Wednesday, December 05, 2007

SERÁ PARA TODA A VIDA?


Um frigorífico novo é como uma nova paixão. Há pétalas de flores que pousam em nós, música ao longe com violinos, e borboletas que voam à nossa volta. Quando chegam amigos ou familiares, levam-se à cozinha e apresenta-se-lhes o novo habitante. Com vaidade. Abre-se-lhe a porta. Explica-se o que o vendedor explicou. Passa-se o antebraço pelo fecho para se lhe retirar as impressões digitais e dar-lhe mais forte brilho. Hein?! Um espanto, não é? Reparem como o espaço está todo aproveitado, como num ovo! E que bonito...olha aqui.
Um ano depois nem se lhe dá os bons-dias. E quando não há leite, ainda se lhe atira com a porta à cara. Por isso, quando me disseram que aquele frigorífico GE era “para toda a vida”, pensei “que desgraçado”. Ele e eu. Termo-nos de aturar toda a vida. Apesar disso, foi para nossa casa. E ele, calmo, bem-educado e bem-parecido, foi-se deixando ficar.
Os ciclos do frigorífico foram-se fazendo, tal como a vida foi correndo, as filhas nascendo e logo no dia seguinte pedindo dinheiro para cadernos, tempos em que acreditávamos nas estações do ano tal como Vivaldi. Depois uns saíram para ir ali, outros para ir acolá, novas vidas a construir-se em viveiros distantes, favos da mesma colmeia mas separados, não esquecendo, pelo meio, o inefável estudo de piano e as guerras em todo o lado.
Passados quarenta anos, continuava o frigorífico precisamente no mesmo sítio. Em algumas zonas com as marcas da idade: erupções castanhas na pele, fecho sem brilho prateado, marcas redondas na parte superior, onde jarras viveram bocejando, anos em equilíbrio estável mas por vezes trémulo. Mas não se queixava. Depois foi desligado da parede e a porta ficou dois dedos aberta “para arejar”. Assim ficou, com as entranhas às escuras e ele de braços caídos, espectante.
Quando uma das filhas disse que ia comprar um frigorífico, lembrei-lhe:
– Tens o da mamã.
– Está tão velho...
– Não trabalha?
– Muito bem, mesmo.
– Então...
E o frigorífico para toda a vida foi à oficina para automóveis do senhor João, numa localidade próxima de Frielas e este, com muita sabedoria e talvez um pouco de ternura (quero acreditar que sim), pintou-o como se fosse um automóvel. Ficou lindo. Novo. Sem rugas, brilhante. Uma plástica completa. Até se ria quando o fomos buscar.
Pois na nova casa da filha, ele passou a ser a estrela da companhia. Nem os móveis chineses rivalizavam com aquele old fashion frig. As visitas entravam na cozinha e ficavam paradas a olhar embevecidas e ele, qual mordomo inglês ou guarda da rainha, imperturbável, digno, mas sorrindo de contente.
De vez em quando eu tinha oportunidade de estar a sós com ele e dizia-lhe, fazendo-lhe uma festa cúmplice, estás bonito e trabalhas bem. E ele modestamente respondia-me, baixinho, faço o que posso...
A Terra deu mais umas voltas, talvez contrariada.
Vieram mais três guerras novas mas não se acabando senão com uma das antigas, que os fabricantes de armamento e os grandes políticos também têm de viver, coitados.
E o frigorífico para toda a vida, por razões várias, viajou para a Praia das Maçãs e ficou mudo e quedo na garagem de uma moradia, na companhia da tralha. Aquela que todos conhecemos. Perdeu então o seu porte erecto, digno. E, para não dar nas vistas, encolhia-se quando o carro entrava para se abrigar. Já não queria fazer-se notado e talvez pensasse que estava para breve o seu fim.
Foi quando a Terra deu mais umas voltas e se precisou no Alentejo de um frigorífico. Para mim. E foi com emoção que lhe fechei a porta na Praia das Maçãs, o embrulhei num enorme cobertor (daqueles que nos protegem dos raios) e o levei até um modesto e pequeno monte entre Évora e Montemor-o-Novo.
Está ali, na cozinha a olhar-me. Eu, aqui do computador, vejo-o de vez em quando estremecer. Não sei se é do final de um ciclo ou de prazer. Já nos conhecemos e estimamos há 48 anos. E penso às vezes que, quando a Terra der uma determinada volta e eu for obrigado a retirar-me, ele ficará ali ou para toda a vida ou aguardando que alguém lhe feche os olhos.

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