O meu quarto tem uma parede totalmente ocupada por uma
paisagem de ulmeiros, o que lhe empresta uma maior profundidade.
Ela está coberta com um papel que a minha senhoria não se recorda
se veio da Suíça se dos Estados Unidos da América.
Quando vim ver o quarto para "alugar a um estudante", como rezava
o anúncio do jornal, com serventia de cozinha e de casa de banho, fiquei
imediatamente preso à paisagem da parede. Não me recordo bem se fui
respondendo à senhora em termos convenientes, mas sei que o aluguei
imediatamente. E logo fiquei ansioso por me mudar para lá, sem qualquer
outra explicação a não ser aquela parede. A minha idade e a seriedade do
meu comportamento devem ter determinado a rápida aceitação da minha
candidatura a inquilino.
Agora é aqui que passo grande parte do meu tempo, a descansar, a
olhar para a paisagem ou a ler.
A paisagem representa o Outono. Há, para venda, segundo a senhoria,
as quatro estações do ano, mas ela tinha decidido comprar o Outono talvez
por se conjugar melhor com a sua actual idade e estado de espírito. Do outro lado
da paisagem, na parede em frente dela, está a minha cama. No centro uma mesa
redonda onde, por vezes, como e estudo. A disposição do quarto é, pois, assim:
quando se entra, à esquerda está a paisagem ocupando, do chão ao tecto, toda a
parede. Em frente uma janela de correr com varanda envidraçada, seguida de
parede. À direita a cama, encostada a um pequeno roupeiro. Na parede onde habita
a porta, encontra-se uma pequena mesa com um receptor de televisão e uma
aparelhagem de rádio e de cêdês. Por cima uma estante. A janela de correr,
que dá para uma varanda, tem vidros duplos, o que me permite receber os ruídos
distantes de maneira diluída, quase divina, adivinhatória.
Aqui construí o meu universo. Com apenas três disciplinas para fazer, a fim de
completar tardiamente um curso iniciado há vinte anos, a fatia grande do tempo é
passada no quarto onde, suave mas diariamente, vai crescendo a minha solidão.
Uma solidão tão física, tão sólida, tão concreta que, muitas vezes, para me
movimentar, tenho de a empurrar para que me deixe passar em paz e sem
atritos e feridas inúteis.
Vivo aqui vai já para dez anos. Aluguei o quarto para um ano e três disciplinas
universitárias e fui-me deixando ficar para contentamento dos três: da senhora, de
mim e do quarto que, agora, já está calmo e sem muitas vibrações negativas. Julgo
mesmo que começou a gostar de mim a partir do momento em que afirmei alugá-lo.
Como o vale entre os seios de uma mulher, os ulmeiros descem por duas ravinas
e encontram-se em baixo, num estreito carreiro - talvez um leito já seco de ribeira.
As folhas, nas extremidades das ramadas, apresentam-se com aquele castanho-
-dourado tão belo, quando o Sol está prestes a pôr-se ou a erguer-se. A perspectiva
está num plongé não muito pronunciado, o que atira o caminho para um fundo
invisível, indescoberto. Um caminho que vem ao nosso encontro mas do qual não
divisamos a procedência. Parece e é o términus natural das duas colinas acastanhadas
pela terra e pelas folhas dos ulmeiros. Pela claridade entre as ramadas, adivinha-se
que o Sol estará à direita, para lá da nossa visão e os seus raios atravessam os
intervalos entre os ramos, diminuindo de intensidade para Oeste, já que considero
que o Norte se encontra ao centro, entre a parede e o tecto. E o Sol emerge de Oriente
todas as manhãs quando acordo. E ali fica, a meio caminho. Não indiferente; apenas
aguardando.
Deitado a ler, tenho sempre perante mim aquela paisagem grandiosa e vivida.
Habituei-me muito a ela e, à noite, já não fecho totalmente as cortinas, para que ela
receba a ténue claridade que vem do exterior. Fico deitado horas e horas a olhar para
esta paisagem. É uma atracção a que não desejo fugir; pelo contrário, pretendo
entregar-me a ela de corpo e alma. A nossa identificação foi total quando, num dia de
forte ventania no exterior, os ulmeiros começaram a abanar ligeiramente e eu vi algumas
folhas caírem por entre as ramadas e sobre o caminho. Contrariado, pensei no trabalho
que iria ter no dia seguinte para recolher todas aquelas folhas velhas, antes mesmo de
ter compreendido que os ulmeiros abanavam com o vento, apenas para me saudar.
Muitas vezes, deitado, olho para o fundo impronunciado do carreiro e imagino
ver a minha vizinha atravessar a parede para me cumprimentar e perguntar como vão
os estudos, pois eu sabia já que alguém viria um dia por aquele caminho estreito por
entre os ulmeiros. Sabia e aguardava. Todas as noites esperava que tal acontecesse.
Foram muitas em que não me dormi, esperando. Uma noite ocorreu-me dar um pouco
de música àquela paisagem tão identificada comigo, que já estava interiorizada, que já
pertencia ao meu passado e presente, sem contudo lhe adivinhar o futuro. Procurei e
encontrei As quatro estações, de Vivaldi, interpretação da Orquestra de Câmara de
Wurttemberg, dirigida por Jorg Faerber. Coloquei o Outono. Deitei-me a olhar a
paisagem e começaram todos a aparecer. Os dançarinos, eles e elas, a bailar pelas
colinas abaixo, de maneira festiva e alegre. E continuei a ver os bêbados a dormir e
depois os caçadores, num allegro bem sentido. Coloquei outra vez a suite e fui ter com
os bailarinos, os bêbados e com os caçadores e diverti-me com eles, e bebi com eles,
tanto que o dia nasceu comigo a dormir sobre o tapete do quarto. Inexplicavelmente,
não havia em qualquer lugar vestígios daquela orgia nem da caçada.
E o que eu esperava, já com ansiedade, aconteceu então.
A partir daquela noite festiva, comecei a ser visitado por vários amigos e familiares.
Estou deitado a ler e oiço um pequeno restolho e passos ligeiros pelo caminho, olho e
vejo quem se aproxima, me cumprimenta e pára para falar comigo. Algumas pessoas
vêm para me ralhar e atezanar a tranquilidade. Umas falam de amor. Outras não.
Algumas vêm apenas para conversar ou ver-me. Uma noite pensei: "de que maneira
me verão? Que imagem lhes estarei a dar?" Então agora, quando alguém chega,
sento-me na cama frente aos ulmeiros. Assim ficarei mais educado, mais civilizado a
falar-lhes. Passo também as mãos pelo cabelo; ajeito-me.
E veio quem eu esperava, para me dizer, sorridente, que bem sabia que nunca me
formaria em Medicina, pois que não era muito inteligente. Que sempre fora um
medíocre e que nem para enfermeiro teria perfil, quanto mais médico. E veio, mas esse
uma única vez, um velho contar-me histórias mais falsas que as juras de Judas,
fazendo-se humor e gargalhada. Perante o meu esguardo, retirou-se afirmando que eu
estava na mesma. Que esperava ele? Que fosse outro? Possivelmente.
Aproveito muitas vezes estas visitas para mandar recados. Ou melhor, tenho sempre
mandado o mesmo: que digam ao meu avô, o marinheiro, que morreu varado pela fome,
que venha falar comigo. Mas ninguém sabe dele. Não perco porém a esperança. Sei que
ele há-de vir um dia. Possivelmente até já terá vindo, mas não reconheceu no corpo,
no bigode, nas rugas e no cabelo branco, o rapazinho magro e feioso que ele sentava no
colo, enquanto contava histórias dos Mares do Sul, de Hiroshima e de uns homens
chamados bolkivistas.
Por vezes, quando oiço barulho no caminho, abro um olho e vejo quem está lá. Por
duas ou três vezes já aconteceu voltar a fechá-lo, fingindo dormir, pois tal companhia
não me alegraria, nem me retiraria da solidão em que me encontro.
Nos últimos dias, como é natural, tenho-me preparado para acompanhar os amigos
que me vêm ver. Aguardo o momento oportuno para sair da cama e meter pés ao
caminho na sua companhia, subindo o carreiro e descobrir, finalmente, onde ele se
espraia: numa clareira florida ou num pântano.
Aguardo uma noite amena, luminosa e suave. Porei então o Outono e, com o Allegro
da caçada, partiremos, de braços dados, caminho arriba, sem nada nos bolsos nem
reservas no espirito. Talvez apenas a esperança de encontrar o meu avô e que ele me
sente de novo no seu colo.
(do livro Scrabble)
Monday, January 23, 2006
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