8.
Maureen acendeu segundo cigarro. Não estava nervosa,
apenas apreensiva. As mulheres, às vezes, estão também
apreensivas.
Bone, esse sim, estava nervoso e demonstrava-o,
passeando de um lado para o outro e do outro para o um
da pequena sala.
O televisor estava desligado, mas Maureen sabia que
faltavam 15 minutos para que o canal 27 ("Crime, só
crime"), transmitisse uma nova série policial.
- Não deverias ter cá vindo - afirmou Maureen em tom
coloquial.
- Pois não... mas alguns telefonemas podem estar sob
escuta. É coisa que ainda não consegui saber.
- Estão a ir mais longe na investigação?
- Penso que sim... o problema é começar a estar fora da
jogada, não a podendo controlar. Pode ser impressão
minha, mas parece que me afastaram das investigações.
E ficaram a olhar. Umas vezes um para o outro.
Ela: Teria sido ele a encomendar a gargantilha?
Este bastardo nunca prestou para nada. Está
cheio de medo. Teria sido ele? Deveria ter feito
o Hamlet falar. Só faltam dez minutos para o
filme.
- Queres beber alguma coisa?
- Em tua casa?! Nem penses!
Maureen sorriu apenas com a boca, mostrando uma bela
dentadura branca. Autêntica.
- Não tenhas medo, Bone. Não mato os amigos.
- Não estarei cá para confirmar...
- Como queiras, mas senta-te. Vou buscar uma bebida
para mim.
Ela: Já não me serve para nada. Não está dentro
das investigações e está quase a borrar-se de
medo. Um merdas! Por acaso nem fui eu que o
meti nisto... foi o loudo do Boyle Mariote. Estará
com medo de mim e, por isso, encomendou a
gargantilha? Olhem pr'aquela cara...
- Quantos dias faltam, Maureen?
- Bem sabes que dez.
- É muito. Talvez não tenha sido boa ideia a explosão
daqueles vinte agentes e não creio que devamos agora
limpar vinte barmen.
Ele: Ela não pode saber que fui eu... o Hamlet não
iria falar... Esta gaja está nas calmas... E se ela
sabe? Não posso tomar nada cá em casa... pelo
sim pelo sim. Dói-me a barriga... Isto vai acabar
mal... pois... podes beber à vontade... a droga
está contigo... que bom traseiro... continua boa
como milho... Mas se isto der certo, que bela
vida! Milionário... América do Sul... gajas
melhores que ela... e menos esquivas, raios a
partam! E não está nervosa, a filha da puta! Nas
calmas... e eu com uma sede...
- Já te disse para te sentares. Ainda me fazes um buraco
na alcatifa.
- Às vezes este plano assusta-me... é demasiado grande
para mim.
- Desde o início que conheces o esquema. Aceitaste-o e...
também não és novo nisto. Boyle tem tudo pronto e, como
sabes, testado. A morte dos agentes foi necessária e foi,
também, o primeiro passo para o ultimato. Dentro de dez
dias o ultimato seguirá com o primeiro pedido: quinhentos
biliões de dólares, colocados numa conta especial no
estrangeiro. Sabes isto tudo. É só para ouvires falar em
milhões?! Biliões?!
- Maureen... às vezes olho para ti e penso como ficaste
diferente... não eras assim... Não odiavas a humanidade.
Ela ficou parada com o copo na mão. Em segundos
visualizou o filme da sua vida e dos seus desencontros.
Sempre andou desencontrada. Sempre se colocou na fila
que não andava, ou que andava mais devagar que as
outras. Mas sempre deu tudo - o que tinha e o que,
muitas vezes, não tinha. E, com uma certa ironia,
respondeu:
- Fui traída, meu filho. Passa adiante, se tens mais coisas
para dizer. Se não tens, rua.
- Bem... não te irrites.
Ficaram-se mirando sem qualquer amizade.
- Já estão prontos os passaportes?
E ela com enfado:
- Já. Na altura própria serão distribuidos. Boyle tem tudo
pronto. Depois, por cada dia que demorem a pôr o
dinheiro no estrangeiro, explodirá uma pessoa, de
preferência escolhida, seleccionada.
- Vai morrer ainda muita gente.
- Não queres ficar milionário? Alguma vez te importou o
resto? Morrer pessoas... - a ironia de Maureen era
cortante -, tu nunca amaste ninguém na vida. Eu já. Tu
odeias tudo e todos mas, no fundo... Olha, no fundo
somos puros: não temos nem consciência nem moral.
Mas não nasci assim; tu sim. (Lá se foi o filme.) Quantas
pessoas matas por dia com essa porra da droga? Quantos
miúdos drogas por dia? Quantos?
- Bem... eu...
- És um refinado filho da puta! Eu nasci pura e com
esperança na vida. E tu? "Ai vai morrer muita gente".
Que queres dizer? Que te importas? Nasceste deformado
e hás-de morrer deformado.
Bone explodiu, em linguagem, claro.
- Vai à merda mais o discurso! Vamos é localizar o Bronco
Vale. O espertinho está a andar por aí.
- E então, menino Bone?! Ein? Que estás à espera?
Esmaga-o. Ou queres que também seja eu a ir à sua
procura?
Bone levantou-se e voltou a passear de um lado para o
outro. Sentia que Maureen tinha razão e sentia ainda que
deveria dar-lhe motivos de mais confiança nele.
Olharam-se com rancor. Bone gostaria de ter força para
dominar aquela mulher, mas sempre fora um fraco, um
pau-mandado, um merdas. Reconhecia-o, o que já era uma
virtude.
- Onde guardaste o produto?
Maureen olhou-o de viés.
- Não sabes?
- Sei o que me disse o Boyle.
- E o que te disse o Boyle?
Bone pensou que ela estava a gozá-lo, mas não estava.
- Bem... que te tinha dado as garrafas, foi o que ele disse e
que tu saberias muito bem o que fazer delas.
- Pronto. Está respondido, não está?
Bone passeou pela sala, enquanto Maureen bebia e o
observava sem interesse. Maureen resolveu acrescentar
que as tinha todas seladas num local altamente secreto
e que utilizara apenas um pequeno frasco que o Boyle lhe
dera... para as emergências e que, mesmo esse, estava no
cofre de um banco. A quase totalidade, claro...
- Olha: sempre tomo uma bebida, Maureen. Bem... tens
razão. Ando demasiadamente nervoso. Esta história de
ter sido retirado da investigação...
Maureen foi à cozinha e trouxe uma bebida para Bone,
voltando a encher o seu copo.
- Faço-te companhia.
Beberricaram. Outra vez.
Maureen estava agora descontraída.
- Como calculas, Bone, também não é muito agradável
passar aqui os dias e as semanas à espera... o Boyle está
cada vez mais louco... (Vai-te embora!)
- Tens falado com ele?
(Onde é que este gajo quer chegar?)
- Falei ontem. Ou, melhor: foi ele que ligou para mim.
- O que é que ele queria?
Maureen não gostava mesmo de Bone. Era um merdas
que ela detestava. Resolveu então cultivar esse ódio.
- Saber se tu, Bone, te estavas a portar bem. Diz que tu
és instável e que temos de te trazer debaixo de olho.
- Instável?! Mas que porra é essa? Eu? Instável?! Não
tenho dado provas de...
- Entende-te com ele e não me chateies...
Bone bebeu o resto da bebida.
- Bem... até breve, Maureen.
- Adeus, Bone.
Bone saiu de cabeça baixa.
Logo que a porta se fechou, Maureen correu para o
televisor. Ligou-o no canal 27. O filme já ia a meio.
Maureen sorriu e acabou a sua bebida. Em seguida,
tirou cuidadosamente o olho de vidro e meteu-o dentro
de uma taça com um líquido esbranquiçado.
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(do livro de Ed B. Silverman)
Wednesday, March 15, 2006
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