Saturday, December 08, 2007

SANDOKAN, O TIGRE DA MALÁSIA

Andávamos a preparar há um mês o primeiro folhetim radiofónico da Rádio Moçambique. Várias sugestões foram consideradas, ponderadas, relidas. A nossa memória foi buscar ao sótão, entre poeiras e teias de aranha, logo à entrada, Ponson du Terrail, Victor Hugo, o pai e o filho Dumas, Jules Verne, além de outros. No meio ou entretanto, vinham achegas de todos os lados, sugestões, pareceres, e perguntas. Muitas. Tema moderno ou antigo? Político ou aventuroso? Com muitos beijos à mistura como nos filmes de aventuras ou não?
Finalmente, fizemos uma ampla lista que apresentámos vaidosos à consideração superior. Tendo ela decidido e bem por uma obra e autor não citados na longa e estafante lista: Sandokan, O Tigre da Malásia, de Emílio Salgari.
Toda a equipa ficou tão contente com esta escolha como se tivesse de novo descoberto a penicilina. Possuía tudo o que era necessário; todos os ingredientes clássicos e imortais: amor, intriga, ciúme, traição, morte, luta contra os poderosos, combates marítimos, tiros, beijos, arrebatamentos patrióticos e amorosos, tendo até um toque de cultura ocidental com a Pérola de Labuan, uma menina inglesa de alta estirpe e estonteante beleza, a estudar o Fur Elise, de Beethoven, no piano que havia na mansão do governador inglês. Querem melhor?
Reuniu-se então uma equipa para fazer a adaptação, nela figurando o poeta e jornalista Leite Vasconcelos que, com muito humor, dizia que pertencia à Frelima, a Frente de Libertação da Malásia. Por esta sua graça, foi-lhe atribuído o papel de Lord Brooks, que desempenhou com muita elegância e, obviamente, “british style”.
Muitas e interessantes situações ocorreram durante as gravações mas uma das mais relevantes foi a fuga pela floresta de Sandokan, seguido de perto, se bem me lembro, por Tremal-Naik. Ele, para conseguir correr, tinha de abrir caminho à catanada à direita e à esquerda, vigorosamente. Fomos então gravar, comandados pelo sonoplasta Carlos Silva, para a zona de eucaliptos nos terrenos da Feira Internacional. Aliás, do outro lado da rua. Então, o que é que o povo viu, parado, espantado, confuso e boquiaberto? Um respeitável senhor de cabelo branco, à frente, com um ferro na mão a dar pancada nas árvores à direita e à esquerda, um técnico de som a captar com um gravador portátil, um ajudante e, a fechar, o realizador. Todos berravam, arfavam, corriam às voltas das árvores e suavam… As pessoas assistiam e por certo pensavam que éramos doidos ou que se tratava do ritual de uma nova seita contra a natureza, pois pancada nas árvores não faltava.
Um menino dos seus dez anos que vinha pelo trilho dos eucaliptos com uma gaiola de pássaros na mão, estava estático, sem saber se deveria agachar-se para não ser visto ou atirar a gaiola fora e desatar a fugir com quanta força tivesse. E os olhos dele por certo já tinham visto muita coisa ruim.
Conseguimos fazer a gravação antes da chegada da polícia.
Contudo, a mais “significativa” situação passou-se no último andar da Rádio Moçambique: no enorme salão de festas, que permitiu a gravação de um som necessário ao longo de vários episódios, principalmente nas abordagens e no final das reuniões com Sandokan. Como se necessitava de muitas vozes (não sabíamos ao certo quantas pessoas levava um parau), o mesmo sonoplasta já referido foi buscar todo o pessoal masculino da discoteca, mais os companheiros que foi encontrando pelo caminho. No final eram cerca de 30 ou mais os tigres que, bem-dispostos, fizeram a abordagem ao salão de festas.
Estes candidatos a lugar-tenente de Sandokan, tinham de berrar várias vezes, a plenos pulmões, “Morte aos Ingleses”, com mais gana e força que o povo português nas ruas, em 1891, aquando do ultimato.
E começou-se a gravação, com várias repetições, como sempre acontece. Estava tudo a ir bem quando alguém se lembrou de que tínhamos as janelas todas abertas, para não haver eco, e do outro lado da rua estavam os Ingleses, por certo a tomar chá gelado na sua Embaixada, rodeada de jardins copiados de Kensington. Parámos precisamente quando à porta surgiu a cabeça de um segurança, com a arma na mão, a olhar espantado e ofegante para nós. Tinha ouvido, no piso térreo, os nossos berros e subido as escadas a correr.
Explicámos o que se passava e o porquê daquela gritaria. Compreendeu perfeitamente, mas afastou-se a abanar a cabeça e a murmurar: “Morte aos Ingleses? Porquê?”

(In TempoLivre, revista do Inatel. Ilustração do Google)

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