Monday, March 20, 2006

31. O Caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

11.

O dr. Kildaire saía do quarto de Bronco Vale, quando O'Hara,
vindo do elevador, o abordou mancando.
- Como está ele, doutor?
- Está vivo.
- Isso sei eu. E quando poderá sair?
- Amanhã, depois, às onze e um quarto, ao pôr-do-sol, de
madrugada, se quiser! - respondeu o médico em tom brusco.
- Estou a chateá-lo?
O célebre médico respirou fundo e desabafou com violência:
- Está! A merda do seriado da televisão deu cabo da minha
vida! - E, imitando a voz que os adultos fazem parvamente
quando falam com crianças, disse: - O dr. Kildaire é uma
simparia; o dr. Kildaire tem um coração de ouro; o dr.
Kildaire é altamente responsável; o dr. Kildaire estuda cada
caso com uma profundidade catedrática; o dr. Kildaire é
profundamente humano. Que porra!
- Calma aí, homem!
- Está aí dentro uma gaja, no quarto do seu amigo que,
quando me viu, revirou os olhos e ficou em transe. Pegou-me
nas mãos e disse: "Salve-o, dr. Kildaire! Só o senhor o pode
salvar!" Porra! Apenas um tiro na grande rabada.
- Pare lá com isso, homem! Vá a um psiquiatra ou faça uma
cura de repouso, mas não me lixe a cabeça!
O dr. Kildaire acendeu um cigarro (também é proibido fumar
nos corredores do St, James Hospital). Mais calmo, perguntou:
- Afinal, quem é você e o que quer?
- Chamo-me Eugene O'Hara e sou Chefe da Brigada de
Homicídios de Nova Iorque. - e mostrou a identificação.
- E que mais?
- Preciso do Bronco cá fora, rapidamente.
- Quer assistir a uma cena da tal série de televisão? Quer? Dê
atenção.
Compõe a bata e o cabelo, faz um suave sorriso amistoso,
untuoso, tipo cardeal aos domingos e, em voz baixa, culta,
controlada, diz:
- Quanto ao paciente seu amigo, examinei o orifício de
entrada e o de saída. Como sabe, meu caro amigo, o de
saída é maior do que o de entrada. Examinei a força dos
músculos das pernas, a fim de verificar se o nervo ciático
tinha ficado lesionado, se tinha a sensibilidade intacta. E tinha.
Não foi lesada qualquer estrutura nervosa importante. Fiz a
excisão da ferida, exploração e lavagem do trajecto. Coloquei
um dreno seco, de borracha, tipo Penrose. Está com uma
cobertura antibiótica, analgésicos e repouso absoluto. Nada
de cuidado.
- Tá bem, doutor, tá bem! Só falta agora uma enfermeira loira
e muito boa a pedir-lhe, como se falasse com Deus, para ir
com urgência ao segundo piso.
O dr. Kildaire recompõe-se, tornando-se naturalmente chato.
- Amanhã já pode sair. Agora é só descanso. Perdeu muito
pouco sangue; só andou dez metros até aqui. Levar um tiro à
porta de um hospital é altamente conveniente. Sai muito mais
barato.
- Vou lá dentro falar com ele.
- Falar com ele? Tente. Até aqui se ouve o gajo a ressonar.
Não ouve? Além de zarolho, maneta e perneta também é
surdo?
- E se o doutor fosse à merda?!
Kildaire pareceu não ter ouvido. Seguiu pelo corredor
abanando a cabeça.
O'Hara também abanou a cabeça, como quem diz "caso
perdido" e entrou.
A sra. Marlowe, sentada na única cadeira existente no
quarto, fechou o livro e olhou para o visitante. Depois,
suavemente, aveludadamente, alcatifadamente, disse:
- Amanhã já poderemos falar com ele, Chefe O'Hara.
- Então conhece-me?
- Conheço e por isso lhe baixei a cabeça num
cumprimento outro dia. O senhor era o chefe do meu
marido, Edgar Marlowe.
- É a viúva! Ele explodiu, não foi? Não se aproveitou
mesmo nada! Uma porcaria tudo aquilo. Trampa por
todos os lados... como há pessoas que cheiram tão
mal por dentro!
Linda Marlowe deslizou da cadeira e caiu no chão.
Estava desmaiada. Bronco Vale continuava a ressonar
placidamente.
Mancando, O'Hara saiu à procura de uma enfermeira,
virou no corredor à esquerda e deu de caras, de novo,
com o dr. Kildaire que falava, calmo, com uma jovem e
esbelta senhora, a quem pegava bondosamente nas
mãos.
- Sra. Morris. Tudo sairá bem. A operação é muito
simples. Venha ao meu gabinete para lhe explicar tudo
em presença das radiografias.
- Siiim, senhoooor doutoooooor.
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(Da novela de Ed B. Silverman)


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