gala-gala. Andámos lá até às tantas, não caçamos nada e, quando chegámos a casa mais tarde que tarde, não tivemos direito ao almoço, sábio castigo da mãe. Fim do grande safari!
(Pois, como já dissemos, o gala-gala dança. Se um grupo de crianças rodear um gala-gala e, ao ritmo de palmas, lhe cantar
“Gala-gala lhokuene
Gala-gala lhokuene”,
ele agitará o tronco de um lado para o outro e abanará a cabeça sempre bem levantada.)
Eu tinha oito anos e vivia com os meus irmãos mais velhos e com os pais em Lourenço Marques, antiga capital de Moçambique e às vezes eu ouvia eles dizerem que iam caçar gala-galas.
Ficava ansioso por os acompanhar, mas não me levavam. Eu era o mais novo e uma menina era a mais velha. Explico melhor: éramos quatro irmãos - e a mais velha era uma menina. Portanto, eu, o mais novo, era assim uma coisa, como um gato ou um cão, que se estima e a quem se faz festas e se dá beijinhos mas não importância.
Quando os gloriosos guerreiros voltavam dos safaris, eu ia ver o que tinham caçado e era sempre nada - e eu, por vingança, ficava todo contente.
Mas uma vez eles disseram “vem daí”, generosidade afectiva que bem me soube. E lá fui todo contente.
Ora bem. Primeiro, como se caça gala-galas? É importante que vocês saibam como é mas, primeiro que tudo, o que é um gala-gala?
Pois um gala-gala é um simpático lagarto de grande cabeça verde-azul, que atravessa as ruas a grande velocidade, que mantém sempre a cabeça bem erguida, como se fosse um bicho importante e que, se lhe cantarmos, ele dança todo contente. Não acreditam? É verdade!
Vamos então à caça.
Como se caça um gala-gala? Com uma sarabatana. Mas que coisa é essa? Fazemos assim: arranjamos uma cana direitinha, furamos os nós interiores com um arame ou um ferro, sopramos bem e temos o chamado tubo. Depois pedimos à mãe umas agulhas e arranjamos daquele papel muito fininho, papel de seda. Com bocadinhos deste papel fazemos cones muito bem enrolados e, na extremidade, põe-se a agulha. Era a “bala”.
Depois metia-se a “bala” no “cano” que, neste caso era a cana, e estávamos prontos a ir à guerra e a matar rinocerontes, leões e... os pobres gala-galas.
Como dispara? É assim: uma ponta da cana (a que tem lá dentro a “bala”) encosta-se à boca. A outra extremidade da cana aponta-se ao animal selvagem que queremos abater e, enchendo o peito de ar, sopramos com quanta força tenhamos. E lá vai a mortalha com a agulha na ponta, direita ao alvo. Não é verdade! Pelo menos no caso dos gala-galas, nunca ia direita ao alvo; nunca acertava!
Eu não tinha idade para possuir uma arma tão importante como uma sarabatana, mas fui todo contente com os meus irmãos.
Andámos pelos subúrbios toda a manhã, com os meus irmãos gesticulando para mim, impondo silêncio, caminhando devagar como os cães perdigueiros, “disparando balas mortíferas”, que voavam habilidosamente por entre as árvores sem atingir qualquer alvo, os gala-galas fugindo a rir como uns perdidos, e depois regressámos a casa sem glória nem troféus.
Fomos mais vezes. Várias vezes. Uma com dois vizinhos. Uma autêntica batida aos gala-galas. Um safari cuidadosamente preparado entre quinta-feira e sábado, com ensaio das sarabatanas, prática de tiro ao alvo e escolha criteriosa das melhores agulhas da nossa mãe e das mães dos outros corajosos caçadores. Escolheram-se canas, fizeram-se “balas” em quantidade, soprou-se a valer pelas canas. Uma aventura muito bem preparada. Ir-se-ia para mais longe nesse sábado: iríamos para a zona do Instituto de Meteorologia, onde, segundo um rapaz que era filho, precisamente, de um meteorologista, havia mais gala-galas do que em qualquer outro ponto de Moçambique.
Pois nada! Felizmente ninguém, alguma vez, caçou um gala-gala. Andámos lá até às tantas, não caçamos nada e, quando chegámos a casa mais tarde que tarde, não tivemos direito ao almoço, sábio castigo da mãe. Fim do grande safari!
(Pois, como já dissemos, o gala-gala dança. Se um grupo de crianças rodear um gala-gala e, ao ritmo de palmas, lhe cantar
“Gala-gala lhokuene
Gala-gala lhokuene”,
ele agitará o tronco de um lado para o outro e abanará a cabeça sempre bem levantada.)
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