Wednesday, March 15, 2006

28. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

8.

Maureen acendeu segundo cigarro. Não estava nervosa,
apenas apreensiva. As mulheres, às vezes, estão também
apreensivas.
Bone, esse sim, estava nervoso e demonstrava-o,
passeando de um lado para o outro e do outro para o um
da pequena sala.
O televisor estava desligado, mas Maureen sabia que
faltavam 15 minutos para que o canal 27 ("Crime, só
crime"), transmitisse uma nova série policial.
- Não deverias ter cá vindo - afirmou Maureen em tom
coloquial.
- Pois não... mas alguns telefonemas podem estar sob
escuta. É coisa que ainda não consegui saber.
- Estão a ir mais longe na investigação?
- Penso que sim... o problema é começar a estar fora da
jogada, não a podendo controlar. Pode ser impressão
minha, mas parece que me afastaram das investigações.
E ficaram a olhar. Umas vezes um para o outro.
Ela: Teria sido ele a encomendar a gargantilha?
Este bastardo nunca prestou para nada. Está
cheio de medo. Teria sido ele? Deveria ter feito
o Hamlet falar. Só faltam dez minutos para o
filme.
- Queres beber alguma coisa?
- Em tua casa?! Nem penses!
Maureen sorriu apenas com a boca, mostrando uma bela
dentadura branca. Autêntica.
- Não tenhas medo, Bone. Não mato os amigos.
- Não estarei cá para confirmar...
- Como queiras, mas senta-te. Vou buscar uma bebida
para mim.
Ela: Já não me serve para nada. Não está dentro
das investigações e está quase a borrar-se de
medo. Um merdas! Por acaso nem fui eu que o
meti nisto... foi o loudo do Boyle Mariote. Estará
com medo de mim e, por isso, encomendou a
gargantilha? Olhem pr'aquela cara...
- Quantos dias faltam, Maureen?
- Bem sabes que dez.
- É muito. Talvez não tenha sido boa ideia a explosão
daqueles vinte agentes e não creio que devamos agora
limpar vinte barmen.
Ele: Ela não pode saber que fui eu... o Hamlet não
iria falar... Esta gaja está nas calmas... E se ela
sabe? Não posso tomar nada cá em casa... pelo
sim pelo sim. Dói-me a barriga... Isto vai acabar
mal... pois... podes beber à vontade... a droga
está contigo... que bom traseiro... continua boa
como milho... Mas se isto der certo, que bela
vida! Milionário... América do Sul... gajas
melhores que ela... e menos esquivas, raios a
partam! E não está nervosa, a filha da puta! Nas
calmas... e eu com uma sede...
- Já te disse para te sentares. Ainda me fazes um buraco
na alcatifa.
- Às vezes este plano assusta-me... é demasiado grande
para mim.
- Desde o início que conheces o esquema. Aceitaste-o e...
também não és novo nisto. Boyle tem tudo pronto e, como
sabes, testado. A morte dos agentes foi necessária e foi,
também, o primeiro passo para o ultimato. Dentro de dez
dias o ultimato seguirá com o primeiro pedido: quinhentos
biliões de dólares, colocados numa conta especial no
estrangeiro. Sabes isto tudo. É só para ouvires falar em
milhões?! Biliões?!
- Maureen... às vezes olho para ti e penso como ficaste
diferente... não eras assim... Não odiavas a humanidade.
Ela ficou parada com o copo na mão. Em segundos
visualizou o filme da sua vida e dos seus desencontros.
Sempre andou desencontrada. Sempre se colocou na fila
que não andava, ou que andava mais devagar que as
outras. Mas sempre deu tudo - o que tinha e o que,
muitas vezes, não tinha. E, com uma certa ironia,
respondeu:
- Fui traída, meu filho. Passa adiante, se tens mais coisas
para dizer. Se não tens, rua.
- Bem... não te irrites.
Ficaram-se mirando sem qualquer amizade.
- Já estão prontos os passaportes?
E ela com enfado:
- Já. Na altura própria serão distribuidos. Boyle tem tudo
pronto. Depois, por cada dia que demorem a pôr o
dinheiro no estrangeiro, explodirá uma pessoa, de
preferência escolhida, seleccionada.
- Vai morrer ainda muita gente.
- Não queres ficar milionário? Alguma vez te importou o
resto? Morrer pessoas... - a ironia de Maureen era
cortante -, tu nunca amaste ninguém na vida. Eu já. Tu
odeias tudo e todos mas, no fundo... Olha, no fundo
somos puros: não temos nem consciência nem moral.
Mas não nasci assim; tu sim. (Lá se foi o filme.) Quantas
pessoas matas por dia com essa porra da droga? Quantos
miúdos drogas por dia? Quantos?
- Bem... eu...
- És um refinado filho da puta! Eu nasci pura e com
esperança na vida. E tu? "Ai vai morrer muita gente".
Que queres dizer? Que te importas? Nasceste deformado
e hás-de morrer deformado.
Bone explodiu, em linguagem, claro.
- Vai à merda mais o discurso! Vamos é localizar o Bronco
Vale. O espertinho está a andar por aí.
- E então, menino Bone?! Ein? Que estás à espera?
Esmaga-o. Ou queres que também seja eu a ir à sua
procura?
Bone levantou-se e voltou a passear de um lado para o
outro. Sentia que Maureen tinha razão e sentia ainda que
deveria dar-lhe motivos de mais confiança nele.
Olharam-se com rancor. Bone gostaria de ter força para
dominar aquela mulher, mas sempre fora um fraco, um
pau-mandado, um merdas. Reconhecia-o, o que já era uma
virtude.
- Onde guardaste o produto?
Maureen olhou-o de viés.
- Não sabes?
- Sei o que me disse o Boyle.
- E o que te disse o Boyle?
Bone pensou que ela estava a gozá-lo, mas não estava.
- Bem... que te tinha dado as garrafas, foi o que ele disse e
que tu saberias muito bem o que fazer delas.
- Pronto. Está respondido, não está?
Bone passeou pela sala, enquanto Maureen bebia e o
observava sem interesse. Maureen resolveu acrescentar
que as tinha todas seladas num local altamente secreto
e que utilizara apenas um pequeno frasco que o Boyle lhe
dera... para as emergências e que, mesmo esse, estava no
cofre de um banco. A quase totalidade, claro...
- Olha: sempre tomo uma bebida, Maureen. Bem... tens
razão. Ando demasiadamente nervoso. Esta história de
ter sido retirado da investigação...
Maureen foi à cozinha e trouxe uma bebida para Bone,
voltando a encher o seu copo.
- Faço-te companhia.
Beberricaram. Outra vez.
Maureen estava agora descontraída.
- Como calculas, Bone, também não é muito agradável
passar aqui os dias e as semanas à espera... o Boyle está
cada vez mais louco... (Vai-te embora!)
- Tens falado com ele?
(Onde é que este gajo quer chegar?)
- Falei ontem. Ou, melhor: foi ele que ligou para mim.
- O que é que ele queria?
Maureen não gostava mesmo de Bone. Era um merdas
que ela detestava. Resolveu então cultivar esse ódio.
- Saber se tu, Bone, te estavas a portar bem. Diz que tu
és instável e que temos de te trazer debaixo de olho.
- Instável?! Mas que porra é essa? Eu? Instável?! Não
tenho dado provas de...
- Entende-te com ele e não me chateies...
Bone bebeu o resto da bebida.
- Bem... até breve, Maureen.
- Adeus, Bone.
Bone saiu de cabeça baixa.
Logo que a porta se fechou, Maureen correu para o
televisor. Ligou-o no canal 27. O filme já ia a meio.
Maureen sorriu e acabou a sua bebida. Em seguida,
tirou cuidadosamente o olho de vidro e meteu-o dentro
de uma taça com um líquido esbranquiçado.
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(do livro de Ed B. Silverman)

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