Tuesday, March 07, 2006

O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

4.

O pequeno bar-dancing "Devil's" estava praticamente às escuras,
pelo menos para quem vinha do exterior. Faltavam ainda duas
horas para abrir.
Tal como se vê nos filmes e se lê nos livros bem escritos
(ao contrário deste), ao fundo, um barman magro e com aspecto
hepático, limpava copos cuidadosamente. Apesar de algumas
janelas estarem abertas, os cheiros a tabaco, perfume, álcool e
suor mantinham-se no ar - ou fariam já parte das cortinas e dos
móveis. Distante, ouviam-se ruídos de águas, risos e cantorias -
a equipa da higiene procedia à limpeza dos sanitários.
Bronco Vale aproximou-se do balcão, deu o clássico jeito à aba do
chapéu (Henry Fonda) e disse, em tom coloquial:
- Olá, Mike.
- Chamo-me Joe, chui.
- Tenho um grande amigo que se chama Mike, é barman e já foi
chui.
Joe continuou a esfregar vigorosa e conscienciosamente o copo,
como se estivesse só e imerso nos seus mais profundos
pensamentos e como se aquele copo fosse o Santo Graal.
Ainda delicado, Bronco perguntou:
- Ainda é cedo pra me servir um uísque?
- Um chui não bebe em serviço.
- Precisamente por isso é que quero beber um uísque.
- Se eu até dou água aos cães...
E serviu-lhe um uísque, rigorosamente aviado, acrescentando
imediatamente:
- Dois e vinte... sem a fanfarra a tocar.
Bronco colocou três notas de um dólar no balcão e bebeu um
gole.
- Guarde o troco.
- Para quê?! Já comprei ontem um par de atacadores...
O detective colocou um nota de cinco sobre as primeiras. Joe
arrumou na garrafa, mirando, através do espelho, aquele
pindérico e avaliando quanto lhe poderia sacar.
Bronco tirou de um bolso interior uma fotografia e colocou-a
sobre as notas.
- Entre 17 de Novembro e 24 de Dezembro, não veio cá este
gajo?
- Já foi há muito tempo e a minha memória é fraquíssima,
chui. No último 25 de Dezembro, os vizinhos tiveram de me
apresentar a minha mãe... já não me lembrava dela, veja lá!
A própria mãe! Uma santa.
O detective bebeu o resto do uísque, guardou a foto e, quando
ia a pegar no dinheiro, Joe disse entredentes:
- Deixa ficar os carcanhóis.
Bronco conteve o gesto retirante.
- Isso. Esse gajo veio cá por esses dias... Fixei-o porque me
pediu uma água mineral... há cada um... uma água mineral!
Aqui! Neste antro de putas!
- Sozinho?
- Com uma borboleta que... espere! Ela é que quis a água
mineral... ele pediu um "uísque fraquinho". E não repetiram.
Bons clientes... como os chuis...
- Como era ela?
- Com seis e oitenta o taxímetro pára.
Bronco tirou outra nota de cinco, colocando-a sobre as irmãs.
Joe fê-las desaparecer num bolso do avental a uma velocidade
estraordinária, e disse, figindo rebuscar na memória:
- Uma mulher boa, pr'aí com trintas e tais, mas parecendo
vinte e tais. Boa de peito. Alourada... Hum... nunca mais cá
voltaram... Não devem ter gostado do estilo dos nossos
cinzeiros.
- Ela tinha alguma particularidade? Bexigas? Dedos a menos,
falsas mamas?
Joe recordou-se. Os olhos brilharam-lhe com a recordação.
Observou Bronco: admitia poder ainda sacar-lhe mais cinco ou
mesmo dez. Mas percebeu que não sacaria mais nada. Bronco,
apesar de tudo, também percebera.
- Bem...
- Se a informação for boa, levas mais cinco...
- Só vendo.
- Só ouvindo.
- Tá bem. Eles estiveram aqui encontados ao balcão. Não se
sentaram. Parecia um encontro para combinar qualquer coisa,
um programa ou coisa assim. Por isso é que me lembro... se a
minha mãe estivesse sempre aqui encostada ao balcão,
lembrar-me -ia dela sempre...
O detective acendeu um cigarro e deu a entender que se ia
embora. E o Joe a tentar mais cinco:
- A gaja olhava para mim de uma maneira estranha - disse
depressa -, uma coisa esquisita... um olhar um tanto fixo.
Devia estar já pedrada...
Levou mais cinco dólares.
- Ok, Joe. Se ela cá voltar, telefona-me. Tens aqui o meu
número. Uma das grandes ficará à tua espera.
- Ok, chui.
- Há quanto tempo saiste da grelha?
- Hum... dois anos... droga... Nada de importância... um
descuido. Agora estou limpo, chui.
- Ok, Joe.
Bronco saiu do "Devil's" e levou imediatamente um tiro no
ombro direito (1).

(1) - Na correspondência já citada, o autor nota, na
primeira parte desta sua novela, a falta de tiros e, em
contrapartida, excesso de sangue. Julgamos que tenta,
a partir de agora, equilibrar estes dois elementos. (N.E.)

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