12. Mesmo à esquina da 72 com a Nona Avenida, há vários anos que um cego monta a sua banca, com ou sem autorização da Polícia. A neve, na última semana, fizera com que este diligente comerciante em nome individual, só exercesse a actividade por breves períodos, preferencialmente à tarde. Ou por maldade inqualificável do fornecedor ou por pessoal sofisma, entre canetas esferográficas, alguns livros, revistas e atacadores, apresentava bolsas de preservativos, os quais, quando lhe apetecia, anunciava como balões. E vendia. Naquela tarde o Sol conseguiu animar-se um pouco por volta das três pelo que, vinte minutos após este regalo, já o vendedor cego se encontrava instalado, protegendo-se do frio com um amplo gorro soviético e botas de plástico amarelas; como abafo geral, um velho sobretudo militar, que vira já bons tempos e talvez francesas. O'Hara, enterrando a perna de pau na leve camada de neve, já o aguardava, bufando hálito quente para as duas mãos, aquecendo obviamente uma e enferrujando a outra. Pelo sim, pelo não, comprou um "balão" e atirou-se à conversa. - Sou da Polícia. - Já percebi... pelo cheiro. - Hum...Há uma senhora que mora aqui no West Side e que o cumprimenta amistosamente. Fez isso na última quinta-feira. - Há muitas senhoras que me vêm cumprimentar. Sou cego mas não sou impotente. - Lá isso não sei. - Mas sei eu. E tenho muita saída. Os cegos nunca podem fazer prova. Um cego, no tribunal, não pode virar-se para o juiz e afirmar, com o dedo apontando, que foi com aquela dama que dormiu na noite de 35 de Outubro. O advogado largar-se-ia a chorar no ombro do cliente. "Balões!Balões!" - Tá bem, tá bem. - Como é essa senhora? - É alta, dizem que bonita e parece que também tem um problema num olho. - Ah! Essa! "Esferos! Esferos quase dados! Promoção de Inverno: quem comprar duas leva um balão de graça! Ajudem o ceguinho!" - Conheces então a senhora? - Mais ou menos. - Fala-me do "mais". O cego, através dos negros óculos, parecia fixar-se muito para além de O'Hara, como se ele ali não estivesse especado, mesmo à sua frente. O'Hara, por sua vez, estava quase a perder a calma. - Só posso falar do "menos" pois ela não é dessas, nem mãe de qualquer polícia. É estupidamente séria. - E gritou bem alto, mesmo para a cara de O'Hara: "-Ajudem o ceguinho, que nem sabe o que é uma árvore de Natal, coitadinho! Nunca viu um pinheiro aceso... nem apagado. Nunca viu os Reis Magos... nem a estrela. Ajudem o ceguinho!" - Então? - rosnou O'Hara. - Então o quê? - rosnou o cego. - Fala-me dela. - Bem... Conversa às vezes comigo sobre o estado do tempo, uma vez por mês compra-me uma caneta e todas as semanas a TVNews. Quer uma, chui? - Não, obrigado. Quero apenas saber onde mora. - "Ajudem o ceguinho, que não vê a mãe desde que nasceu!" Por acaso sei onde mora, mas não digo. Só à porrada! - Não te vou dar porrada! - É pena. Estou cheio de frio... sempre aquecia. "Balões! Balões para o menino e para a menina! Balões!" Mas para que é que quer a morada?, pode um cego perguntar? "Balões!" O'Hara já estava farto da conversa, mas era fundamental para a investigação que a levasse a bom termo. No cego estava o eixo de toda a investigação. Tentando mostrar-se afável, com a sua voz grave, bordou uma história. - Bem. Encontrámos num cais o cadáver de um velho. Entre a papelada, há referências a uma filha que tem um olho de vidro. Era só para confirmar. Se for ela, tenho de lhe comunicar a triste notícia e pedir-lhe a identificação oficial do morto. - E, nesses papéis - perguntou o cego cheio de gozo -, não havia nada a dizer o nome da família e a morada da filhinha?... - Não... quase nada se lia por causa da água.. estavam todos molhados... Uma avozinha friorenta, com o netinho pela mão, de fugida, apressadinha, pede um balão. O cego dá-lhe uma carteirinha, recebe o dinheiro, passa-o lentamente pelos dedos e guarda-o num bolso do militar sobretudo. - "Que se divirtam muito!" - desejou. - "Ajudem o ceguinho!" Muito bem, sargento. Você tem imaginação, mas só deve convencer a sua mãezinha, na hipótese de a ter conhecido. O'Hara estava gelado e farto. O seu temperamento foi superior a todos os considerandos e interesses. - Ouve, meu cego da merda. Ou me dizes onde ela mora ou vais dentro e tão cedo não venderás a ponta de um corno, percebes? Meto-te numa instituição cá dos meus conhecimentos e nunca mais verás a luz do dia! - Claro, sargento, sou cego! E ficaram os dois mudos, um ruminando vinganças, o outro imaginando como se defenderia do ataque seguinte, - Falas ou não falas? - Oiça, sargento. Digo-lhe o nome e você procura, e acabou-se! Ou, então, vamos para a porrada. Um jornalista meu amigo havia de gostar. Título de primeira página: "Sargento da Polícia bate desalmadamente num pobre cego!". Ein? Que bela manchete! "Canetas!" - És um bom espertalhaço! - Como poderia ser de outra maneira? Já me teriam roubado a mercadoria, o dinheiro e até a bengala, que este mundo só tem ladrões e polícias. Os cegos tentam viver no meio. "Canetas! Canetas!" - Deixa-te de filosofias baratas. Diz lá o nome. - E vai-se embora? Promete que se vai embora? A sua presença prejudica o negócio e a minha reputação. - Vou. - Vai mesmo?! A sério? - Porra, vou! - Então chama-se Maureen. Três blocos para sul. Adeus sargento. - Eu não sou sargento, cego! - E quem lhe disse que eu era cego? Almirante de recolha de corpos? O'Hara atirou a bolsinha dos "balões" para a banca do cego e seguiu em direcção à 96. O cego apanhou facilmente a bolsinha, conferiu se estava intacta e atacou imediatamente a promoção de Inverno. - "Canetas! Dadas! Absolutamente dadas! Ajudem o ceguinho que nem braile sabe!" Isto tudo, continuando a olhar para O'Hara, que se afastava manquejando. ---------------- (de Ed. B. Silverman) |
Saturday, March 25, 2006
32. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
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