Habitualmente o bobo da corte está apaixonado pela rainha. O bobo da corte ou é feio, ou anão, ou marreco, ou desdentado, ou disforme ou os cinco predicados juntos.
Ele pretende agradar a uma única pessoa mas, para não se fazer muito notado, dirige-se a todas e ao marido da rainha, o rei que, também habitualmente, lhe bate ou olvida. Há casos na História em que, descobrindo todo o jogo, o rei o manda decapitar. Para se entreter, claro.
O bobo da corte senta-se normalmente aos pés da rainha como um gato ou um cão. E aguarda. Diz parvoices e aguarda. Faz chalaças e aguarda. Mima tudo e todos e olha de lado para a sua senhora a ver se ela ri - aguarda. Faz rimas toscas, dá cambalhotas, mostra a corcunda, ou as gengivas, ou as pernas em arco, para gozar com as suas deformidades e para gozar com os outros - os da corte -, para gozarem todos, enfim. Sublima-se com os seus defeitos físicos e aguarda.
Às vezes a rainha, distraída, deixa cair sobre ele um olhar amistoso e até já houve casos em que lhe passou levemente a mão pela corcunda. Distraidamente, está claro. O bobo da corte, à noite na sua cela, recorda-se dessas pérolas preciosas e chora e bate nas paredes e agonia-se e clama e cospe mágoas por entre as gengivas nuas.
O bobo da corte de todos e a todos responde nada. Diz chalaças. Rebola como um arco de criança, mete os dedos na boca e alarga-a ou tira a cabeleira empoada e, à frente de todos, finge limpar o rabo com ela. A corte aclama, o rei agonia-se, a rainha ri e absolve com esse riso. O frade confessor nada faz ou diz, pois tem medo - já que o bobo da corte sabe sempre de mais e é sempre um infeliz que com tais gestos se vinga. Que o confessor durma com o pajem do rei, ora bem, pajem rima com ninguém e bobo de corte rima com desnorte.
Na noite adulta, o bobo da corte - sério como convém -, despe-se. Tira a cabeleira, os postiços, afaga os artelhos doloridos, limpa as lágrimas de raiva e vai-se a dormir. Deita-se na enxerga estreita e dura. Pelas bandas da cavalaria, na ala Leste, escapa-se um riso breve e fresco e irónico e divertido de donzela. Um cavalho relincha. O confessor, ainda acordado, pede, sem muita convicção, perdão a Deus. A rainha banha os braços e os seios com águas perfumadas. O rei, na sua ala, vai-se entretendo a despir uma aia. Essa.
O bobo vira-se para a parede de pedra e adormece.
(do livro Scrabble)
2 comments:
Gostei muito da história. Não somos nós todos um pouco como ele?
João
De acordo. De bobo todos temos um pouco.
ABM
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