15.
Bronco Vale estava pronto pra sair. Tivera alta. Vestia
bata branca de enfermeiro e utilizava o pequeno
disfarce dos óculos escuros.
Nas traseiras do St. James Hospital, uma ambulância
aguardava, com o motor a trabalhar. Bronco não podia
arriscar-se a levar o último tiro da sua vida. Assim, o
esquema tinha sido preparado pelo Chefe O'Hara, com
a colaboração da direcção do hospital.
- Então? - perguntou O'Hara ao dr. Kildaire. - Você
está melhor?
- Conhece o orifício que existe no meio das nádegas,
no sítio onde as costas perdem o nome?
O'Hara afastou-se para assistir à saída de Bronco
e para melhor vigiar as cercanias. Tinha o pistolão no
bolso do sobretudo, pronto a fazer fogo. Era um
profissional.
O dr. Kildaire, fumando nervosamente, quedou-se,
no passeio, a ver partir a ambulância.
Qual das câmaras é que estaria a captá-lo naquele
momento?
O'Hara despediu-se:
- Tome Vallium, Kildaire.
Ele não ouviu.
-------------------
De Ed B. Silverman.
Nota: só na próxima 3ª.Feira haverá outro
capítulo. O penúltimo.)
Thursday, March 30, 2006
Tuesday, March 28, 2006
33.O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
13. Naquela noite o canal 76 ("Este é o calibre 76. Carregue no telecomando e mate a sua vizinha"), tinha anunciado uma nova série, escrita por Ed McBain e passada numa esquadra de polícia, com um detective chamado Steve Carella. Rockfeller aninhou-se para assistir. No momento exacto da transmissão, depois de cento e dezoito comerciais, toda a sua zona ficou às escuras. Um corte geral de energia. Rockfeller acabou a lata de cerveja. Foi até à janela. Abriu as cortinas. Tudo negro. Só ao longe algumas luzes vermelhas nos telhados dos arranha-céus, pontinhos marcando presença. Viu pois em negrume a sua cidade. Quando sentiu lágrimas nos olhos, dirigiu-se para o seu quarto, para se deitar. É tão triste, sofredora e abnegada a vida de um inspector- -chefe! 14. Na manhã seguinte Rockfeller estava deprimido, apesar da neve se ter derretido durante a noite e o dia se apresentar menos agreste, quase ameno, com o Sol como deve ser. Percorreu o longo corredor até ao seu gabinete, resmungando quando o saudavam. Resmungou ainda quando viu quem o esperava: Bone. - Bom dia, senhor. - Hum... entre. Entraram. Rockfeller deixou-se cair na sua ampla cadeira e apontou para a outra, na sua frente. Era uma ordem. Bone sempre atento compreendeu-a. Quando abriu a boca para falar, soou a campainha do telefone. - Rockfeller - disse o dito, com evidente enfado. E ficou escutando, cada vez mais interessado. Pronunciou uns quantos monossílabos e terminou, dizendo: - Bem trabalho, O'Hara. Mate-a! Nada de julgamentos. Mate-a, mas antes que denuncie a pandilha toda - e desligou. Bone ficou pálido. Muito pálido. - Afinal, Bone, o que quer de mim? Bone atrapalhou-se. Tossiu e, em seguida, acendeu um cigarro. - Bem, Inspector. Estive a rever todo o processo das explosões e não encontrei qualquer ponta, qualquer pista. Só vi que nos faltava a informação sobre o tal cientista búlgaro. - Ah! Esse! Sem interesse. Nem fiz a nota para o processo. O agente descobriu que ele andava aos pulinhos, sempre contente e a rir, porque a irmã e o cunhado, que vivem na Alemanha, jogaram em nome dele num concurso qualquer, tendo ganho um milhão de marcos. Não tem nada a ver com o nosso caso. Mas você está doente, Bone. Está cada vez mais pálido. - Sim... realmente não me sinto lá muito bem... E, mal acabou esta frase, um violentíssimo estrondo abalou as paredes, partiu os vidros das janelas, atirou ao chão o Inspector-Chefe e fez voar a porta do gabinete. Quase imeditamente, a sereia de alarme do edifício desatou num desalmado berreiro de alerta, para que todas as portas exteriores fossem fechadas. O gabinete e Rockfeller estavam irreconhecíveis. Bocadinhos de Bone tinham-se espalhado por toda a sala, como confetti de várias cores, com predominância para o magenta e o rosa-truta, para além do castanho, claro. O Inspector batera com a cabeça no chão e perdera os sentidos. Contudo, a secretária tinha-o protegido um pouco. Vários detectives e agentes acorreram olhando, da entrada, para aquela tremenda imagem de destruição. Alguns retiraram-se para vomitar. Uma porcaria pegada. Um escalracho. Uma vergonha e um nojo aquilo tudo. Merda por todos os lados. E um cheio pestilento. Os repórteres não se fizeram esperar, mas foram impedidos de entrar e não havia ainda qualquer comunicado oficial. Contudo, a edição do meio-dia do Brooklin Herald informava em manchete, que uma bomba, colocada pelos comunistas, tinha destruído, quase na totalidade, o edifício da Central da Polícia, havendo já 18 mortos e 127 feridos, dos quais dois detidos e ainda uma criancinha de colo. Após a primeira assistência médica, Rockfeller recolheu a uma clínica psiquiátrica, com distúrbios e profundas depressões verticais. O assunto assumiu, claro, cariz nacional. Nathaniel B. Clarck (NBC na intimidade partidária e familiar, como já se informou o leitor), Governador, ligou para a Casa Branca. Após vários contactos conseguiu o que queria. O secretário, nas suas memórias mais tarde publicadas ("My Life with the President"), referenciou o diálogo pormenoriza- damente. "- É grave, senhor. - Na própria Central? - Na própria! - Que medidas tomou? - perguntou o senhor. - Todas. - Os meus assessores acreditam que a mão da foice e do martelo é que accionou tudo isto. - Talvez a Nicarágua, senhor. - Mas os problemas com o Médio Oriente já estão praticamente solucionados, ou em via disso. - Mas a Nocarágua não é no Médio Oriente, senhor. - Ah não?! Pois claro que não. É na África Austral. Silêncio. - Está? - Estou, senhor. - Mobilize todas as forças. Não esquecendo as agências. - Muito bem, senhor. - Ponha-me ao corrente a qualquer hora do dia ou da noite. - Muito bem, senhor." E desligaram. ---------------------- (de Ed. B. Silverman) |
Saturday, March 25, 2006
32. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
12. Mesmo à esquina da 72 com a Nona Avenida, há vários anos que um cego monta a sua banca, com ou sem autorização da Polícia. A neve, na última semana, fizera com que este diligente comerciante em nome individual, só exercesse a actividade por breves períodos, preferencialmente à tarde. Ou por maldade inqualificável do fornecedor ou por pessoal sofisma, entre canetas esferográficas, alguns livros, revistas e atacadores, apresentava bolsas de preservativos, os quais, quando lhe apetecia, anunciava como balões. E vendia. Naquela tarde o Sol conseguiu animar-se um pouco por volta das três pelo que, vinte minutos após este regalo, já o vendedor cego se encontrava instalado, protegendo-se do frio com um amplo gorro soviético e botas de plástico amarelas; como abafo geral, um velho sobretudo militar, que vira já bons tempos e talvez francesas. O'Hara, enterrando a perna de pau na leve camada de neve, já o aguardava, bufando hálito quente para as duas mãos, aquecendo obviamente uma e enferrujando a outra. Pelo sim, pelo não, comprou um "balão" e atirou-se à conversa. - Sou da Polícia. - Já percebi... pelo cheiro. - Hum...Há uma senhora que mora aqui no West Side e que o cumprimenta amistosamente. Fez isso na última quinta-feira. - Há muitas senhoras que me vêm cumprimentar. Sou cego mas não sou impotente. - Lá isso não sei. - Mas sei eu. E tenho muita saída. Os cegos nunca podem fazer prova. Um cego, no tribunal, não pode virar-se para o juiz e afirmar, com o dedo apontando, que foi com aquela dama que dormiu na noite de 35 de Outubro. O advogado largar-se-ia a chorar no ombro do cliente. "Balões!Balões!" - Tá bem, tá bem. - Como é essa senhora? - É alta, dizem que bonita e parece que também tem um problema num olho. - Ah! Essa! "Esferos! Esferos quase dados! Promoção de Inverno: quem comprar duas leva um balão de graça! Ajudem o ceguinho!" - Conheces então a senhora? - Mais ou menos. - Fala-me do "mais". O cego, através dos negros óculos, parecia fixar-se muito para além de O'Hara, como se ele ali não estivesse especado, mesmo à sua frente. O'Hara, por sua vez, estava quase a perder a calma. - Só posso falar do "menos" pois ela não é dessas, nem mãe de qualquer polícia. É estupidamente séria. - E gritou bem alto, mesmo para a cara de O'Hara: "-Ajudem o ceguinho, que nem sabe o que é uma árvore de Natal, coitadinho! Nunca viu um pinheiro aceso... nem apagado. Nunca viu os Reis Magos... nem a estrela. Ajudem o ceguinho!" - Então? - rosnou O'Hara. - Então o quê? - rosnou o cego. - Fala-me dela. - Bem... Conversa às vezes comigo sobre o estado do tempo, uma vez por mês compra-me uma caneta e todas as semanas a TVNews. Quer uma, chui? - Não, obrigado. Quero apenas saber onde mora. - "Ajudem o ceguinho, que não vê a mãe desde que nasceu!" Por acaso sei onde mora, mas não digo. Só à porrada! - Não te vou dar porrada! - É pena. Estou cheio de frio... sempre aquecia. "Balões! Balões para o menino e para a menina! Balões!" Mas para que é que quer a morada?, pode um cego perguntar? "Balões!" O'Hara já estava farto da conversa, mas era fundamental para a investigação que a levasse a bom termo. No cego estava o eixo de toda a investigação. Tentando mostrar-se afável, com a sua voz grave, bordou uma história. - Bem. Encontrámos num cais o cadáver de um velho. Entre a papelada, há referências a uma filha que tem um olho de vidro. Era só para confirmar. Se for ela, tenho de lhe comunicar a triste notícia e pedir-lhe a identificação oficial do morto. - E, nesses papéis - perguntou o cego cheio de gozo -, não havia nada a dizer o nome da família e a morada da filhinha?... - Não... quase nada se lia por causa da água.. estavam todos molhados... Uma avozinha friorenta, com o netinho pela mão, de fugida, apressadinha, pede um balão. O cego dá-lhe uma carteirinha, recebe o dinheiro, passa-o lentamente pelos dedos e guarda-o num bolso do militar sobretudo. - "Que se divirtam muito!" - desejou. - "Ajudem o ceguinho!" Muito bem, sargento. Você tem imaginação, mas só deve convencer a sua mãezinha, na hipótese de a ter conhecido. O'Hara estava gelado e farto. O seu temperamento foi superior a todos os considerandos e interesses. - Ouve, meu cego da merda. Ou me dizes onde ela mora ou vais dentro e tão cedo não venderás a ponta de um corno, percebes? Meto-te numa instituição cá dos meus conhecimentos e nunca mais verás a luz do dia! - Claro, sargento, sou cego! E ficaram os dois mudos, um ruminando vinganças, o outro imaginando como se defenderia do ataque seguinte, - Falas ou não falas? - Oiça, sargento. Digo-lhe o nome e você procura, e acabou-se! Ou, então, vamos para a porrada. Um jornalista meu amigo havia de gostar. Título de primeira página: "Sargento da Polícia bate desalmadamente num pobre cego!". Ein? Que bela manchete! "Canetas!" - És um bom espertalhaço! - Como poderia ser de outra maneira? Já me teriam roubado a mercadoria, o dinheiro e até a bengala, que este mundo só tem ladrões e polícias. Os cegos tentam viver no meio. "Canetas! Canetas!" - Deixa-te de filosofias baratas. Diz lá o nome. - E vai-se embora? Promete que se vai embora? A sua presença prejudica o negócio e a minha reputação. - Vou. - Vai mesmo?! A sério? - Porra, vou! - Então chama-se Maureen. Três blocos para sul. Adeus sargento. - Eu não sou sargento, cego! - E quem lhe disse que eu era cego? Almirante de recolha de corpos? O'Hara atirou a bolsinha dos "balões" para a banca do cego e seguiu em direcção à 96. O cego apanhou facilmente a bolsinha, conferiu se estava intacta e atacou imediatamente a promoção de Inverno. - "Canetas! Dadas! Absolutamente dadas! Ajudem o ceguinho que nem braile sabe!" Isto tudo, continuando a olhar para O'Hara, que se afastava manquejando. ---------------- (de Ed. B. Silverman) |
Monday, March 20, 2006
31. O Caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
11. O dr. Kildaire saía do quarto de Bronco Vale, quando O'Hara, vindo do elevador, o abordou mancando. - Como está ele, doutor? - Está vivo. - Isso sei eu. E quando poderá sair? - Amanhã, depois, às onze e um quarto, ao pôr-do-sol, de madrugada, se quiser! - respondeu o médico em tom brusco. - Estou a chateá-lo? O célebre médico respirou fundo e desabafou com violência: - Está! A merda do seriado da televisão deu cabo da minha vida! - E, imitando a voz que os adultos fazem parvamente quando falam com crianças, disse: - O dr. Kildaire é uma simparia; o dr. Kildaire tem um coração de ouro; o dr. Kildaire é altamente responsável; o dr. Kildaire estuda cada caso com uma profundidade catedrática; o dr. Kildaire é profundamente humano. Que porra! - Calma aí, homem! - Está aí dentro uma gaja, no quarto do seu amigo que, quando me viu, revirou os olhos e ficou em transe. Pegou-me nas mãos e disse: "Salve-o, dr. Kildaire! Só o senhor o pode salvar!" Porra! Apenas um tiro na grande rabada. - Pare lá com isso, homem! Vá a um psiquiatra ou faça uma cura de repouso, mas não me lixe a cabeça! O dr. Kildaire acendeu um cigarro (também é proibido fumar nos corredores do St, James Hospital). Mais calmo, perguntou: - Afinal, quem é você e o que quer? - Chamo-me Eugene O'Hara e sou Chefe da Brigada de Homicídios de Nova Iorque. - e mostrou a identificação. - E que mais? - Preciso do Bronco cá fora, rapidamente. - Quer assistir a uma cena da tal série de televisão? Quer? Dê atenção. Compõe a bata e o cabelo, faz um suave sorriso amistoso, untuoso, tipo cardeal aos domingos e, em voz baixa, culta, controlada, diz: - Quanto ao paciente seu amigo, examinei o orifício de entrada e o de saída. Como sabe, meu caro amigo, o de saída é maior do que o de entrada. Examinei a força dos músculos das pernas, a fim de verificar se o nervo ciático tinha ficado lesionado, se tinha a sensibilidade intacta. E tinha. Não foi lesada qualquer estrutura nervosa importante. Fiz a excisão da ferida, exploração e lavagem do trajecto. Coloquei um dreno seco, de borracha, tipo Penrose. Está com uma cobertura antibiótica, analgésicos e repouso absoluto. Nada de cuidado. - Tá bem, doutor, tá bem! Só falta agora uma enfermeira loira e muito boa a pedir-lhe, como se falasse com Deus, para ir com urgência ao segundo piso. O dr. Kildaire recompõe-se, tornando-se naturalmente chato. - Amanhã já pode sair. Agora é só descanso. Perdeu muito pouco sangue; só andou dez metros até aqui. Levar um tiro à porta de um hospital é altamente conveniente. Sai muito mais barato. - Vou lá dentro falar com ele. - Falar com ele? Tente. Até aqui se ouve o gajo a ressonar. Não ouve? Além de zarolho, maneta e perneta também é surdo? - E se o doutor fosse à merda?! Kildaire pareceu não ter ouvido. Seguiu pelo corredor abanando a cabeça. O'Hara também abanou a cabeça, como quem diz "caso perdido" e entrou. A sra. Marlowe, sentada na única cadeira existente no quarto, fechou o livro e olhou para o visitante. Depois, suavemente, aveludadamente, alcatifadamente, disse: - Amanhã já poderemos falar com ele, Chefe O'Hara. - Então conhece-me? - Conheço e por isso lhe baixei a cabeça num cumprimento outro dia. O senhor era o chefe do meu marido, Edgar Marlowe. - É a viúva! Ele explodiu, não foi? Não se aproveitou mesmo nada! Uma porcaria tudo aquilo. Trampa por todos os lados... como há pessoas que cheiram tão mal por dentro! Linda Marlowe deslizou da cadeira e caiu no chão. Estava desmaiada. Bronco Vale continuava a ressonar placidamente. Mancando, O'Hara saiu à procura de uma enfermeira, virou no corredor à esquerda e deu de caras, de novo, com o dr. Kildaire que falava, calmo, com uma jovem e esbelta senhora, a quem pegava bondosamente nas mãos. - Sra. Morris. Tudo sairá bem. A operação é muito simples. Venha ao meu gabinete para lhe explicar tudo em presença das radiografias. - Siiim, senhoooor doutoooooor. --------------------------- (Da novela de Ed B. Silverman) |
Friday, March 17, 2006
30. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
10.
O'Hara entrou no bar também duas horas antes de este abrir.
Tal como na visita de Bronco, Joe, no seu posto, limpava copos
como habitualmente àquela hora. Gostava de os ter a brilhar.
- Olá, Joe.
- Hum...
- Vale falou contigo há três dias.
- Outro chui!!!
- Talvez um inválido da guerra, em férias, mas duro como aço
americano.
Joe, olhando para a mão metálica e para a pála, tentou um
sorriso irónico. Quase o conseguiu.
O'Hara meteu a mão natural no bolso, retirou uma folha de
papel dobrada em quatro e, com a ajuda dos ganchos da outra,
desdobrou-a. Tudo sem pressas e parecendo não ter visto o
ameaço do sorriso irónico.
- Vejamos. "Martinez, Juan Angel Martinez, mais conhecido
por Joe. De 35 anos de idade. Filho de porto-riquenhos.
Instrução primária completa. Impedido de ir para o Vietnam
devido a lesões pulmonares. Preso cinco vezes por pertencer
a bandos de delinquentes. Assaltos a postos de gasolina. Duas
vezes absolvido por falta de provas ou deficiente identificação
testemunhal. Preso de novo dois anos depois por vender droga
num bar em Manhattan. Condenado a três anos de prisão que
cumpriu. Pensa-se que continua metido no negócio, mas mais
discretamente."
Joe já tinha partido um copo. As mãos tremiam-lhe.
Preparava-se para partir outro. O'Hara continuou, em voz
baixa e calma:
- Aquando do último julgamento, o juiz Stephan Corbert avisou
que, da proxima vez, poderias ser recambiado para Porto Rico.
Podes, não podes?
- Não fiz nada! Estou limpo!
- Não acredito mas, por agora, está bem. Canta.
- Nunca mais me meti com eles! Não quero mais sarinhos!
- Canta, Joe.
- Oiça, senhor. Não quero perder o meu emprego. Não quero
voltar a ser preso. Organizei a minha vida.
- Mas não disseste tudo ao Vale.
- Não, isso é verdade... Não gostei da cara dele... Desculpe...
ele é seu colega, mas não gostei dele.
- Ele não é meu colega, Joe.
Joe parou com os tremeliques nas mãos. Compreendia agora
que O'Hara era mesmo duro como o aço (americano). Por este
tipo de chuis tinha verdadeiro respeito ou, talvez, medo. Bebeu
um copo de água sem o deixar cair nem verter.
- Bem... ela não voltou cá... mas vi-a.
- Ela quem?
- Não sei o nome.
- Conta o resto.
- Sim, senhor. Na 72ª, antes do Parque.
- Já é qualquer coisa.
- Bem... é destas coisas que a gente observa... não parecia
ir com destino, percebe?
- Não.
- Passeava. Parecia que vivia ali. Quando moramos num sítio,
andamos de maneira diferente. Observava as montras sem
pressas e até conversou com o cego das revistas, nas calmas.
Reparei nisto tudo por causa das perguntas do outro chui.
Para ocupar as mãos, começou a limpar outro copo. Mais
tarde apanharia os cacos do chão.
- Viste de onde partiu o tiro?
- Não, senhor. Daqui não se vê nada lá para fora.
- A quem deste o número do telefone do Bronco Vale, do gajo
que cá esteve?
- A ninguém, juro!
- Não o deste a ninguém...
- Não. Para quê?
O único olho são de O'Hara parecia uma teleobjectiva
apontada a Joe.
- Ouve, meu filho. Mais cedo ou mais tarde virei a saber e,
se o bichanaste a alguém, não serás deportado, não terás
saúde para a viagem.
- Não o dei a ninguém e, se quisesse, não poderia. Assim que
o gajo saiu, rasguei o seu cartão. Farto de merdas estou eu.
- Não te esqueças de mim, Joe. E nunca te rias quando vires
um gajo sem um olho, sem uma mão e sem uma perna. Um
dia fodes-te!
Mancando, O'Hara saiu. Juan Martinez prendeu uma mão na
outra. Tinham voltado a tremer.
- Mas que merda! Que merda!
E tossiu. Os pulmões não estavam tão bons como ele pensava.
Esta coisa de assaltar postos de conveniência aos 17 anos, faz
muito mal à saúde. Por causa da humidade da noite. Toda a
gente o sabe.
-------------------
(da novela de Ed B. Silverman)
O'Hara entrou no bar também duas horas antes de este abrir.
Tal como na visita de Bronco, Joe, no seu posto, limpava copos
como habitualmente àquela hora. Gostava de os ter a brilhar.
- Olá, Joe.
- Hum...
- Vale falou contigo há três dias.
- Outro chui!!!
- Talvez um inválido da guerra, em férias, mas duro como aço
americano.
Joe, olhando para a mão metálica e para a pála, tentou um
sorriso irónico. Quase o conseguiu.
O'Hara meteu a mão natural no bolso, retirou uma folha de
papel dobrada em quatro e, com a ajuda dos ganchos da outra,
desdobrou-a. Tudo sem pressas e parecendo não ter visto o
ameaço do sorriso irónico.
- Vejamos. "Martinez, Juan Angel Martinez, mais conhecido
por Joe. De 35 anos de idade. Filho de porto-riquenhos.
Instrução primária completa. Impedido de ir para o Vietnam
devido a lesões pulmonares. Preso cinco vezes por pertencer
a bandos de delinquentes. Assaltos a postos de gasolina. Duas
vezes absolvido por falta de provas ou deficiente identificação
testemunhal. Preso de novo dois anos depois por vender droga
num bar em Manhattan. Condenado a três anos de prisão que
cumpriu. Pensa-se que continua metido no negócio, mas mais
discretamente."
Joe já tinha partido um copo. As mãos tremiam-lhe.
Preparava-se para partir outro. O'Hara continuou, em voz
baixa e calma:
- Aquando do último julgamento, o juiz Stephan Corbert avisou
que, da proxima vez, poderias ser recambiado para Porto Rico.
Podes, não podes?
- Não fiz nada! Estou limpo!
- Não acredito mas, por agora, está bem. Canta.
- Nunca mais me meti com eles! Não quero mais sarinhos!
- Canta, Joe.
- Oiça, senhor. Não quero perder o meu emprego. Não quero
voltar a ser preso. Organizei a minha vida.
- Mas não disseste tudo ao Vale.
- Não, isso é verdade... Não gostei da cara dele... Desculpe...
ele é seu colega, mas não gostei dele.
- Ele não é meu colega, Joe.
Joe parou com os tremeliques nas mãos. Compreendia agora
que O'Hara era mesmo duro como o aço (americano). Por este
tipo de chuis tinha verdadeiro respeito ou, talvez, medo. Bebeu
um copo de água sem o deixar cair nem verter.
- Bem... ela não voltou cá... mas vi-a.
- Ela quem?
- Não sei o nome.
- Conta o resto.
- Sim, senhor. Na 72ª, antes do Parque.
- Já é qualquer coisa.
- Bem... é destas coisas que a gente observa... não parecia
ir com destino, percebe?
- Não.
- Passeava. Parecia que vivia ali. Quando moramos num sítio,
andamos de maneira diferente. Observava as montras sem
pressas e até conversou com o cego das revistas, nas calmas.
Reparei nisto tudo por causa das perguntas do outro chui.
Para ocupar as mãos, começou a limpar outro copo. Mais
tarde apanharia os cacos do chão.
- Viste de onde partiu o tiro?
- Não, senhor. Daqui não se vê nada lá para fora.
- A quem deste o número do telefone do Bronco Vale, do gajo
que cá esteve?
- A ninguém, juro!
- Não o deste a ninguém...
- Não. Para quê?
O único olho são de O'Hara parecia uma teleobjectiva
apontada a Joe.
- Ouve, meu filho. Mais cedo ou mais tarde virei a saber e,
se o bichanaste a alguém, não serás deportado, não terás
saúde para a viagem.
- Não o dei a ninguém e, se quisesse, não poderia. Assim que
o gajo saiu, rasguei o seu cartão. Farto de merdas estou eu.
- Não te esqueças de mim, Joe. E nunca te rias quando vires
um gajo sem um olho, sem uma mão e sem uma perna. Um
dia fodes-te!
Mancando, O'Hara saiu. Juan Martinez prendeu uma mão na
outra. Tinham voltado a tremer.
- Mas que merda! Que merda!
E tossiu. Os pulmões não estavam tão bons como ele pensava.
Esta coisa de assaltar postos de conveniência aos 17 anos, faz
muito mal à saúde. Por causa da humidade da noite. Toda a
gente o sabe.
-------------------
(da novela de Ed B. Silverman)
Thursday, March 16, 2006
29. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
9.
A porta principal do St. James Hospital. Apenas duas
escadas e uma rampa a separavam de uma rua larga
que rasga um pequeno jardim com dois acessos - um
de entrada e outro de saída de veículos.
Bronco Vale aguarda que Linda Marlowe traga o carro
do parque de estacionamento, enquanto o dr. Kildaire,
de mãos nos bolsos da impecável bata branca, fita um
horizonte distante, próprio de íntimos e profundos
pensamentos, não se apercebendo de que a recepcionista
o comia com os olhos, já que não o poderia fazer com
outras partes físicas.
Vale não estava particularmente atento, mas um
reflexo de vidraça, num dos prédios em frente, deu-lhe
o alerta. Atirou-se ao chão e rolou para junto de uma
ambulância vazia estacionada um pouco mais à frente.
A bala bateu no passeio, fez um ricochete no Sol bemol
da terceira oitava e quebrou um dos amplos vidros
laterais do hospital.
Já várias pessoas se aproximam, estupidamente
curiosas (roxas de curiosidade), quando segundo tiro
partiu, de outro ponto do quarteirão, acertando na anca
direita de Bronco. Este, apesar das dores intensas,
coitado, consegue apontar a arma para a janela de onde
partira o primeiro tiro, do outro lado da rua. Mas seria
inútil. Estava deserta.
Os roxos de curiosidade ficaram brancos-cal de medo e
desapareceram, alguns soltando gazes.
O detective, com incalculável esforço, conseguiu içar-se
para a cabina da ambulância e, assim, proteger-se do
segundo atirador.
Silêncio sólido, pesado, daqueles mesmo que se ouvem.
À porta do hospital, alguns maqueiros e um perneta de
muletas, espreitavam a cena. Deliciados, os sacanas. Mas
nisto o perneta vai até ao meio da rua e, tansformando
uma das muletas em metralhadora, aponta para o prédio
e faz com a boca rá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
A recepcionista aproveitava-se da confusão para se
agarrar nervosa ao braço do dr. Kildaire, encostando-
-lhe o mamilo esquerdo, como se de um berbequim se
tratasse. O parvo nem dava por isso.
Como um aviso final, terceira bala furou o chapéu de
Bronco, caído no passeio, a dois passos do perneta. Um
discurso concludente.
Linda Marlowe chegou então, conduzindo o seu carro
azul-marinho chamado Ford. Estava boa, boa, boa.
Com o Kildaire já recomposto, Linda e o médico
correram para a ambulância onde, sentado de lado,
Bronco Vale gemia e sangrava. Tiraram-no, com a
ajuda dos dois maqueiros e o detective voltou a entrar
no hospital.
A recepcionista, que já tinha arquivado o processo do
detective e agora, com um mamilo mais pequeno que o
outro, abriu a gaveta e retirou, de novo, aquele modesto
sobrescrito que dizia apenas Bronco C. Vale.
Preencheu novo impresso e olhou para o corredor, com
ar infeliz. Ao longe, as costas do dr. Kildaire marcavam
a dignidade e a competência, a caminho do elevador.
Linda Marlowe segurava na mão do detective que
seguia na maca. Com dores.
Jane, a recepcionista, deu uma palmada no balcão de
recepção com tanta força que parecia um tiro. Depois
sentou-se. O que havia ela de fazer? Entretanto, o
perneta caíra desamparado no meio da rua.
------------------
(de Ed B. Silverman)
A porta principal do St. James Hospital. Apenas duas
escadas e uma rampa a separavam de uma rua larga
que rasga um pequeno jardim com dois acessos - um
de entrada e outro de saída de veículos.
Bronco Vale aguarda que Linda Marlowe traga o carro
do parque de estacionamento, enquanto o dr. Kildaire,
de mãos nos bolsos da impecável bata branca, fita um
horizonte distante, próprio de íntimos e profundos
pensamentos, não se apercebendo de que a recepcionista
o comia com os olhos, já que não o poderia fazer com
outras partes físicas.
Vale não estava particularmente atento, mas um
reflexo de vidraça, num dos prédios em frente, deu-lhe
o alerta. Atirou-se ao chão e rolou para junto de uma
ambulância vazia estacionada um pouco mais à frente.
A bala bateu no passeio, fez um ricochete no Sol bemol
da terceira oitava e quebrou um dos amplos vidros
laterais do hospital.
Já várias pessoas se aproximam, estupidamente
curiosas (roxas de curiosidade), quando segundo tiro
partiu, de outro ponto do quarteirão, acertando na anca
direita de Bronco. Este, apesar das dores intensas,
coitado, consegue apontar a arma para a janela de onde
partira o primeiro tiro, do outro lado da rua. Mas seria
inútil. Estava deserta.
Os roxos de curiosidade ficaram brancos-cal de medo e
desapareceram, alguns soltando gazes.
O detective, com incalculável esforço, conseguiu içar-se
para a cabina da ambulância e, assim, proteger-se do
segundo atirador.
Silêncio sólido, pesado, daqueles mesmo que se ouvem.
À porta do hospital, alguns maqueiros e um perneta de
muletas, espreitavam a cena. Deliciados, os sacanas. Mas
nisto o perneta vai até ao meio da rua e, tansformando
uma das muletas em metralhadora, aponta para o prédio
e faz com a boca rá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
A recepcionista aproveitava-se da confusão para se
agarrar nervosa ao braço do dr. Kildaire, encostando-
-lhe o mamilo esquerdo, como se de um berbequim se
tratasse. O parvo nem dava por isso.
Como um aviso final, terceira bala furou o chapéu de
Bronco, caído no passeio, a dois passos do perneta. Um
discurso concludente.
Linda Marlowe chegou então, conduzindo o seu carro
azul-marinho chamado Ford. Estava boa, boa, boa.
Com o Kildaire já recomposto, Linda e o médico
correram para a ambulância onde, sentado de lado,
Bronco Vale gemia e sangrava. Tiraram-no, com a
ajuda dos dois maqueiros e o detective voltou a entrar
no hospital.
A recepcionista, que já tinha arquivado o processo do
detective e agora, com um mamilo mais pequeno que o
outro, abriu a gaveta e retirou, de novo, aquele modesto
sobrescrito que dizia apenas Bronco C. Vale.
Preencheu novo impresso e olhou para o corredor, com
ar infeliz. Ao longe, as costas do dr. Kildaire marcavam
a dignidade e a competência, a caminho do elevador.
Linda Marlowe segurava na mão do detective que
seguia na maca. Com dores.
Jane, a recepcionista, deu uma palmada no balcão de
recepção com tanta força que parecia um tiro. Depois
sentou-se. O que havia ela de fazer? Entretanto, o
perneta caíra desamparado no meio da rua.
------------------
(de Ed B. Silverman)
Wednesday, March 15, 2006
28. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)
8.
Maureen acendeu segundo cigarro. Não estava nervosa,
apenas apreensiva. As mulheres, às vezes, estão também
apreensivas.
Bone, esse sim, estava nervoso e demonstrava-o,
passeando de um lado para o outro e do outro para o um
da pequena sala.
O televisor estava desligado, mas Maureen sabia que
faltavam 15 minutos para que o canal 27 ("Crime, só
crime"), transmitisse uma nova série policial.
- Não deverias ter cá vindo - afirmou Maureen em tom
coloquial.
- Pois não... mas alguns telefonemas podem estar sob
escuta. É coisa que ainda não consegui saber.
- Estão a ir mais longe na investigação?
- Penso que sim... o problema é começar a estar fora da
jogada, não a podendo controlar. Pode ser impressão
minha, mas parece que me afastaram das investigações.
E ficaram a olhar. Umas vezes um para o outro.
Ela: Teria sido ele a encomendar a gargantilha?
Este bastardo nunca prestou para nada. Está
cheio de medo. Teria sido ele? Deveria ter feito
o Hamlet falar. Só faltam dez minutos para o
filme.
- Queres beber alguma coisa?
- Em tua casa?! Nem penses!
Maureen sorriu apenas com a boca, mostrando uma bela
dentadura branca. Autêntica.
- Não tenhas medo, Bone. Não mato os amigos.
- Não estarei cá para confirmar...
- Como queiras, mas senta-te. Vou buscar uma bebida
para mim.
Ela: Já não me serve para nada. Não está dentro
das investigações e está quase a borrar-se de
medo. Um merdas! Por acaso nem fui eu que o
meti nisto... foi o loudo do Boyle Mariote. Estará
com medo de mim e, por isso, encomendou a
gargantilha? Olhem pr'aquela cara...
- Quantos dias faltam, Maureen?
- Bem sabes que dez.
- É muito. Talvez não tenha sido boa ideia a explosão
daqueles vinte agentes e não creio que devamos agora
limpar vinte barmen.
Ele: Ela não pode saber que fui eu... o Hamlet não
iria falar... Esta gaja está nas calmas... E se ela
sabe? Não posso tomar nada cá em casa... pelo
sim pelo sim. Dói-me a barriga... Isto vai acabar
mal... pois... podes beber à vontade... a droga
está contigo... que bom traseiro... continua boa
como milho... Mas se isto der certo, que bela
vida! Milionário... América do Sul... gajas
melhores que ela... e menos esquivas, raios a
partam! E não está nervosa, a filha da puta! Nas
calmas... e eu com uma sede...
- Já te disse para te sentares. Ainda me fazes um buraco
na alcatifa.
- Às vezes este plano assusta-me... é demasiado grande
para mim.
- Desde o início que conheces o esquema. Aceitaste-o e...
também não és novo nisto. Boyle tem tudo pronto e, como
sabes, testado. A morte dos agentes foi necessária e foi,
também, o primeiro passo para o ultimato. Dentro de dez
dias o ultimato seguirá com o primeiro pedido: quinhentos
biliões de dólares, colocados numa conta especial no
estrangeiro. Sabes isto tudo. É só para ouvires falar em
milhões?! Biliões?!
- Maureen... às vezes olho para ti e penso como ficaste
diferente... não eras assim... Não odiavas a humanidade.
Ela ficou parada com o copo na mão. Em segundos
visualizou o filme da sua vida e dos seus desencontros.
Sempre andou desencontrada. Sempre se colocou na fila
que não andava, ou que andava mais devagar que as
outras. Mas sempre deu tudo - o que tinha e o que,
muitas vezes, não tinha. E, com uma certa ironia,
respondeu:
- Fui traída, meu filho. Passa adiante, se tens mais coisas
para dizer. Se não tens, rua.
- Bem... não te irrites.
Ficaram-se mirando sem qualquer amizade.
- Já estão prontos os passaportes?
E ela com enfado:
- Já. Na altura própria serão distribuidos. Boyle tem tudo
pronto. Depois, por cada dia que demorem a pôr o
dinheiro no estrangeiro, explodirá uma pessoa, de
preferência escolhida, seleccionada.
- Vai morrer ainda muita gente.
- Não queres ficar milionário? Alguma vez te importou o
resto? Morrer pessoas... - a ironia de Maureen era
cortante -, tu nunca amaste ninguém na vida. Eu já. Tu
odeias tudo e todos mas, no fundo... Olha, no fundo
somos puros: não temos nem consciência nem moral.
Mas não nasci assim; tu sim. (Lá se foi o filme.) Quantas
pessoas matas por dia com essa porra da droga? Quantos
miúdos drogas por dia? Quantos?
- Bem... eu...
- És um refinado filho da puta! Eu nasci pura e com
esperança na vida. E tu? "Ai vai morrer muita gente".
Que queres dizer? Que te importas? Nasceste deformado
e hás-de morrer deformado.
Bone explodiu, em linguagem, claro.
- Vai à merda mais o discurso! Vamos é localizar o Bronco
Vale. O espertinho está a andar por aí.
- E então, menino Bone?! Ein? Que estás à espera?
Esmaga-o. Ou queres que também seja eu a ir à sua
procura?
Bone levantou-se e voltou a passear de um lado para o
outro. Sentia que Maureen tinha razão e sentia ainda que
deveria dar-lhe motivos de mais confiança nele.
Olharam-se com rancor. Bone gostaria de ter força para
dominar aquela mulher, mas sempre fora um fraco, um
pau-mandado, um merdas. Reconhecia-o, o que já era uma
virtude.
- Onde guardaste o produto?
Maureen olhou-o de viés.
- Não sabes?
- Sei o que me disse o Boyle.
- E o que te disse o Boyle?
Bone pensou que ela estava a gozá-lo, mas não estava.
- Bem... que te tinha dado as garrafas, foi o que ele disse e
que tu saberias muito bem o que fazer delas.
- Pronto. Está respondido, não está?
Bone passeou pela sala, enquanto Maureen bebia e o
observava sem interesse. Maureen resolveu acrescentar
que as tinha todas seladas num local altamente secreto
e que utilizara apenas um pequeno frasco que o Boyle lhe
dera... para as emergências e que, mesmo esse, estava no
cofre de um banco. A quase totalidade, claro...
- Olha: sempre tomo uma bebida, Maureen. Bem... tens
razão. Ando demasiadamente nervoso. Esta história de
ter sido retirado da investigação...
Maureen foi à cozinha e trouxe uma bebida para Bone,
voltando a encher o seu copo.
- Faço-te companhia.
Beberricaram. Outra vez.
Maureen estava agora descontraída.
- Como calculas, Bone, também não é muito agradável
passar aqui os dias e as semanas à espera... o Boyle está
cada vez mais louco... (Vai-te embora!)
- Tens falado com ele?
(Onde é que este gajo quer chegar?)
- Falei ontem. Ou, melhor: foi ele que ligou para mim.
- O que é que ele queria?
Maureen não gostava mesmo de Bone. Era um merdas
que ela detestava. Resolveu então cultivar esse ódio.
- Saber se tu, Bone, te estavas a portar bem. Diz que tu
és instável e que temos de te trazer debaixo de olho.
- Instável?! Mas que porra é essa? Eu? Instável?! Não
tenho dado provas de...
- Entende-te com ele e não me chateies...
Bone bebeu o resto da bebida.
- Bem... até breve, Maureen.
- Adeus, Bone.
Bone saiu de cabeça baixa.
Logo que a porta se fechou, Maureen correu para o
televisor. Ligou-o no canal 27. O filme já ia a meio.
Maureen sorriu e acabou a sua bebida. Em seguida,
tirou cuidadosamente o olho de vidro e meteu-o dentro
de uma taça com um líquido esbranquiçado.
------------
(do livro de Ed B. Silverman)
Maureen acendeu segundo cigarro. Não estava nervosa,
apenas apreensiva. As mulheres, às vezes, estão também
apreensivas.
Bone, esse sim, estava nervoso e demonstrava-o,
passeando de um lado para o outro e do outro para o um
da pequena sala.
O televisor estava desligado, mas Maureen sabia que
faltavam 15 minutos para que o canal 27 ("Crime, só
crime"), transmitisse uma nova série policial.
- Não deverias ter cá vindo - afirmou Maureen em tom
coloquial.
- Pois não... mas alguns telefonemas podem estar sob
escuta. É coisa que ainda não consegui saber.
- Estão a ir mais longe na investigação?
- Penso que sim... o problema é começar a estar fora da
jogada, não a podendo controlar. Pode ser impressão
minha, mas parece que me afastaram das investigações.
E ficaram a olhar. Umas vezes um para o outro.
Ela: Teria sido ele a encomendar a gargantilha?
Este bastardo nunca prestou para nada. Está
cheio de medo. Teria sido ele? Deveria ter feito
o Hamlet falar. Só faltam dez minutos para o
filme.
- Queres beber alguma coisa?
- Em tua casa?! Nem penses!
Maureen sorriu apenas com a boca, mostrando uma bela
dentadura branca. Autêntica.
- Não tenhas medo, Bone. Não mato os amigos.
- Não estarei cá para confirmar...
- Como queiras, mas senta-te. Vou buscar uma bebida
para mim.
Ela: Já não me serve para nada. Não está dentro
das investigações e está quase a borrar-se de
medo. Um merdas! Por acaso nem fui eu que o
meti nisto... foi o loudo do Boyle Mariote. Estará
com medo de mim e, por isso, encomendou a
gargantilha? Olhem pr'aquela cara...
- Quantos dias faltam, Maureen?
- Bem sabes que dez.
- É muito. Talvez não tenha sido boa ideia a explosão
daqueles vinte agentes e não creio que devamos agora
limpar vinte barmen.
Ele: Ela não pode saber que fui eu... o Hamlet não
iria falar... Esta gaja está nas calmas... E se ela
sabe? Não posso tomar nada cá em casa... pelo
sim pelo sim. Dói-me a barriga... Isto vai acabar
mal... pois... podes beber à vontade... a droga
está contigo... que bom traseiro... continua boa
como milho... Mas se isto der certo, que bela
vida! Milionário... América do Sul... gajas
melhores que ela... e menos esquivas, raios a
partam! E não está nervosa, a filha da puta! Nas
calmas... e eu com uma sede...
- Já te disse para te sentares. Ainda me fazes um buraco
na alcatifa.
- Às vezes este plano assusta-me... é demasiado grande
para mim.
- Desde o início que conheces o esquema. Aceitaste-o e...
também não és novo nisto. Boyle tem tudo pronto e, como
sabes, testado. A morte dos agentes foi necessária e foi,
também, o primeiro passo para o ultimato. Dentro de dez
dias o ultimato seguirá com o primeiro pedido: quinhentos
biliões de dólares, colocados numa conta especial no
estrangeiro. Sabes isto tudo. É só para ouvires falar em
milhões?! Biliões?!
- Maureen... às vezes olho para ti e penso como ficaste
diferente... não eras assim... Não odiavas a humanidade.
Ela ficou parada com o copo na mão. Em segundos
visualizou o filme da sua vida e dos seus desencontros.
Sempre andou desencontrada. Sempre se colocou na fila
que não andava, ou que andava mais devagar que as
outras. Mas sempre deu tudo - o que tinha e o que,
muitas vezes, não tinha. E, com uma certa ironia,
respondeu:
- Fui traída, meu filho. Passa adiante, se tens mais coisas
para dizer. Se não tens, rua.
- Bem... não te irrites.
Ficaram-se mirando sem qualquer amizade.
- Já estão prontos os passaportes?
E ela com enfado:
- Já. Na altura própria serão distribuidos. Boyle tem tudo
pronto. Depois, por cada dia que demorem a pôr o
dinheiro no estrangeiro, explodirá uma pessoa, de
preferência escolhida, seleccionada.
- Vai morrer ainda muita gente.
- Não queres ficar milionário? Alguma vez te importou o
resto? Morrer pessoas... - a ironia de Maureen era
cortante -, tu nunca amaste ninguém na vida. Eu já. Tu
odeias tudo e todos mas, no fundo... Olha, no fundo
somos puros: não temos nem consciência nem moral.
Mas não nasci assim; tu sim. (Lá se foi o filme.) Quantas
pessoas matas por dia com essa porra da droga? Quantos
miúdos drogas por dia? Quantos?
- Bem... eu...
- És um refinado filho da puta! Eu nasci pura e com
esperança na vida. E tu? "Ai vai morrer muita gente".
Que queres dizer? Que te importas? Nasceste deformado
e hás-de morrer deformado.
Bone explodiu, em linguagem, claro.
- Vai à merda mais o discurso! Vamos é localizar o Bronco
Vale. O espertinho está a andar por aí.
- E então, menino Bone?! Ein? Que estás à espera?
Esmaga-o. Ou queres que também seja eu a ir à sua
procura?
Bone levantou-se e voltou a passear de um lado para o
outro. Sentia que Maureen tinha razão e sentia ainda que
deveria dar-lhe motivos de mais confiança nele.
Olharam-se com rancor. Bone gostaria de ter força para
dominar aquela mulher, mas sempre fora um fraco, um
pau-mandado, um merdas. Reconhecia-o, o que já era uma
virtude.
- Onde guardaste o produto?
Maureen olhou-o de viés.
- Não sabes?
- Sei o que me disse o Boyle.
- E o que te disse o Boyle?
Bone pensou que ela estava a gozá-lo, mas não estava.
- Bem... que te tinha dado as garrafas, foi o que ele disse e
que tu saberias muito bem o que fazer delas.
- Pronto. Está respondido, não está?
Bone passeou pela sala, enquanto Maureen bebia e o
observava sem interesse. Maureen resolveu acrescentar
que as tinha todas seladas num local altamente secreto
e que utilizara apenas um pequeno frasco que o Boyle lhe
dera... para as emergências e que, mesmo esse, estava no
cofre de um banco. A quase totalidade, claro...
- Olha: sempre tomo uma bebida, Maureen. Bem... tens
razão. Ando demasiadamente nervoso. Esta história de
ter sido retirado da investigação...
Maureen foi à cozinha e trouxe uma bebida para Bone,
voltando a encher o seu copo.
- Faço-te companhia.
Beberricaram. Outra vez.
Maureen estava agora descontraída.
- Como calculas, Bone, também não é muito agradável
passar aqui os dias e as semanas à espera... o Boyle está
cada vez mais louco... (Vai-te embora!)
- Tens falado com ele?
(Onde é que este gajo quer chegar?)
- Falei ontem. Ou, melhor: foi ele que ligou para mim.
- O que é que ele queria?
Maureen não gostava mesmo de Bone. Era um merdas
que ela detestava. Resolveu então cultivar esse ódio.
- Saber se tu, Bone, te estavas a portar bem. Diz que tu
és instável e que temos de te trazer debaixo de olho.
- Instável?! Mas que porra é essa? Eu? Instável?! Não
tenho dado provas de...
- Entende-te com ele e não me chateies...
Bone bebeu o resto da bebida.
- Bem... até breve, Maureen.
- Adeus, Bone.
Bone saiu de cabeça baixa.
Logo que a porta se fechou, Maureen correu para o
televisor. Ligou-o no canal 27. O filme já ia a meio.
Maureen sorriu e acabou a sua bebida. Em seguida,
tirou cuidadosamente o olho de vidro e meteu-o dentro
de uma taça com um líquido esbranquiçado.
------------
(do livro de Ed B. Silverman)
Monday, March 13, 2006
27. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
7.
Com cinco dias de violentíssimo regime, Bronco
Vale parecia mais novo. Deixara de fumar e de beber.
As refeições eram boas e a horas certas. Algumas
rugas tinham desaparecido e o nariz parecia menos
afilado. Estava, pois, um amor de rapaz.
A visitante habitual fazia-lhe companhia.
- Sairei amanhã, sra. Marlowe...
- Chame-me linda.
- ...e continuarei a investigação.
- Não quer desistir?
- Agora não. Agora vai ela começar... parece-me.
De olhos baixos, como se informasse que, em
miúda, tivera bexigas benignas, Linda disse:
- Edgar... o meu falecido marido, deixou-me um
razoável seguro de vida, além da pensão da Polícia
e tenho ainda parte da herança de minha mãe.
- Está a propor-me um dote?- disse com fina ironia.
- Estou só a dizer-lhe que... já liquidei a conta do
hospital.
- Bem... essa conta será descontada nos meus
honorários.
- Acho bem. Virei então buscá-lo amanhã.
- Claro que tem carro?
- Claro que tenho. Bem... adeus, senhor Vale.
- Adeus Linda. Até amanhã.
Quando a sra. Marlowe chegou à porta, esta abriu-se
de repente. O'Hara, com a sua barulhenta perna de
pau, entrou friorento. Afastou-se, segurando
gentilmente a porta para ela sair, o que Linda fez
baixando a cabeça num mudo agradecimento.
O'Hara, esfregando a mão natural na artificial, para
a aquecer, desabafou:
- Bela mulher, caramba!
- Hum-Hum.
- Quem é? Posso saber?
- Pode. Uma linda mulher.
- Tá bem, Bronco.
E sentou-se na cadeira onde estivera Linda Marlowe,
colocando a perna de pau num dos ferros da cama.
Acendeu um cigarro (depois daquelas manobras
todas que já explicámos) apesar de um pequeno
desenho informar ser proibido fumar.
- Então? - perguntou no tom mais grave da sua voz.
- Mais um dia e pronto, O'Hara.
E ficaram a olhar um para o outro. Até que o
deficiente físico, de pála posta, perguntou:
- Olhe lá. O que é que você descobriu?
- Hum... não sei ainda. Só sei que você está a deitar
a cinza sobre a camiza e para o chão.
- Pois estou. Palre lá.
- Passo aqui horas a pensar e não chego a lado
nenhum. Mas diga-me uma coisa, O'Hara,
ou melhor, duas. Primeira: por que não foi você a
aparecer no "Quatro de Espadas", quando o Ralph
explodiu? Segunda: a sua visita é oficial ou veio
ver-me porque é muito meu amigo e etc.?
- Primeira resposta: eu não estava na Central.
Encontrava-me em Brooklin, com uma merda
qualquer. Um gajo que matou a mulher, batendo-lhe
com a cabeça na panela da comida... aliás, eu teria
feito o mesmo... quando vi a porcaria do guisado de
carneiro que ela lhe fez... Só soube do Ralph pelo
rádio do carro. Quanto à minha visita, pode crer que
não é oficial, nem por estar preso de amores por si.
- Então, se não é oficial, vem cá tirar uns quantos
nabos da púcara.
- Não. Estou de férias e... sou curioso. Chega-lhe a
explicação ou quer com mais molho?
- Ok. Não há razão para lhe esconder o pouco que
obtive. Comecei por percorrer todos os bares e
dancings com a fotografia de Edgar Marlowe.
- Porquê ele e não outro qualquer?
- Isso é cá comigo.
- Tá bem. Mas nós já tínhamos feito tudo isso.
- Pois já, mas com métodos diferentes e com tipos
muito menos capazes que eu.
- Sempre admirei os gajos modestos, Bronco. Até
me vêm as lágrimas aos olhos.
- Ao olho, quer você dizer.
O'Hara rosnou:
- A minha vontade era dar-lhe com a perna de pau
num joelho.
- Você, com a idade, está a perder o senso de humor.
O'Hara deitou para o chão a beta, ajeitou a pála e
esperou. Não lhe convinha incompatibilizar-se agora
com o detective.
- Tá bem. Conte lá o resto.
- Bem... ao fim de trinta e tal bares, encontrei no
"Devils'" um barman que reconheceu o agente e que
se lembra duma gaja muito boa que estava com ele.
Não consegue descrevê-la bem, mas notou que tem um
olhar estranhamente fixo. Se ela voltar a aparecer,
telefonará... se já não o fez. Ele deve ter assistido ao
tiro e tudo o mais.
- Estranho, esse tiro. Uma arma antiga, mas segura.
Uma arma de profissional.
O'Hara sabia que tinha de dar alguma coisa em troca.
- Os jornais não a referiram.
- Pois não, Bronco. Uma Magnum .357, com cano de
três polegadas e meia. Muito usada pelos profissionais
do crime, como você, tão bom detective como se diz,
deve saber.
- E não costumam falhar...
- Logo, Bronco, não era um profissional...
Ficaram os dois a pensar até que Bronco disse:
- Oiça, O'Hara. - E fixou-o bem no seu único olho. - O
barman não telefonou, nem mandou recado a ninguém,
enquanto lá estive. Só a Polícia poderia saber... algumas
vezes pareceu-me estar a ser seguido...
- Quer você dizer que foi a Polícia que o baleou?
- Restam-me poucas dúvidas... e a si?
- Curioso...
- Curioso digo eu! Pensava que você iria dar pulos e
chamar-me filho da puta, como já o fez Rockfeller e,
afinal, diz calmamente, "curioso"!
- Oiça, meu rapaz. Não vale a pena contrariar o óbvio.
Quando você sair, quero estar consigo à conversa, em
sua ou em minha casa.
- Você está de férias, velho?
- Já lhe disse que sim. Sabe onde moro?
- Sei... se ainda é aquela mansarda... pior que a minha.
- É a mesma. Espero lá por si amanhã, para jantar.
- Arre! A Polícia enfia-me um balázio no corpo e, em
seguida, o célebre Chefe da Brigada de Homicídios
oferece-me de jantar! Começo a sentir que sou gente
crescida!
- Claro que não é, Bronco. É um puto pouco esperto,
mas sério. É só.
- Obrigado pelo piropo... velho.
- Velho era o preservativo que o seu pai utilizou quando
o concebeu... deve ter-se rasgado e entraram também
alguns fungos...
............
(Ed B. Silverman é também autor do livro Crime Craker.)
Com cinco dias de violentíssimo regime, Bronco
Vale parecia mais novo. Deixara de fumar e de beber.
As refeições eram boas e a horas certas. Algumas
rugas tinham desaparecido e o nariz parecia menos
afilado. Estava, pois, um amor de rapaz.
A visitante habitual fazia-lhe companhia.
- Sairei amanhã, sra. Marlowe...
- Chame-me linda.
- ...e continuarei a investigação.
- Não quer desistir?
- Agora não. Agora vai ela começar... parece-me.
De olhos baixos, como se informasse que, em
miúda, tivera bexigas benignas, Linda disse:
- Edgar... o meu falecido marido, deixou-me um
razoável seguro de vida, além da pensão da Polícia
e tenho ainda parte da herança de minha mãe.
- Está a propor-me um dote?- disse com fina ironia.
- Estou só a dizer-lhe que... já liquidei a conta do
hospital.
- Bem... essa conta será descontada nos meus
honorários.
- Acho bem. Virei então buscá-lo amanhã.
- Claro que tem carro?
- Claro que tenho. Bem... adeus, senhor Vale.
- Adeus Linda. Até amanhã.
Quando a sra. Marlowe chegou à porta, esta abriu-se
de repente. O'Hara, com a sua barulhenta perna de
pau, entrou friorento. Afastou-se, segurando
gentilmente a porta para ela sair, o que Linda fez
baixando a cabeça num mudo agradecimento.
O'Hara, esfregando a mão natural na artificial, para
a aquecer, desabafou:
- Bela mulher, caramba!
- Hum-Hum.
- Quem é? Posso saber?
- Pode. Uma linda mulher.
- Tá bem, Bronco.
E sentou-se na cadeira onde estivera Linda Marlowe,
colocando a perna de pau num dos ferros da cama.
Acendeu um cigarro (depois daquelas manobras
todas que já explicámos) apesar de um pequeno
desenho informar ser proibido fumar.
- Então? - perguntou no tom mais grave da sua voz.
- Mais um dia e pronto, O'Hara.
E ficaram a olhar um para o outro. Até que o
deficiente físico, de pála posta, perguntou:
- Olhe lá. O que é que você descobriu?
- Hum... não sei ainda. Só sei que você está a deitar
a cinza sobre a camiza e para o chão.
- Pois estou. Palre lá.
- Passo aqui horas a pensar e não chego a lado
nenhum. Mas diga-me uma coisa, O'Hara,
ou melhor, duas. Primeira: por que não foi você a
aparecer no "Quatro de Espadas", quando o Ralph
explodiu? Segunda: a sua visita é oficial ou veio
ver-me porque é muito meu amigo e etc.?
- Primeira resposta: eu não estava na Central.
Encontrava-me em Brooklin, com uma merda
qualquer. Um gajo que matou a mulher, batendo-lhe
com a cabeça na panela da comida... aliás, eu teria
feito o mesmo... quando vi a porcaria do guisado de
carneiro que ela lhe fez... Só soube do Ralph pelo
rádio do carro. Quanto à minha visita, pode crer que
não é oficial, nem por estar preso de amores por si.
- Então, se não é oficial, vem cá tirar uns quantos
nabos da púcara.
- Não. Estou de férias e... sou curioso. Chega-lhe a
explicação ou quer com mais molho?
- Ok. Não há razão para lhe esconder o pouco que
obtive. Comecei por percorrer todos os bares e
dancings com a fotografia de Edgar Marlowe.
- Porquê ele e não outro qualquer?
- Isso é cá comigo.
- Tá bem. Mas nós já tínhamos feito tudo isso.
- Pois já, mas com métodos diferentes e com tipos
muito menos capazes que eu.
- Sempre admirei os gajos modestos, Bronco. Até
me vêm as lágrimas aos olhos.
- Ao olho, quer você dizer.
O'Hara rosnou:
- A minha vontade era dar-lhe com a perna de pau
num joelho.
- Você, com a idade, está a perder o senso de humor.
O'Hara deitou para o chão a beta, ajeitou a pála e
esperou. Não lhe convinha incompatibilizar-se agora
com o detective.
- Tá bem. Conte lá o resto.
- Bem... ao fim de trinta e tal bares, encontrei no
"Devils'" um barman que reconheceu o agente e que
se lembra duma gaja muito boa que estava com ele.
Não consegue descrevê-la bem, mas notou que tem um
olhar estranhamente fixo. Se ela voltar a aparecer,
telefonará... se já não o fez. Ele deve ter assistido ao
tiro e tudo o mais.
- Estranho, esse tiro. Uma arma antiga, mas segura.
Uma arma de profissional.
O'Hara sabia que tinha de dar alguma coisa em troca.
- Os jornais não a referiram.
- Pois não, Bronco. Uma Magnum .357, com cano de
três polegadas e meia. Muito usada pelos profissionais
do crime, como você, tão bom detective como se diz,
deve saber.
- E não costumam falhar...
- Logo, Bronco, não era um profissional...
Ficaram os dois a pensar até que Bronco disse:
- Oiça, O'Hara. - E fixou-o bem no seu único olho. - O
barman não telefonou, nem mandou recado a ninguém,
enquanto lá estive. Só a Polícia poderia saber... algumas
vezes pareceu-me estar a ser seguido...
- Quer você dizer que foi a Polícia que o baleou?
- Restam-me poucas dúvidas... e a si?
- Curioso...
- Curioso digo eu! Pensava que você iria dar pulos e
chamar-me filho da puta, como já o fez Rockfeller e,
afinal, diz calmamente, "curioso"!
- Oiça, meu rapaz. Não vale a pena contrariar o óbvio.
Quando você sair, quero estar consigo à conversa, em
sua ou em minha casa.
- Você está de férias, velho?
- Já lhe disse que sim. Sabe onde moro?
- Sei... se ainda é aquela mansarda... pior que a minha.
- É a mesma. Espero lá por si amanhã, para jantar.
- Arre! A Polícia enfia-me um balázio no corpo e, em
seguida, o célebre Chefe da Brigada de Homicídios
oferece-me de jantar! Começo a sentir que sou gente
crescida!
- Claro que não é, Bronco. É um puto pouco esperto,
mas sério. É só.
- Obrigado pelo piropo... velho.
- Velho era o preservativo que o seu pai utilizou quando
o concebeu... deve ter-se rasgado e entraram também
alguns fungos...
............
(Ed B. Silverman é também autor do livro Crime Craker.)
27. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
7.
Com cinco dias de violentíssimo regime, Bronco
Vale parecia mais novo. Deixara de fumar e de beber.
As refeições eram boas e a horas certas. Algumas
rugas tinham desaparecido e o nariz parecia menos
afilado. Estava, pois, um amor de rapaz.
A visitante habitual fazia-lhe companhia.
- Sairei amanhã, sra. Marlowe...
- Chame-me linda.
- ...e continuarei a investigação.
- Não quer desistir?
- Agora não. Agora vai ela começar... parece-me.
De olhos baixos, como se informasse que, em
miúda, tivera bexigas benignas, Linda disse:
- Edgar... o meu falecido marido, deixou-me um
razoável seguro de vida, além da pensão da Polícia
e tenho ainda parte da herança de minha mãe.
- Está a propor-me um dote?- disse com fina ironia.
- Estou só a dizer-lhe que... já liquidei a conta do
hospital.
- Bem... essa conta será descontada nos meus
honorários.
- Acho bem. Virei então buscá-lo amanhã.
- Claro que tem carro?
- Claro que tenho. Bem... adeus, senhor Vale.
- Adeus Linda. Até amanhã.
Quando a sra. Marlowe chegou à porta, esta abriu-se
de repente. O'Hara, com a sua barulhenta perna de
pau, entrou friorento. Afastou-se, segurando
gentilmente a porta para ela sair, o que Linda fez
baixando a cabeça num mudo agradecimento.
O'Hara, esfregando a mão natural na artificial, para
a aquecer, desabafou:
- Bela mulher, caramba!
- Hum-Hum.
- Quem é? Posso saber?
- Pode. Uma linda mulher.
- Tá bem, Bronco.
E sentou-se na cadeira onde estivera Linda Marlowe,
colocando a perna de pau num dos ferros da cama.
Acendeu um cigarro (depois daquelas manobras
todas que já explicámos) apesar de um pequeno
desenho informar ser proibido fumar.
- Então? - perguntou no tom mais grave da sua voz.
- Mais um dia e pronto, O'Hara.
E ficaram a olhar um para o outro. Até que o
deficiente físico, de pála posta, perguntou:
- Olhe lá. O que é que você descobriu?
- Hum... não sei ainda. Só sei que você está a deitar
a cinza sobre a camiza e para o chão.
- Pois estou. Palre lá.
- Passo aqui horas a pensar e não chego a lado
nenhum. Mas diga-me uma coisa, O'Hara,
ou melhor, duas. Primeira: por que não foi você a
aparecer no "Quatro de Espadas", quando o Ralph
explodiu? Segunda: a sua visita é oficial ou veio
ver-me porque é muito meu amigo e etc.?
- Primeira resposta: eu não estava na Central.
Encontrava-me em Brooklin, com uma merda
qualquer. Um gajo que matou a mulher, batendo-lhe
com a cabeça na panela da comida... aliás, eu teria
feito o mesmo... quando vi a porcaria do guisado de
carneiro que ela lhe fez... Só soube do Ralph pelo
rádio do carro. Quanto à minha visita, pode crer que
não é oficial, nem por estar preso de amores por si.
- Então, se não é oficial, vem cá tirar uns quantos
nabos da púcara.
- Não. Estou de férias e... sou curioso. Chega-lhe a
explicação ou quer com mais molho?
- Ok. Não há razão para lhe esconder o pouco que
obtive. Comecei por percorrer todos os bares e
dancings com a fotografia de Edgar Marlowe.
- Porquê ele e não outro qualquer?
- Isso é cá comigo.
- Tá bem. Mas nós já tínhamos feito tudo isso.
- Pois já, mas com métodos diferentes e com tipos
muito menos capazes que eu.
- Sempre admirei os gajos modestos, Bronco. Até
me vêm as lágrimas aos olhos.
- Ao olho, quer você dizer.
O'Hara rosnou:
- A minha vontade era dar-lhe com a perna de pau
num joelho.
- Você, com a idade, está a perder o senso de humor.
O'Hara deitou para o chão a beta, ajeitou a pála e
esperou. Não lhe convinha incompatibilizar-se agora
com o detective.
- Tá bem. Conte lá o resto.
- Bem... ao fim de trinta e tal bares, encontrei no
"Devils'" um barman que reconheceu o agente e que
se lembra duma gaja muito boa que estava com ele.
Não consegue descrevê-la bem, mas notou que tem um
olhar estranhamente fixo. Se ela voltar a aparecer,
telefonará... se já não o fez. Ele deve ter assistido ao
tiro e tudo o mais.
- Estranho, esse tiro. Uma arma antiga, mas segura.
Uma arma de profissional.
O'Hara sabia que tinha de dar alguma coisa em troca.
- Os jornais não a referiram.
- Pois não, Bronco. Uma Magnum .357, com cano de
três polegadas e meia. Muito usada pelos profissionais
do crime, como você, tão bom detective como se diz,
deve saber.
- E não costumam falhar...
- Logo, Bronco, não era um profissional...
Ficaram os dois a pensar até que Bronco disse:
- Oiça, O'Hara. - E fixou-o bem no seu único olho. - O
barman não telefonou, nem mandou recado a ninguém,
enquanto lá estive. Só a Polícia poderia saber... algumas
vezes pareceu-me estar a ser seguido...
- Quer você dizer que foi a Polícia que o baleou?
- Restam-me poucas dúvidas... e a si?
- Curioso...
- Curioso digo eu! Pensava que você iria dar pulos e
chamar-me filho da puta, como já o fez Rockfeller e,
afinal, diz calmamente, "curioso"!
- Oiça, meu rapaz. Não vale a pena contrariar o óbvio.
Quando você sair, quero estar consigo à conversa, em
sua ou em minha casa.
- Você está de férias, velho?
- Já lhe disse que sim. Sabe onde moro?
- Sei... se ainda é aquela mansarda... pior que a minha.
- É a mesma. Espero lá por si amanhã, para jantar.
- Arre! A Polícia enfia-me um balázio no corpo e, em
seguida, o célebre Chefe da Brigada de Homicídios
oferece-me de jantar! Começo a sentir que sou gente
crescida!
- Claro que não é, Bronco. É um puto pouco esperto,
mas sério. É só.
- Obrigado pelo piropo... velho.
- Velho era o preservativo que o seu pai utilizou quando
o concebeu... deve ter-se rasgado e entraram também
alguns fungos...
............
(Ed B. Silverman é também autor do livro Crime Craker.)
Com cinco dias de violentíssimo regime, Bronco
Vale parecia mais novo. Deixara de fumar e de beber.
As refeições eram boas e a horas certas. Algumas
rugas tinham desaparecido e o nariz parecia menos
afilado. Estava, pois, um amor de rapaz.
A visitante habitual fazia-lhe companhia.
- Sairei amanhã, sra. Marlowe...
- Chame-me linda.
- ...e continuarei a investigação.
- Não quer desistir?
- Agora não. Agora vai ela começar... parece-me.
De olhos baixos, como se informasse que, em
miúda, tivera bexigas benignas, Linda disse:
- Edgar... o meu falecido marido, deixou-me um
razoável seguro de vida, além da pensão da Polícia
e tenho ainda parte da herança de minha mãe.
- Está a propor-me um dote?- disse com fina ironia.
- Estou só a dizer-lhe que... já liquidei a conta do
hospital.
- Bem... essa conta será descontada nos meus
honorários.
- Acho bem. Virei então buscá-lo amanhã.
- Claro que tem carro?
- Claro que tenho. Bem... adeus, senhor Vale.
- Adeus Linda. Até amanhã.
Quando a sra. Marlowe chegou à porta, esta abriu-se
de repente. O'Hara, com a sua barulhenta perna de
pau, entrou friorento. Afastou-se, segurando
gentilmente a porta para ela sair, o que Linda fez
baixando a cabeça num mudo agradecimento.
O'Hara, esfregando a mão natural na artificial, para
a aquecer, desabafou:
- Bela mulher, caramba!
- Hum-Hum.
- Quem é? Posso saber?
- Pode. Uma linda mulher.
- Tá bem, Bronco.
E sentou-se na cadeira onde estivera Linda Marlowe,
colocando a perna de pau num dos ferros da cama.
Acendeu um cigarro (depois daquelas manobras
todas que já explicámos) apesar de um pequeno
desenho informar ser proibido fumar.
- Então? - perguntou no tom mais grave da sua voz.
- Mais um dia e pronto, O'Hara.
E ficaram a olhar um para o outro. Até que o
deficiente físico, de pála posta, perguntou:
- Olhe lá. O que é que você descobriu?
- Hum... não sei ainda. Só sei que você está a deitar
a cinza sobre a camiza e para o chão.
- Pois estou. Palre lá.
- Passo aqui horas a pensar e não chego a lado
nenhum. Mas diga-me uma coisa, O'Hara,
ou melhor, duas. Primeira: por que não foi você a
aparecer no "Quatro de Espadas", quando o Ralph
explodiu? Segunda: a sua visita é oficial ou veio
ver-me porque é muito meu amigo e etc.?
- Primeira resposta: eu não estava na Central.
Encontrava-me em Brooklin, com uma merda
qualquer. Um gajo que matou a mulher, batendo-lhe
com a cabeça na panela da comida... aliás, eu teria
feito o mesmo... quando vi a porcaria do guisado de
carneiro que ela lhe fez... Só soube do Ralph pelo
rádio do carro. Quanto à minha visita, pode crer que
não é oficial, nem por estar preso de amores por si.
- Então, se não é oficial, vem cá tirar uns quantos
nabos da púcara.
- Não. Estou de férias e... sou curioso. Chega-lhe a
explicação ou quer com mais molho?
- Ok. Não há razão para lhe esconder o pouco que
obtive. Comecei por percorrer todos os bares e
dancings com a fotografia de Edgar Marlowe.
- Porquê ele e não outro qualquer?
- Isso é cá comigo.
- Tá bem. Mas nós já tínhamos feito tudo isso.
- Pois já, mas com métodos diferentes e com tipos
muito menos capazes que eu.
- Sempre admirei os gajos modestos, Bronco. Até
me vêm as lágrimas aos olhos.
- Ao olho, quer você dizer.
O'Hara rosnou:
- A minha vontade era dar-lhe com a perna de pau
num joelho.
- Você, com a idade, está a perder o senso de humor.
O'Hara deitou para o chão a beta, ajeitou a pála e
esperou. Não lhe convinha incompatibilizar-se agora
com o detective.
- Tá bem. Conte lá o resto.
- Bem... ao fim de trinta e tal bares, encontrei no
"Devils'" um barman que reconheceu o agente e que
se lembra duma gaja muito boa que estava com ele.
Não consegue descrevê-la bem, mas notou que tem um
olhar estranhamente fixo. Se ela voltar a aparecer,
telefonará... se já não o fez. Ele deve ter assistido ao
tiro e tudo o mais.
- Estranho, esse tiro. Uma arma antiga, mas segura.
Uma arma de profissional.
O'Hara sabia que tinha de dar alguma coisa em troca.
- Os jornais não a referiram.
- Pois não, Bronco. Uma Magnum .357, com cano de
três polegadas e meia. Muito usada pelos profissionais
do crime, como você, tão bom detective como se diz,
deve saber.
- E não costumam falhar...
- Logo, Bronco, não era um profissional...
Ficaram os dois a pensar até que Bronco disse:
- Oiça, O'Hara. - E fixou-o bem no seu único olho. - O
barman não telefonou, nem mandou recado a ninguém,
enquanto lá estive. Só a Polícia poderia saber... algumas
vezes pareceu-me estar a ser seguido...
- Quer você dizer que foi a Polícia que o baleou?
- Restam-me poucas dúvidas... e a si?
- Curioso...
- Curioso digo eu! Pensava que você iria dar pulos e
chamar-me filho da puta, como já o fez Rockfeller e,
afinal, diz calmamente, "curioso"!
- Oiça, meu rapaz. Não vale a pena contrariar o óbvio.
Quando você sair, quero estar consigo à conversa, em
sua ou em minha casa.
- Você está de férias, velho?
- Já lhe disse que sim. Sabe onde moro?
- Sei... se ainda é aquela mansarda... pior que a minha.
- É a mesma. Espero lá por si amanhã, para jantar.
- Arre! A Polícia enfia-me um balázio no corpo e, em
seguida, o célebre Chefe da Brigada de Homicídios
oferece-me de jantar! Começo a sentir que sou gente
crescida!
- Claro que não é, Bronco. É um puto pouco esperto,
mas sério. É só.
- Obrigado pelo piropo... velho.
- Velho era o preservativo que o seu pai utilizou quando
o concebeu... deve ter-se rasgado e entraram também
alguns fungos...
............
(Ed B. Silverman é também autor do livro Crime Craker.)
Friday, March 10, 2006
26. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
24.
- Entre! - rugiu Rockefeller.
O'Hara cumprimentou e sentou-se. Estava com um ar
abatido e preocupado. O olho são estava cansado, com
olheiras. A mão artificial, a enluvada, pendia-lhe ao
longo do corpo. Parecia, se possível, vinte anos mais
velho, ou seja, parecia guardar dentro de si 128 anos.
Como sempre, colocou a perna de pau sobre a secretária
do Inspector-Chefe, apesar do desagrado deste. E disse:
- Bronco Vale descobriu qualquer coisa.
- Mande-mo já cá.
- Está ainda no hospital.
- Mas o que é que ele descobriu, O'Hara?
- Ele também não deve saber... é apenas um indício, não
chega a ser uma pista. Vou hoje falar com ele.
E ficaram os dois calados a ruminar coisas. O olhinho de
O'Hara rolava como a bola de uma roleta.
- O que há mais, O'Hara? Desembuche! Você está com
mau especto.
- Que puta de piada! - disse baixinho. E depois acendeu
um cigarro, pensando nas palavras que utilizaria, como
iria abordar assunto tão delicado. Mas, acender um
cigarro para O'Hara era divertidíssimo. Com a mão boa,
colocava o maço entre os dedos falsos da mão má.
Apertava os dedos da mão má, com os dedos da mão
boa. Depois, com os dedos da mão boa, retirava um
cigarro que colocava entre os lábios e, depois, procurava
o isqueiro com a mão boa e acendia-o. Só então retirava,
com a mão boa, o maço de cigarros da mão má.
Repetimos: divertidíssimo.
- Passei este fim-de-semana nos arquivos. Pedi ao
Morris para ficar comigo. Como é solteiro como eu,
passámos praticamente 48 horas a mexer em velhos
papéis, alguns processos, consoante nos íamos
lembrando. Sem qualquer ideia prévia, percebe?
- Percebo.
- Ah sim?! Óptimo. Entre muitos, folheámos o processo
"Tiphany's". Tem 13 anos de poeira e de esquecimento
em cima. Lembra-se dele?
- Vagamente. As pérolas, não é? Ainda era adjunto do
Chefe da Brigada de Homicídios.
- Pois.
O'Hara apagou o cigarro e acendeu outro, repetindo o
ritual, enquanto o Inspector-Chefe aproveitava a
oportunidade para soltar uns ventos traseiros,
suavemente. Andava assim há uns dias. Nervos, talvez.
- Desembuche, homem!
- Já lá vai. Deve estar lembrado de que foi um
espectacular roubo de jóias, copiando um esquema
praticado em França e já esquecido, principalmente
aqui. Esse esquema correu alguns países, se não estou
em erro. Vou abrir a janela...
- Deixe-se estar onde está... bem... Metia um general,
parece-me...
O'Hara deixou a cinza cair sobre a camisa, fechou o olho
bom e coordenou as ideias.
- Metia. Um general com motorista fardado.
- Conte lá... - e lá foi mais um vento...
- Numa manhã, um general, fardado a rigor, cheio de
medalhas, apeou-se frente ao "Tiphany's", entrou e,
dizendo que a sua filha única ia casar dentro de duas
horas, queria comprar um colar de pérolas como
prenda de casamento. Escolheu e adquiriu o mais caro.
Depois descobriu que, ao mudar de farda, não trouxera
o livro de cheques. O gerente propôs mandar-lhe o colar
a casa. Aqui o general diz não valer a pena, chama o
motorista, um cabo aviador, e dá-lhe instruções para
que lhe traga o livro de cheques e entregue à esposa o
estojo com o colar de pérolas. O gerente aceitou de bom
grado a solução e o grande carro negro seguiu com o colar
e o cabo aviador.
- Estou a ver.
- Pois. O general aguarda, passeando de um lado para o
outro, fumando um grosso charuto. Ar cagão, claro,
como o de todos os generais. Cerca de dez minutos
depois, um carro da polícia com a música a tocar, pára
ruidosamente à porta da joalharia. Um inspector e dois
detectives, de pistola em punho, prontas a disparar,
entram pelo estabelecimento adentro, atiram-se ao
general, batem-lhe desalmadamente e algemam-no.
O general estava uma lástima: cheio de sangue e todo
rasgado. O chefe do grupo explica ao então
esparvoado gerente que a Interpol já andava há muito
atrás do gajo, por roubos idênticos efectuados noutros
países e que uma segunda brigada procedia à prisão
dos outros pilantras. Que à tarde o gerente poderia ir à
Central levantar o colar e apresentar queixa. E sairam
todos, com o general a reboque, cheio de sangue e...
até hoje. Pertencia tudo à quadrilha.
- Foi isso exactamente. Lembro-me agora. Foi isso, foi.
- E nunca foram apanhados. O processo continua aberto.
- Mas para que está p'raí a contar-me essa história toda,
O'Hara? Farto de histórias estou eu.
- Bem... Nos autos e declarações, chamou-nos a atenção,
a mim e ao Morris, a descrição do detective que entrou
em primeiro lugar, de arma na mão. Descrição feita pelo
gerente. Trouxe uma cópia. Quer ouvir?
- Tá bem. Se tem de ser... se acha que é importante...
- É importante, porra!
- Tá bem. Leia lá isso.
- "Um metro e setenta e cinco. Mais magro do que gordo.
Entre 21 e 25 anos, mas alguns cabelos brancos", talvez
pintados. "Zigomas salientes e, o dedo que premia o
gatilho, ligeiramente torto." Os gerentes, principalmente
os de joalharias, têm de ser psicólogos e possuir um
grande poder de observação. Até memória fotográfica.
O'Hara calou-se, olhando para Rockfeller. Durante a sua
lengalenga, o Inspector tinha passado de vermelho lagosta
ao cinzento concha de amêijoa.
- Porra para isto! - exclamou baixinho. E O'Hara disse:
- A ficha de Bone diz que nasceu há 36 anos... e pouco se
sabe da sua vida entre, digamos, os 18 e os 22... a não ser
ter tido um romance com uma miúda de 17 ou 18 anos
anos, ainda prima afastada.
- Como raio soube você isso?
- Pelo Morris, que tem memória elefantina e que se
recorda de alguns comentários que mais tarde os colegas
faziam na messe, quando Bone ainda estagiava.
Rockfeller estava verdadeiramente surpreso. Pegou
distraído no cachimbo. mas pô-lo de parte. Acendeu então
um cigarro. Lentamente. Como convinha a um inspector-
-geral, fosse de que merda fosse. Bufou, para cima, o fumo
e perguntou:
- Qual é a sua proposta, O'Hara?
- Considero este assunto muito sério. Proponho-lhe que me
autorize, oficialmente, a entrar de férias. Sozinho começarei
a investigar este assunto.
Rockfeller pensou. Considerou. Reconsiderou.
- De acordo. Mas tome cuidado... não rebente também você
por aí. Mas, se tiver que rebentar, que não seja nas nossas
instalações. Como sabe, foi tudo pintado há dois meses.
- Pegue lá o meu requerimento. Peço-lhe apenas que me
afecte um carro com condutor, mas não o do Comando.
- Isso nem parece seu, O'Hara! É muito arriscado. Férias
com carro da Polícia?! Nem pensar! Acho melhor você
alugar um carro com condutor, claro. Aí numa agência
qualquer, mas que não tenha negócios connosco. Depois
arranjarei maneira da tesouraria pagar a conta...
- A sua ideia é, realmente, melhor. Muito melhor do que
a minha. Bem, vou indo.
- Vá dando notícias. Boas férias, O'Hara...
Mancando, O?hara saiu do gabinete, não se despediu de
ninguém e foi até à rua, fumando calmamente.
Saiu pela porta lateral. Junto ao passeio esperava-o um
carro particular com motorista sem farda. Cor preta.
O'Hara entrou.
- Acha bem, senhor? - perguntou o jovem motorista.
- Muito bem. É este mesmo o tipo de carro que eu tinha
ontem pedido à agência. - E sorriu com o olhinho bom
cheio de lágrimas de gozo e de malícia.
(do livro de Ed B. Silverman)
-----------------------
- Entre! - rugiu Rockefeller.
O'Hara cumprimentou e sentou-se. Estava com um ar
abatido e preocupado. O olho são estava cansado, com
olheiras. A mão artificial, a enluvada, pendia-lhe ao
longo do corpo. Parecia, se possível, vinte anos mais
velho, ou seja, parecia guardar dentro de si 128 anos.
Como sempre, colocou a perna de pau sobre a secretária
do Inspector-Chefe, apesar do desagrado deste. E disse:
- Bronco Vale descobriu qualquer coisa.
- Mande-mo já cá.
- Está ainda no hospital.
- Mas o que é que ele descobriu, O'Hara?
- Ele também não deve saber... é apenas um indício, não
chega a ser uma pista. Vou hoje falar com ele.
E ficaram os dois calados a ruminar coisas. O olhinho de
O'Hara rolava como a bola de uma roleta.
- O que há mais, O'Hara? Desembuche! Você está com
mau especto.
- Que puta de piada! - disse baixinho. E depois acendeu
um cigarro, pensando nas palavras que utilizaria, como
iria abordar assunto tão delicado. Mas, acender um
cigarro para O'Hara era divertidíssimo. Com a mão boa,
colocava o maço entre os dedos falsos da mão má.
Apertava os dedos da mão má, com os dedos da mão
boa. Depois, com os dedos da mão boa, retirava um
cigarro que colocava entre os lábios e, depois, procurava
o isqueiro com a mão boa e acendia-o. Só então retirava,
com a mão boa, o maço de cigarros da mão má.
Repetimos: divertidíssimo.
- Passei este fim-de-semana nos arquivos. Pedi ao
Morris para ficar comigo. Como é solteiro como eu,
passámos praticamente 48 horas a mexer em velhos
papéis, alguns processos, consoante nos íamos
lembrando. Sem qualquer ideia prévia, percebe?
- Percebo.
- Ah sim?! Óptimo. Entre muitos, folheámos o processo
"Tiphany's". Tem 13 anos de poeira e de esquecimento
em cima. Lembra-se dele?
- Vagamente. As pérolas, não é? Ainda era adjunto do
Chefe da Brigada de Homicídios.
- Pois.
O'Hara apagou o cigarro e acendeu outro, repetindo o
ritual, enquanto o Inspector-Chefe aproveitava a
oportunidade para soltar uns ventos traseiros,
suavemente. Andava assim há uns dias. Nervos, talvez.
- Desembuche, homem!
- Já lá vai. Deve estar lembrado de que foi um
espectacular roubo de jóias, copiando um esquema
praticado em França e já esquecido, principalmente
aqui. Esse esquema correu alguns países, se não estou
em erro. Vou abrir a janela...
- Deixe-se estar onde está... bem... Metia um general,
parece-me...
O'Hara deixou a cinza cair sobre a camisa, fechou o olho
bom e coordenou as ideias.
- Metia. Um general com motorista fardado.
- Conte lá... - e lá foi mais um vento...
- Numa manhã, um general, fardado a rigor, cheio de
medalhas, apeou-se frente ao "Tiphany's", entrou e,
dizendo que a sua filha única ia casar dentro de duas
horas, queria comprar um colar de pérolas como
prenda de casamento. Escolheu e adquiriu o mais caro.
Depois descobriu que, ao mudar de farda, não trouxera
o livro de cheques. O gerente propôs mandar-lhe o colar
a casa. Aqui o general diz não valer a pena, chama o
motorista, um cabo aviador, e dá-lhe instruções para
que lhe traga o livro de cheques e entregue à esposa o
estojo com o colar de pérolas. O gerente aceitou de bom
grado a solução e o grande carro negro seguiu com o colar
e o cabo aviador.
- Estou a ver.
- Pois. O general aguarda, passeando de um lado para o
outro, fumando um grosso charuto. Ar cagão, claro,
como o de todos os generais. Cerca de dez minutos
depois, um carro da polícia com a música a tocar, pára
ruidosamente à porta da joalharia. Um inspector e dois
detectives, de pistola em punho, prontas a disparar,
entram pelo estabelecimento adentro, atiram-se ao
general, batem-lhe desalmadamente e algemam-no.
O general estava uma lástima: cheio de sangue e todo
rasgado. O chefe do grupo explica ao então
esparvoado gerente que a Interpol já andava há muito
atrás do gajo, por roubos idênticos efectuados noutros
países e que uma segunda brigada procedia à prisão
dos outros pilantras. Que à tarde o gerente poderia ir à
Central levantar o colar e apresentar queixa. E sairam
todos, com o general a reboque, cheio de sangue e...
até hoje. Pertencia tudo à quadrilha.
- Foi isso exactamente. Lembro-me agora. Foi isso, foi.
- E nunca foram apanhados. O processo continua aberto.
- Mas para que está p'raí a contar-me essa história toda,
O'Hara? Farto de histórias estou eu.
- Bem... Nos autos e declarações, chamou-nos a atenção,
a mim e ao Morris, a descrição do detective que entrou
em primeiro lugar, de arma na mão. Descrição feita pelo
gerente. Trouxe uma cópia. Quer ouvir?
- Tá bem. Se tem de ser... se acha que é importante...
- É importante, porra!
- Tá bem. Leia lá isso.
- "Um metro e setenta e cinco. Mais magro do que gordo.
Entre 21 e 25 anos, mas alguns cabelos brancos", talvez
pintados. "Zigomas salientes e, o dedo que premia o
gatilho, ligeiramente torto." Os gerentes, principalmente
os de joalharias, têm de ser psicólogos e possuir um
grande poder de observação. Até memória fotográfica.
O'Hara calou-se, olhando para Rockfeller. Durante a sua
lengalenga, o Inspector tinha passado de vermelho lagosta
ao cinzento concha de amêijoa.
- Porra para isto! - exclamou baixinho. E O'Hara disse:
- A ficha de Bone diz que nasceu há 36 anos... e pouco se
sabe da sua vida entre, digamos, os 18 e os 22... a não ser
ter tido um romance com uma miúda de 17 ou 18 anos
anos, ainda prima afastada.
- Como raio soube você isso?
- Pelo Morris, que tem memória elefantina e que se
recorda de alguns comentários que mais tarde os colegas
faziam na messe, quando Bone ainda estagiava.
Rockfeller estava verdadeiramente surpreso. Pegou
distraído no cachimbo. mas pô-lo de parte. Acendeu então
um cigarro. Lentamente. Como convinha a um inspector-
-geral, fosse de que merda fosse. Bufou, para cima, o fumo
e perguntou:
- Qual é a sua proposta, O'Hara?
- Considero este assunto muito sério. Proponho-lhe que me
autorize, oficialmente, a entrar de férias. Sozinho começarei
a investigar este assunto.
Rockfeller pensou. Considerou. Reconsiderou.
- De acordo. Mas tome cuidado... não rebente também você
por aí. Mas, se tiver que rebentar, que não seja nas nossas
instalações. Como sabe, foi tudo pintado há dois meses.
- Pegue lá o meu requerimento. Peço-lhe apenas que me
afecte um carro com condutor, mas não o do Comando.
- Isso nem parece seu, O'Hara! É muito arriscado. Férias
com carro da Polícia?! Nem pensar! Acho melhor você
alugar um carro com condutor, claro. Aí numa agência
qualquer, mas que não tenha negócios connosco. Depois
arranjarei maneira da tesouraria pagar a conta...
- A sua ideia é, realmente, melhor. Muito melhor do que
a minha. Bem, vou indo.
- Vá dando notícias. Boas férias, O'Hara...
Mancando, O?hara saiu do gabinete, não se despediu de
ninguém e foi até à rua, fumando calmamente.
Saiu pela porta lateral. Junto ao passeio esperava-o um
carro particular com motorista sem farda. Cor preta.
O'Hara entrou.
- Acha bem, senhor? - perguntou o jovem motorista.
- Muito bem. É este mesmo o tipo de carro que eu tinha
ontem pedido à agência. - E sorriu com o olhinho bom
cheio de lágrimas de gozo e de malícia.
(do livro de Ed B. Silverman)
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Wednesday, March 08, 2006
23. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
5.
Num pequeno quarto do St. James Hospital, Bronco Vale, com
o ombro direito ligado, dormitava. Sentada junto ao leito, a
sra. Marlowe lia o Wall Street Journal.
Eram cinco da tarde e o quarto estava superaquecido.
Bronco abriu um olho e depois o outro, focando.
- Olá... - disse debilmente.
- Boa tarde, senhor Bronco Vale - e dobrou calmamente o
jornal.
- Para quem? - perguntou ele.
- Dói-lhe muito?
- Só quando me rio, segundo a velha piada.
- Pelos vistos, descobriu alguma coisa...
- Hum... acho que sim... mas é uma ponta muito frágil. Talvez
dê e talvez não.
Ela ajeitou-lhe a almofada e a roupa da cama, sem que
houvesse necessidade, claro. Estava tudo direitinho, como em
qualquer clínica de telenovela ou de série.
- Já estava quase a desistir... se não fosse o tiro, já teria
abandonado este caso...
A sra. Marlowe voltou a sentar-se. Estava um espanto. Bem
vestida e bem pintada. Apenas apresentava um ar cansado
ou, talvez, apreensivo.
- Senhor Bronco.
- Sim?
- Desculpe... ter-lhe chamado covarde.
Via-se claramente que ela fazia um esforço pois pedir desculpa,
não era bem de seu natural feitio. Ela mandava - não pedia
desculpa, ou por favor. Feitios de certas mulheres, o que
havemos de fazer? Mas agora actuava de maneira diferente.
Bronco sorriu levemente, tentando ser irónico:
- Chamou? Não me recordo. Devo ainda estar sob o efeito da
anestesia.
Ela pegou na carteira, no jornal e levantou-se, olhando-o quase
com piedade - ou seria já ternura?
- Precisa de alguma coisa?
- Não. O dr. Kildere não me deixa fumar, nem beber. Dentro de
dois ou três dias sairei... estou cheio de calmantes... adeus sra.
Marlowe... não me traga flores; basta-me a sua presença...
E fingiu adormecer, sorrindo interiormente. Aquela frase tinha
sido dita há muito tempo por Charles Boyer.
Linda ficou ainda uns segundos olhando-o. Depois saiu
elegantemente, com um lúbrico olho de Bronco pousado
interesseiramente no seu traseiro.
O tal olho lúbrico de Bronco estava enorme, parecia o de um
robalo ao se aperceber da presença de um tubarão.
(do livro do o mesmo nome de Ed B. Silverman)
--------------------
Num pequeno quarto do St. James Hospital, Bronco Vale, com
o ombro direito ligado, dormitava. Sentada junto ao leito, a
sra. Marlowe lia o Wall Street Journal.
Eram cinco da tarde e o quarto estava superaquecido.
Bronco abriu um olho e depois o outro, focando.
- Olá... - disse debilmente.
- Boa tarde, senhor Bronco Vale - e dobrou calmamente o
jornal.
- Para quem? - perguntou ele.
- Dói-lhe muito?
- Só quando me rio, segundo a velha piada.
- Pelos vistos, descobriu alguma coisa...
- Hum... acho que sim... mas é uma ponta muito frágil. Talvez
dê e talvez não.
Ela ajeitou-lhe a almofada e a roupa da cama, sem que
houvesse necessidade, claro. Estava tudo direitinho, como em
qualquer clínica de telenovela ou de série.
- Já estava quase a desistir... se não fosse o tiro, já teria
abandonado este caso...
A sra. Marlowe voltou a sentar-se. Estava um espanto. Bem
vestida e bem pintada. Apenas apresentava um ar cansado
ou, talvez, apreensivo.
- Senhor Bronco.
- Sim?
- Desculpe... ter-lhe chamado covarde.
Via-se claramente que ela fazia um esforço pois pedir desculpa,
não era bem de seu natural feitio. Ela mandava - não pedia
desculpa, ou por favor. Feitios de certas mulheres, o que
havemos de fazer? Mas agora actuava de maneira diferente.
Bronco sorriu levemente, tentando ser irónico:
- Chamou? Não me recordo. Devo ainda estar sob o efeito da
anestesia.
Ela pegou na carteira, no jornal e levantou-se, olhando-o quase
com piedade - ou seria já ternura?
- Precisa de alguma coisa?
- Não. O dr. Kildere não me deixa fumar, nem beber. Dentro de
dois ou três dias sairei... estou cheio de calmantes... adeus sra.
Marlowe... não me traga flores; basta-me a sua presença...
E fingiu adormecer, sorrindo interiormente. Aquela frase tinha
sido dita há muito tempo por Charles Boyer.
Linda ficou ainda uns segundos olhando-o. Depois saiu
elegantemente, com um lúbrico olho de Bronco pousado
interesseiramente no seu traseiro.
O tal olho lúbrico de Bronco estava enorme, parecia o de um
robalo ao se aperceber da presença de um tubarão.
(do livro do o mesmo nome de Ed B. Silverman)
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Tuesday, March 07, 2006
O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)
4.
O pequeno bar-dancing "Devil's" estava praticamente às escuras,
pelo menos para quem vinha do exterior. Faltavam ainda duas
horas para abrir.
Tal como se vê nos filmes e se lê nos livros bem escritos
(ao contrário deste), ao fundo, um barman magro e com aspecto
hepático, limpava copos cuidadosamente. Apesar de algumas
janelas estarem abertas, os cheiros a tabaco, perfume, álcool e
suor mantinham-se no ar - ou fariam já parte das cortinas e dos
móveis. Distante, ouviam-se ruídos de águas, risos e cantorias -
a equipa da higiene procedia à limpeza dos sanitários.
Bronco Vale aproximou-se do balcão, deu o clássico jeito à aba do
chapéu (Henry Fonda) e disse, em tom coloquial:
- Olá, Mike.
- Chamo-me Joe, chui.
- Tenho um grande amigo que se chama Mike, é barman e já foi
chui.
Joe continuou a esfregar vigorosa e conscienciosamente o copo,
como se estivesse só e imerso nos seus mais profundos
pensamentos e como se aquele copo fosse o Santo Graal.
Ainda delicado, Bronco perguntou:
- Ainda é cedo pra me servir um uísque?
- Um chui não bebe em serviço.
- Precisamente por isso é que quero beber um uísque.
- Se eu até dou água aos cães...
E serviu-lhe um uísque, rigorosamente aviado, acrescentando
imediatamente:
- Dois e vinte... sem a fanfarra a tocar.
Bronco colocou três notas de um dólar no balcão e bebeu um
gole.
- Guarde o troco.
- Para quê?! Já comprei ontem um par de atacadores...
O detective colocou um nota de cinco sobre as primeiras. Joe
arrumou na garrafa, mirando, através do espelho, aquele
pindérico e avaliando quanto lhe poderia sacar.
Bronco tirou de um bolso interior uma fotografia e colocou-a
sobre as notas.
- Entre 17 de Novembro e 24 de Dezembro, não veio cá este
gajo?
- Já foi há muito tempo e a minha memória é fraquíssima,
chui. No último 25 de Dezembro, os vizinhos tiveram de me
apresentar a minha mãe... já não me lembrava dela, veja lá!
A própria mãe! Uma santa.
O detective bebeu o resto do uísque, guardou a foto e, quando
ia a pegar no dinheiro, Joe disse entredentes:
- Deixa ficar os carcanhóis.
Bronco conteve o gesto retirante.
- Isso. Esse gajo veio cá por esses dias... Fixei-o porque me
pediu uma água mineral... há cada um... uma água mineral!
Aqui! Neste antro de putas!
- Sozinho?
- Com uma borboleta que... espere! Ela é que quis a água
mineral... ele pediu um "uísque fraquinho". E não repetiram.
Bons clientes... como os chuis...
- Como era ela?
- Com seis e oitenta o taxímetro pára.
Bronco tirou outra nota de cinco, colocando-a sobre as irmãs.
Joe fê-las desaparecer num bolso do avental a uma velocidade
estraordinária, e disse, figindo rebuscar na memória:
- Uma mulher boa, pr'aí com trintas e tais, mas parecendo
vinte e tais. Boa de peito. Alourada... Hum... nunca mais cá
voltaram... Não devem ter gostado do estilo dos nossos
cinzeiros.
- Ela tinha alguma particularidade? Bexigas? Dedos a menos,
falsas mamas?
Joe recordou-se. Os olhos brilharam-lhe com a recordação.
Observou Bronco: admitia poder ainda sacar-lhe mais cinco ou
mesmo dez. Mas percebeu que não sacaria mais nada. Bronco,
apesar de tudo, também percebera.
- Bem...
- Se a informação for boa, levas mais cinco...
- Só vendo.
- Só ouvindo.
- Tá bem. Eles estiveram aqui encontados ao balcão. Não se
sentaram. Parecia um encontro para combinar qualquer coisa,
um programa ou coisa assim. Por isso é que me lembro... se a
minha mãe estivesse sempre aqui encostada ao balcão,
lembrar-me -ia dela sempre...
O detective acendeu um cigarro e deu a entender que se ia
embora. E o Joe a tentar mais cinco:
- A gaja olhava para mim de uma maneira estranha - disse
depressa -, uma coisa esquisita... um olhar um tanto fixo.
Devia estar já pedrada...
Levou mais cinco dólares.
- Ok, Joe. Se ela cá voltar, telefona-me. Tens aqui o meu
número. Uma das grandes ficará à tua espera.
- Ok, chui.
- Há quanto tempo saiste da grelha?
- Hum... dois anos... droga... Nada de importância... um
descuido. Agora estou limpo, chui.
- Ok, Joe.
Bronco saiu do "Devil's" e levou imediatamente um tiro no
ombro direito (1).
(1) - Na correspondência já citada, o autor nota, na
primeira parte desta sua novela, a falta de tiros e, em
contrapartida, excesso de sangue. Julgamos que tenta,
a partir de agora, equilibrar estes dois elementos. (N.E.)
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O pequeno bar-dancing "Devil's" estava praticamente às escuras,
pelo menos para quem vinha do exterior. Faltavam ainda duas
horas para abrir.
Tal como se vê nos filmes e se lê nos livros bem escritos
(ao contrário deste), ao fundo, um barman magro e com aspecto
hepático, limpava copos cuidadosamente. Apesar de algumas
janelas estarem abertas, os cheiros a tabaco, perfume, álcool e
suor mantinham-se no ar - ou fariam já parte das cortinas e dos
móveis. Distante, ouviam-se ruídos de águas, risos e cantorias -
a equipa da higiene procedia à limpeza dos sanitários.
Bronco Vale aproximou-se do balcão, deu o clássico jeito à aba do
chapéu (Henry Fonda) e disse, em tom coloquial:
- Olá, Mike.
- Chamo-me Joe, chui.
- Tenho um grande amigo que se chama Mike, é barman e já foi
chui.
Joe continuou a esfregar vigorosa e conscienciosamente o copo,
como se estivesse só e imerso nos seus mais profundos
pensamentos e como se aquele copo fosse o Santo Graal.
Ainda delicado, Bronco perguntou:
- Ainda é cedo pra me servir um uísque?
- Um chui não bebe em serviço.
- Precisamente por isso é que quero beber um uísque.
- Se eu até dou água aos cães...
E serviu-lhe um uísque, rigorosamente aviado, acrescentando
imediatamente:
- Dois e vinte... sem a fanfarra a tocar.
Bronco colocou três notas de um dólar no balcão e bebeu um
gole.
- Guarde o troco.
- Para quê?! Já comprei ontem um par de atacadores...
O detective colocou um nota de cinco sobre as primeiras. Joe
arrumou na garrafa, mirando, através do espelho, aquele
pindérico e avaliando quanto lhe poderia sacar.
Bronco tirou de um bolso interior uma fotografia e colocou-a
sobre as notas.
- Entre 17 de Novembro e 24 de Dezembro, não veio cá este
gajo?
- Já foi há muito tempo e a minha memória é fraquíssima,
chui. No último 25 de Dezembro, os vizinhos tiveram de me
apresentar a minha mãe... já não me lembrava dela, veja lá!
A própria mãe! Uma santa.
O detective bebeu o resto do uísque, guardou a foto e, quando
ia a pegar no dinheiro, Joe disse entredentes:
- Deixa ficar os carcanhóis.
Bronco conteve o gesto retirante.
- Isso. Esse gajo veio cá por esses dias... Fixei-o porque me
pediu uma água mineral... há cada um... uma água mineral!
Aqui! Neste antro de putas!
- Sozinho?
- Com uma borboleta que... espere! Ela é que quis a água
mineral... ele pediu um "uísque fraquinho". E não repetiram.
Bons clientes... como os chuis...
- Como era ela?
- Com seis e oitenta o taxímetro pára.
Bronco tirou outra nota de cinco, colocando-a sobre as irmãs.
Joe fê-las desaparecer num bolso do avental a uma velocidade
estraordinária, e disse, figindo rebuscar na memória:
- Uma mulher boa, pr'aí com trintas e tais, mas parecendo
vinte e tais. Boa de peito. Alourada... Hum... nunca mais cá
voltaram... Não devem ter gostado do estilo dos nossos
cinzeiros.
- Ela tinha alguma particularidade? Bexigas? Dedos a menos,
falsas mamas?
Joe recordou-se. Os olhos brilharam-lhe com a recordação.
Observou Bronco: admitia poder ainda sacar-lhe mais cinco ou
mesmo dez. Mas percebeu que não sacaria mais nada. Bronco,
apesar de tudo, também percebera.
- Bem...
- Se a informação for boa, levas mais cinco...
- Só vendo.
- Só ouvindo.
- Tá bem. Eles estiveram aqui encontados ao balcão. Não se
sentaram. Parecia um encontro para combinar qualquer coisa,
um programa ou coisa assim. Por isso é que me lembro... se a
minha mãe estivesse sempre aqui encostada ao balcão,
lembrar-me -ia dela sempre...
O detective acendeu um cigarro e deu a entender que se ia
embora. E o Joe a tentar mais cinco:
- A gaja olhava para mim de uma maneira estranha - disse
depressa -, uma coisa esquisita... um olhar um tanto fixo.
Devia estar já pedrada...
Levou mais cinco dólares.
- Ok, Joe. Se ela cá voltar, telefona-me. Tens aqui o meu
número. Uma das grandes ficará à tua espera.
- Ok, chui.
- Há quanto tempo saiste da grelha?
- Hum... dois anos... droga... Nada de importância... um
descuido. Agora estou limpo, chui.
- Ok, Joe.
Bronco saiu do "Devil's" e levou imediatamente um tiro no
ombro direito (1).
(1) - Na correspondência já citada, o autor nota, na
primeira parte desta sua novela, a falta de tiros e, em
contrapartida, excesso de sangue. Julgamos que tenta,
a partir de agora, equilibrar estes dois elementos. (N.E.)
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Wednesday, March 01, 2006
21. Bronco Vale
Há já um grupo de fãs do detective particular Bronco Vale.
Alguns e-mails fazem disso prova. Até decisão em contrário,
vou continuar com esta novela de Ed B. Silverman deixando
para mais tarde outras leituras de livros.
3.
Quando os agentes e a equipa técnica se foram embora, Bronco,
Mike e o Inspector-Chefe Rockfeller sentaram-se a uma mesa,
à entrada da porta, onde o cheiro era quase nulo.
Nessa manhã, Rockfeller estava impecavelmente vestido (calça,
casaco, colete, cachecol, chapéu e sobretudo). Parecia um
abastado banqueiro ou um advogado com êxito. Encontrava-se
na fase "Perry Mason", cuja série tinha recomeçado apenas há
três dias (Canal 75, do qual "espremendo o telecomando, sai
sangue"). Curiosamente, identificava-se mais com o advogado
do que com o promotor e lambia o ecrã quando aparecia a Della
Street. Coisas...
- Como poderá chamar-se? - perguntou o Inspector - "O Caso
da Bomba Humana" ou "O Caso da Mulher Com Um Olho de
Vidro" ou, ainda, "O Caso da Loira Explosiva"?
- Ela é loira? - perguntou Mike, que gostava muito das loiras.
- Ainda não sei bem... trabalhamos neste caso noite e dia. Bem...
conte lá a sua história, Bronco. (Suspirou.) Estes trabalhos
seriam muito mais interessantes com uma miúda engraçada
como secretária.
- Para que quer uma miúda engraçada se já tem o O'Hara? -
disse Mike, atrasando a conversa.
- Bem... se você não fosse um herói da guerra e não se tivesse
reformado como major, mandava-o à merda.
- Pronto, Inspector. Já não se pode dizer uma piada? O que quer
tomar? Por conta da casa, claro.
- Pode dar-me um gin fizz cortado.
- Mas que raio é isso? Ácido sulfúrico com uma gema de ovo e
muito gelo... para cortar?...
- Não. Deixe. Continue, Bronco.
- Continuo o quê?
- Disse-lhe para contar a sua história, não disse?
- Disse. Mas depois começou a falar de miúdas e de bebidas...
- Comece já. Ou prefere na Central?
- Bem... Não tenho muito para contar. Telefonei ao Ralph e
pedi-lhe que viesse aqui tomar um copo comigo. Dei-lhe meia
hora. Quando cheguei, estava ele nos lavabos e, depois, pum!
Mike viu-se na obrigação de esclarecer:
- Ele chegou, Inspector-Chefe, pediu um uísque e...
- ...duplo...
- ...pois, uísque duplo e foi para os lavabos, abrindo a braguilha,
não foi assim. Quem pediu um uísque duplo foste tu, Bronco. O
Ralph pediu um uísque simples.
Bronco Vale condescendeu:
- Deve ser isso.
O Inspector-Chefe rosnou:
- Siga!
- Onde é que eu estava?
- Estavas na braguilha - disse Bronco.
- Eu? Na braguilha? Que queres insinuar, sacaninha?
- Alto aí!!! - Berrou Rockfeller. - Conte lá a sua versão e
deixe-se de merdas!
- Calma, Chefe. Não é caso para tanta irritação. Foi assim:
o Ralph chegou, pediu um uísque simples - ouviste, Bronco? -.
e foi para os lavabos abrindo a braguilha. Cerca de dois
minutos depois entrou o Bronco. Olhe: tenho ali a sua carteira
e partes do relógio. Uma recordação para a viúva, claro. Que
eu tenho um bar mas não sou um impedernido; tenho coração
como...
- Cale-se! - rosnou outra vez o Inspector-Chefe, que olhou
fixamente para Bronco Vale e perguntou muito devagar,
devagariiiinho...
- Que queria você do Ralph?
- Eu? Bem, não é segredo. Queria combinar com ele irmos
amanhã bem cedinho, apanhar flores silvestres e oferecê-las
à Igreja de São Bernardo, para a missa do meio-dia.
Mike Hook bateu com os ganchos, dando palmas metálicas,
interessantíssimas.
- Você sempre me saiu um bom filho da puta!
- Cuidado, Inspector. Olhe que tenho aqui uma testemunha.
- Quem, eu?! Não ouvi nem vi nada! - disse candidamente
Mike Hook, enquanto coçava o interior de uma orelha com
um dos ganchos.
Bronco, só para chatear, continuou:
- Não acredita mas, quando eu era puto, o padre da Igreja de
S. Bernardo, o Reverendo Bing Crosby, dava-me bolinhos...
- Ai dava?!... E ao Ralph também, claro...
- Sabe, Inspector, o Ralph sempre teve mais jeito do que eu
para colher flores e organizar os ramos. Veja lá que até sabia
o nome delas todas.
- E agora explodiu! - disse Mike, só para dizer qualquer coisa.
- Muito bem, Bronco. Já percebi. Mas se o encontro a
atrapalhar, por entre as pernas dos meus homens, terá um
enterro de primeira classe. Saco-lhe a licença mas, antes,
havemos de ter uma interessante conversa...
E saiu, deixando Bronco e Mike olhando tristemente para os
copos vazios.
- Bem, Bronco. Tenho de arranjar uns gajos para limpar e
reparar tudo isto. Uns dias fechado. O que vale é que tenho
seguro.
- E eu tenho e ir falar com a Verónica.
- Ela já sabe?
- Não, mas com o meu telefonema de há pouco deve ter
ficado desconfiada. Tenho de lá ir antes da Polícia.
- Pois é: tens de lá ir antes da Polícia.
- Mike.
- Hum...
- Por que não quiseste servir de testemunha quando ele me
chamou de filho da puta e começou a fazer chantagem?
- Tenho um bar, como vês. Tenho um bar, cujo dono, eu,
fecha às horas que entende e recebe os clientes que quer.
A Polícia nunca gostou da tropa e vice-versa, em qualquer
parte do mundo. E, mais vingativo que um elefante, só um
chui.
- Bem, Mike, trás lá a garrafa. Não, duas. Acabei de poupar
100 dólares.
- Bronco...
- Hum...
- O que é que o Ralph andava a investigar?
- Tu já sabes, malandro. Queria ser herói, descobrir tudo e
sair com o retrato nos jornais... essas merdas... e por conta
própria.
- E tu, Bronco?
- Eu o quê?
- Andas com algum caso?
- Agora tenho um caso para resolver: quem irá apanhar as
flores para a Igreja de S. Bernardo e para o meu querido
Reverendo Bing Crosby?
- E se em vez de ires apanhar flores, fosses apanhar no cu?
- Neste país já não se pode ser crente e amigo da sua
paróquia... que porra esta!
Pegou no saco com as duas garrafas, acenou a Mike e saiu.
-----------
Alguns e-mails fazem disso prova. Até decisão em contrário,
vou continuar com esta novela de Ed B. Silverman deixando
para mais tarde outras leituras de livros.
3.
Quando os agentes e a equipa técnica se foram embora, Bronco,
Mike e o Inspector-Chefe Rockfeller sentaram-se a uma mesa,
à entrada da porta, onde o cheiro era quase nulo.
Nessa manhã, Rockfeller estava impecavelmente vestido (calça,
casaco, colete, cachecol, chapéu e sobretudo). Parecia um
abastado banqueiro ou um advogado com êxito. Encontrava-se
na fase "Perry Mason", cuja série tinha recomeçado apenas há
três dias (Canal 75, do qual "espremendo o telecomando, sai
sangue"). Curiosamente, identificava-se mais com o advogado
do que com o promotor e lambia o ecrã quando aparecia a Della
Street. Coisas...
- Como poderá chamar-se? - perguntou o Inspector - "O Caso
da Bomba Humana" ou "O Caso da Mulher Com Um Olho de
Vidro" ou, ainda, "O Caso da Loira Explosiva"?
- Ela é loira? - perguntou Mike, que gostava muito das loiras.
- Ainda não sei bem... trabalhamos neste caso noite e dia. Bem...
conte lá a sua história, Bronco. (Suspirou.) Estes trabalhos
seriam muito mais interessantes com uma miúda engraçada
como secretária.
- Para que quer uma miúda engraçada se já tem o O'Hara? -
disse Mike, atrasando a conversa.
- Bem... se você não fosse um herói da guerra e não se tivesse
reformado como major, mandava-o à merda.
- Pronto, Inspector. Já não se pode dizer uma piada? O que quer
tomar? Por conta da casa, claro.
- Pode dar-me um gin fizz cortado.
- Mas que raio é isso? Ácido sulfúrico com uma gema de ovo e
muito gelo... para cortar?...
- Não. Deixe. Continue, Bronco.
- Continuo o quê?
- Disse-lhe para contar a sua história, não disse?
- Disse. Mas depois começou a falar de miúdas e de bebidas...
- Comece já. Ou prefere na Central?
- Bem... Não tenho muito para contar. Telefonei ao Ralph e
pedi-lhe que viesse aqui tomar um copo comigo. Dei-lhe meia
hora. Quando cheguei, estava ele nos lavabos e, depois, pum!
Mike viu-se na obrigação de esclarecer:
- Ele chegou, Inspector-Chefe, pediu um uísque e...
- ...duplo...
- ...pois, uísque duplo e foi para os lavabos, abrindo a braguilha,
não foi assim. Quem pediu um uísque duplo foste tu, Bronco. O
Ralph pediu um uísque simples.
Bronco Vale condescendeu:
- Deve ser isso.
O Inspector-Chefe rosnou:
- Siga!
- Onde é que eu estava?
- Estavas na braguilha - disse Bronco.
- Eu? Na braguilha? Que queres insinuar, sacaninha?
- Alto aí!!! - Berrou Rockfeller. - Conte lá a sua versão e
deixe-se de merdas!
- Calma, Chefe. Não é caso para tanta irritação. Foi assim:
o Ralph chegou, pediu um uísque simples - ouviste, Bronco? -.
e foi para os lavabos abrindo a braguilha. Cerca de dois
minutos depois entrou o Bronco. Olhe: tenho ali a sua carteira
e partes do relógio. Uma recordação para a viúva, claro. Que
eu tenho um bar mas não sou um impedernido; tenho coração
como...
- Cale-se! - rosnou outra vez o Inspector-Chefe, que olhou
fixamente para Bronco Vale e perguntou muito devagar,
devagariiiinho...
- Que queria você do Ralph?
- Eu? Bem, não é segredo. Queria combinar com ele irmos
amanhã bem cedinho, apanhar flores silvestres e oferecê-las
à Igreja de São Bernardo, para a missa do meio-dia.
Mike Hook bateu com os ganchos, dando palmas metálicas,
interessantíssimas.
- Você sempre me saiu um bom filho da puta!
- Cuidado, Inspector. Olhe que tenho aqui uma testemunha.
- Quem, eu?! Não ouvi nem vi nada! - disse candidamente
Mike Hook, enquanto coçava o interior de uma orelha com
um dos ganchos.
Bronco, só para chatear, continuou:
- Não acredita mas, quando eu era puto, o padre da Igreja de
S. Bernardo, o Reverendo Bing Crosby, dava-me bolinhos...
- Ai dava?!... E ao Ralph também, claro...
- Sabe, Inspector, o Ralph sempre teve mais jeito do que eu
para colher flores e organizar os ramos. Veja lá que até sabia
o nome delas todas.
- E agora explodiu! - disse Mike, só para dizer qualquer coisa.
- Muito bem, Bronco. Já percebi. Mas se o encontro a
atrapalhar, por entre as pernas dos meus homens, terá um
enterro de primeira classe. Saco-lhe a licença mas, antes,
havemos de ter uma interessante conversa...
E saiu, deixando Bronco e Mike olhando tristemente para os
copos vazios.
- Bem, Bronco. Tenho de arranjar uns gajos para limpar e
reparar tudo isto. Uns dias fechado. O que vale é que tenho
seguro.
- E eu tenho e ir falar com a Verónica.
- Ela já sabe?
- Não, mas com o meu telefonema de há pouco deve ter
ficado desconfiada. Tenho de lá ir antes da Polícia.
- Pois é: tens de lá ir antes da Polícia.
- Mike.
- Hum...
- Por que não quiseste servir de testemunha quando ele me
chamou de filho da puta e começou a fazer chantagem?
- Tenho um bar, como vês. Tenho um bar, cujo dono, eu,
fecha às horas que entende e recebe os clientes que quer.
A Polícia nunca gostou da tropa e vice-versa, em qualquer
parte do mundo. E, mais vingativo que um elefante, só um
chui.
- Bem, Mike, trás lá a garrafa. Não, duas. Acabei de poupar
100 dólares.
- Bronco...
- Hum...
- O que é que o Ralph andava a investigar?
- Tu já sabes, malandro. Queria ser herói, descobrir tudo e
sair com o retrato nos jornais... essas merdas... e por conta
própria.
- E tu, Bronco?
- Eu o quê?
- Andas com algum caso?
- Agora tenho um caso para resolver: quem irá apanhar as
flores para a Igreja de S. Bernardo e para o meu querido
Reverendo Bing Crosby?
- E se em vez de ires apanhar flores, fosses apanhar no cu?
- Neste país já não se pode ser crente e amigo da sua
paróquia... que porra esta!
Pegou no saco com as duas garrafas, acenou a Mike e saiu.
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