11. O dr. Kildaire saía do quarto de Bronco Vale, quando O'Hara, vindo do elevador, o abordou mancando. - Como está ele, doutor? - Está vivo. - Isso sei eu. E quando poderá sair? - Amanhã, depois, às onze e um quarto, ao pôr-do-sol, de madrugada, se quiser! - respondeu o médico em tom brusco. - Estou a chateá-lo? O célebre médico respirou fundo e desabafou com violência: - Está! A merda do seriado da televisão deu cabo da minha vida! - E, imitando a voz que os adultos fazem parvamente quando falam com crianças, disse: - O dr. Kildaire é uma simparia; o dr. Kildaire tem um coração de ouro; o dr. Kildaire é altamente responsável; o dr. Kildaire estuda cada caso com uma profundidade catedrática; o dr. Kildaire é profundamente humano. Que porra! - Calma aí, homem! - Está aí dentro uma gaja, no quarto do seu amigo que, quando me viu, revirou os olhos e ficou em transe. Pegou-me nas mãos e disse: "Salve-o, dr. Kildaire! Só o senhor o pode salvar!" Porra! Apenas um tiro na grande rabada. - Pare lá com isso, homem! Vá a um psiquiatra ou faça uma cura de repouso, mas não me lixe a cabeça! O dr. Kildaire acendeu um cigarro (também é proibido fumar nos corredores do St, James Hospital). Mais calmo, perguntou: - Afinal, quem é você e o que quer? - Chamo-me Eugene O'Hara e sou Chefe da Brigada de Homicídios de Nova Iorque. - e mostrou a identificação. - E que mais? - Preciso do Bronco cá fora, rapidamente. - Quer assistir a uma cena da tal série de televisão? Quer? Dê atenção. Compõe a bata e o cabelo, faz um suave sorriso amistoso, untuoso, tipo cardeal aos domingos e, em voz baixa, culta, controlada, diz: - Quanto ao paciente seu amigo, examinei o orifício de entrada e o de saída. Como sabe, meu caro amigo, o de saída é maior do que o de entrada. Examinei a força dos músculos das pernas, a fim de verificar se o nervo ciático tinha ficado lesionado, se tinha a sensibilidade intacta. E tinha. Não foi lesada qualquer estrutura nervosa importante. Fiz a excisão da ferida, exploração e lavagem do trajecto. Coloquei um dreno seco, de borracha, tipo Penrose. Está com uma cobertura antibiótica, analgésicos e repouso absoluto. Nada de cuidado. - Tá bem, doutor, tá bem! Só falta agora uma enfermeira loira e muito boa a pedir-lhe, como se falasse com Deus, para ir com urgência ao segundo piso. O dr. Kildaire recompõe-se, tornando-se naturalmente chato. - Amanhã já pode sair. Agora é só descanso. Perdeu muito pouco sangue; só andou dez metros até aqui. Levar um tiro à porta de um hospital é altamente conveniente. Sai muito mais barato. - Vou lá dentro falar com ele. - Falar com ele? Tente. Até aqui se ouve o gajo a ressonar. Não ouve? Além de zarolho, maneta e perneta também é surdo? - E se o doutor fosse à merda?! Kildaire pareceu não ter ouvido. Seguiu pelo corredor abanando a cabeça. O'Hara também abanou a cabeça, como quem diz "caso perdido" e entrou. A sra. Marlowe, sentada na única cadeira existente no quarto, fechou o livro e olhou para o visitante. Depois, suavemente, aveludadamente, alcatifadamente, disse: - Amanhã já poderemos falar com ele, Chefe O'Hara. - Então conhece-me? - Conheço e por isso lhe baixei a cabeça num cumprimento outro dia. O senhor era o chefe do meu marido, Edgar Marlowe. - É a viúva! Ele explodiu, não foi? Não se aproveitou mesmo nada! Uma porcaria tudo aquilo. Trampa por todos os lados... como há pessoas que cheiram tão mal por dentro! Linda Marlowe deslizou da cadeira e caiu no chão. Estava desmaiada. Bronco Vale continuava a ressonar placidamente. Mancando, O'Hara saiu à procura de uma enfermeira, virou no corredor à esquerda e deu de caras, de novo, com o dr. Kildaire que falava, calmo, com uma jovem e esbelta senhora, a quem pegava bondosamente nas mãos. - Sra. Morris. Tudo sairá bem. A operação é muito simples. Venha ao meu gabinete para lhe explicar tudo em presença das radiografias. - Siiim, senhoooor doutoooooor. --------------------------- (Da novela de Ed B. Silverman) |
Monday, March 20, 2006
31. O Caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
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