Monday, January 16, 2006

O LENÇO

História para ser lida às crianças, à noite, para elas adormecerem melhor e reconfortadas pela bondade e justiça humanas, mais eficaz que uma oração, um copo de leite ou uma mezinha.
Pode ser lida pelo pai, pela mãe ou pelos dois em conjunto, o que dará melhor e mais profundo ensinamento sobre o amor entre os homens de boa-vontade.
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O pintor estava no Castelo de S. Jorge com a filha, tentando vender um quadro aos turistas que por ali pasmavam.
Ele tinha o direito de estar com a filha aos sábados e domingos, pois a ex-mulher ficara com a tutela alegando que ele era um desgraçado sem rendimentos fixos ou ambulantes. Ela era advogada e mexeu bem os cordeleis com os colegas e juízes e assim ficou com a miúda que agora, neste dia, tem cinco anos já prontos.
O pintor não sabe o que fazer à vida para a melhorar e para poder ficar com a miúda, pois gostam muito um do outro. E isso vê-se bem.
Ela trouxe um lencinho de cor vermelha que a mãe lhe pôs ao pescoço, pois já calculava que o pai não tinha lenço vermelho nem de qualquer outra cor e ali no castelo há sempre um vento de leste, que também pode ser de oeste e a miúda, para agradar ao seu amado pai, colocou o lenço vermelho sobre o canto esquerdo do quadro (uma natureza bastante morta), num arranjo vistoso.
Um casal de pasmas com olhos azuis e cabelos amarelos apontou e o pintor disse cem euros. Eles que não com a cabeça e, por gestos, disseram que não era o quadro que lhes interessava mas o lenço. O pintor, com gestos, disse que o lenço era dele e que não, não, não era para vender, percebem? Que o quadro sim e que, abrindo os dedos da mão direita, poderiam ser cinquenta euros, com a moldura. E os pasmados perguntam se vem o lenço também. O pintor diz que não. A menina já chora. Os pasmados, abanando a cabeça criticamente, vão-se embora olhando o rio lá em baixo.
O pintor não aguenta mais. Dá à miúda o lenço e um beijo.
E atira-se cá para baixo como qualquer sarraceno a fugir dos cristãos.
(do livro Scrabble)
PS - O meu amigo e jornalista Machado da Graça, quando acabou de ler esta estorinha, disse-me não gostar do final. Que seria bem mais razoável e lógico o pintor ter pegado nos turistas e tê-los projectado da muralha lá para baixo, continuando o seu domingo bem-disposto com a filha.

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