Saturday, March 25, 2006

32. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

12.

Mesmo à esquina da 72 com a Nona Avenida, há
vários anos que um cego monta a sua banca, com
ou sem autorização da Polícia.
A neve, na última semana, fizera com que este
diligente comerciante em nome individual, só
exercesse a actividade por breves períodos,
preferencialmente à tarde.
Ou por maldade inqualificável do fornecedor ou
por pessoal sofisma, entre canetas esferográficas,
alguns livros, revistas e atacadores, apresentava
bolsas de preservativos, os quais, quando lhe
apetecia, anunciava como balões. E vendia.
Naquela tarde o Sol conseguiu animar-se um pouco
por volta das três pelo que, vinte minutos após este
regalo, já o vendedor cego se encontrava instalado,
protegendo-se do frio com um amplo gorro soviético
e botas de plástico amarelas; como abafo geral, um
velho sobretudo militar, que vira já bons tempos e
talvez francesas.
O'Hara, enterrando a perna de pau na leve camada de
neve, já o aguardava, bufando hálito quente para as
duas mãos, aquecendo obviamente uma e enferrujando
a outra.
Pelo sim, pelo não, comprou um "balão" e atirou-se
à conversa.
- Sou da Polícia.
- Já percebi... pelo cheiro.
- Hum...Há uma senhora que mora aqui no West Side
e que o cumprimenta amistosamente. Fez isso na
última quinta-feira.
- Há muitas senhoras que me vêm cumprimentar. Sou
cego mas não sou impotente.
- Lá isso não sei.
- Mas sei eu. E tenho muita saída. Os cegos nunca
podem fazer prova. Um cego, no tribunal, não pode
virar-se para o juiz e afirmar, com o dedo apontando,
que foi com aquela dama que dormiu na noite de 35
de Outubro. O advogado largar-se-ia a chorar no
ombro do cliente. "Balões!Balões!"
- Tá bem, tá bem.
- Como é essa senhora?
- É alta, dizem que bonita e parece que também tem
um problema num olho.
- Ah! Essa! "Esferos! Esferos quase dados! Promoção
de Inverno: quem comprar duas leva um balão de
graça! Ajudem o ceguinho!"
- Conheces então a senhora?
- Mais ou menos.
- Fala-me do "mais".
O cego, através dos negros óculos, parecia fixar-se
muito para além de O'Hara, como se ele ali não
estivesse especado, mesmo à sua frente. O'Hara,
por sua vez, estava quase a perder a calma.
- Só posso falar do "menos" pois ela não é dessas,
nem mãe de qualquer polícia. É estupidamente
séria. - E gritou bem alto, mesmo para a cara de
O'Hara: "-Ajudem o ceguinho, que nem sabe o que
é uma árvore de Natal, coitadinho! Nunca viu um
pinheiro aceso... nem apagado. Nunca viu os Reis
Magos... nem a estrela. Ajudem o ceguinho!"
- Então? - rosnou O'Hara.
- Então o quê? - rosnou o cego.
- Fala-me dela.
- Bem... Conversa às vezes comigo sobre o estado
do tempo, uma vez por mês compra-me uma caneta
e todas as semanas a TVNews. Quer uma, chui?
- Não, obrigado. Quero apenas saber onde mora.
- "Ajudem o ceguinho, que não vê a mãe desde que
nasceu!" Por acaso sei onde mora, mas não digo. Só
à porrada!
- Não te vou dar porrada!
- É pena. Estou cheio de frio... sempre aquecia.
"Balões! Balões para o menino e para a menina!
Balões!" Mas para que é que quer a morada?, pode
um cego perguntar? "Balões!"
O'Hara já estava farto da conversa, mas era
fundamental para a investigação que a levasse a bom
termo. No cego estava o eixo de toda a investigação.
Tentando mostrar-se afável, com a sua voz grave,
bordou uma história.
- Bem. Encontrámos num cais o cadáver de um velho.
Entre a papelada, há referências a uma filha que tem
um olho de vidro. Era só para confirmar. Se for ela,
tenho de lhe comunicar a triste notícia e pedir-lhe a
identificação oficial do morto.
- E, nesses papéis - perguntou o cego cheio de gozo -,
não havia nada a dizer o nome da família e a morada
da filhinha?...
- Não... quase nada se lia por causa da água.. estavam
todos molhados...
Uma avozinha friorenta, com o netinho pela mão, de
fugida, apressadinha, pede um balão. O cego dá-lhe
uma carteirinha, recebe o dinheiro, passa-o lentamente
pelos dedos e guarda-o num bolso do militar sobretudo.
- "Que se divirtam muito!" - desejou. - "Ajudem o
ceguinho!" Muito bem, sargento. Você tem imaginação,
mas só deve convencer a sua mãezinha, na hipótese de
a ter conhecido.
O'Hara estava gelado e farto. O seu temperamento foi
superior a todos os considerandos e interesses.
- Ouve, meu cego da merda. Ou me dizes onde ela mora
ou vais dentro e tão cedo não venderás a ponta de um
corno, percebes? Meto-te numa instituição cá dos meus
conhecimentos e nunca mais verás a luz do dia!
- Claro, sargento, sou cego!
E ficaram os dois mudos, um ruminando vinganças, o
outro imaginando como se defenderia do ataque
seguinte,
- Falas ou não falas?
- Oiça, sargento. Digo-lhe o nome e você procura, e
acabou-se! Ou, então, vamos para a porrada. Um
jornalista meu amigo havia de gostar. Título de primeira
página: "Sargento da Polícia bate desalmadamente
num pobre cego!". Ein? Que bela manchete! "Canetas!"
- És um bom espertalhaço!
- Como poderia ser de outra maneira? Já me teriam
roubado a mercadoria, o dinheiro e até a bengala, que
este mundo só tem ladrões e polícias. Os cegos tentam
viver no meio. "Canetas! Canetas!"
- Deixa-te de filosofias baratas. Diz lá o nome.
- E vai-se embora? Promete que se vai embora? A sua
presença prejudica o negócio e a minha reputação.
- Vou.
- Vai mesmo?! A sério?
- Porra, vou!
- Então chama-se Maureen. Três blocos para sul. Adeus
sargento.
- Eu não sou sargento, cego!
- E quem lhe disse que eu era cego? Almirante de
recolha de corpos?
O'Hara atirou a bolsinha dos "balões" para a banca do
cego e seguiu em direcção à 96.
O cego apanhou facilmente a bolsinha, conferiu se
estava intacta e atacou imediatamente a promoção de
Inverno.
- "Canetas! Dadas! Absolutamente dadas! Ajudem o
ceguinho que nem braile sabe!"
Isto tudo, continuando a olhar para O'Hara, que se
afastava manquejando.
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(de Ed. B. Silverman)


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