Friday, March 10, 2006

26. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

24.

- Entre! - rugiu Rockefeller.
O'Hara cumprimentou e sentou-se. Estava com um ar
abatido e preocupado. O olho são estava cansado, com
olheiras. A mão artificial, a enluvada, pendia-lhe ao
longo do corpo. Parecia, se possível, vinte anos mais
velho, ou seja, parecia guardar dentro de si 128 anos.
Como sempre, colocou a perna de pau sobre a secretária
do Inspector-Chefe, apesar do desagrado deste. E disse:
- Bronco Vale descobriu qualquer coisa.
- Mande-mo já cá.
- Está ainda no hospital.
- Mas o que é que ele descobriu, O'Hara?
- Ele também não deve saber... é apenas um indício, não
chega a ser uma pista. Vou hoje falar com ele.
E ficaram os dois calados a ruminar coisas. O olhinho de
O'Hara rolava como a bola de uma roleta.
- O que há mais, O'Hara? Desembuche! Você está com
mau especto.
- Que puta de piada! - disse baixinho. E depois acendeu
um cigarro, pensando nas palavras que utilizaria, como
iria abordar assunto tão delicado. Mas, acender um
cigarro para O'Hara era divertidíssimo. Com a mão boa,
colocava o maço entre os dedos falsos da mão má.
Apertava os dedos da mão má, com os dedos da mão
boa. Depois, com os dedos da mão boa, retirava um
cigarro que colocava entre os lábios e, depois, procurava
o isqueiro com a mão boa e acendia-o. Só então retirava,
com a mão boa, o maço de cigarros da mão má.
Repetimos: divertidíssimo.
- Passei este fim-de-semana nos arquivos. Pedi ao
Morris para ficar comigo. Como é solteiro como eu,
passámos praticamente 48 horas a mexer em velhos
papéis, alguns processos, consoante nos íamos
lembrando. Sem qualquer ideia prévia, percebe?
- Percebo.
- Ah sim?! Óptimo. Entre muitos, folheámos o processo
"Tiphany's". Tem 13 anos de poeira e de esquecimento
em cima. Lembra-se dele?
- Vagamente. As pérolas, não é? Ainda era adjunto do
Chefe da Brigada de Homicídios.
- Pois.
O'Hara apagou o cigarro e acendeu outro, repetindo o
ritual, enquanto o Inspector-Chefe aproveitava a
oportunidade para soltar uns ventos traseiros,
suavemente. Andava assim há uns dias. Nervos, talvez.
- Desembuche, homem!
- Já lá vai. Deve estar lembrado de que foi um
espectacular roubo de jóias, copiando um esquema
praticado em França e já esquecido, principalmente
aqui. Esse esquema correu alguns países, se não estou
em erro. Vou abrir a janela...
- Deixe-se estar onde está... bem... Metia um general,
parece-me...
O'Hara deixou a cinza cair sobre a camisa, fechou o olho
bom e coordenou as ideias.
- Metia. Um general com motorista fardado.
- Conte lá... - e lá foi mais um vento...
- Numa manhã, um general, fardado a rigor, cheio de
medalhas, apeou-se frente ao "Tiphany's", entrou e,
dizendo que a sua filha única ia casar dentro de duas
horas, queria comprar um colar de pérolas como
prenda de casamento. Escolheu e adquiriu o mais caro.
Depois descobriu que, ao mudar de farda, não trouxera
o livro de cheques. O gerente propôs mandar-lhe o colar
a casa. Aqui o general diz não valer a pena, chama o
motorista, um cabo aviador, e dá-lhe instruções para
que lhe traga o livro de cheques e entregue à esposa o
estojo com o colar de pérolas. O gerente aceitou de bom
grado a solução e o grande carro negro seguiu com o colar
e o cabo aviador.
- Estou a ver.
- Pois. O general aguarda, passeando de um lado para o
outro, fumando um grosso charuto. Ar cagão, claro,
como o de todos os generais. Cerca de dez minutos
depois, um carro da polícia com a música a tocar, pára
ruidosamente à porta da joalharia. Um inspector e dois
detectives, de pistola em punho, prontas a disparar,
entram pelo estabelecimento adentro, atiram-se ao
general, batem-lhe desalmadamente e algemam-no.
O general estava uma lástima: cheio de sangue e todo
rasgado. O chefe do grupo explica ao então
esparvoado gerente que a Interpol já andava há muito
atrás do gajo, por roubos idênticos efectuados noutros
países e que uma segunda brigada procedia à prisão
dos outros pilantras. Que à tarde o gerente poderia ir à
Central levantar o colar e apresentar queixa. E sairam
todos, com o general a reboque, cheio de sangue e...
até hoje. Pertencia tudo à quadrilha.
- Foi isso exactamente. Lembro-me agora. Foi isso, foi.
- E nunca foram apanhados. O processo continua aberto.
- Mas para que está p'raí a contar-me essa história toda,
O'Hara? Farto de histórias estou eu.
- Bem... Nos autos e declarações, chamou-nos a atenção,
a mim e ao Morris, a descrição do detective que entrou
em primeiro lugar, de arma na mão. Descrição feita pelo
gerente. Trouxe uma cópia. Quer ouvir?
- Tá bem. Se tem de ser... se acha que é importante...
- É importante, porra!
- Tá bem. Leia lá isso.
- "Um metro e setenta e cinco. Mais magro do que gordo.
Entre 21 e 25 anos, mas alguns cabelos brancos", talvez
pintados. "Zigomas salientes e, o dedo que premia o
gatilho, ligeiramente torto." Os gerentes, principalmente
os de joalharias, têm de ser psicólogos e possuir um
grande poder de observação. Até memória fotográfica.
O'Hara calou-se, olhando para Rockfeller. Durante a sua
lengalenga, o Inspector tinha passado de vermelho lagosta
ao cinzento concha de amêijoa.
- Porra para isto! - exclamou baixinho. E O'Hara disse:
- A ficha de Bone diz que nasceu há 36 anos... e pouco se
sabe da sua vida entre, digamos, os 18 e os 22... a não ser
ter tido um romance com uma miúda de 17 ou 18 anos
anos, ainda prima afastada.
- Como raio soube você isso?
- Pelo Morris, que tem memória elefantina e que se
recorda de alguns comentários que mais tarde os colegas
faziam na messe, quando Bone ainda estagiava.
Rockfeller estava verdadeiramente surpreso. Pegou
distraído no cachimbo. mas pô-lo de parte. Acendeu então
um cigarro. Lentamente. Como convinha a um inspector-
-geral, fosse de que merda fosse. Bufou, para cima, o fumo
e perguntou:
- Qual é a sua proposta, O'Hara?
- Considero este assunto muito sério. Proponho-lhe que me
autorize, oficialmente, a entrar de férias. Sozinho começarei
a investigar este assunto.
Rockfeller pensou. Considerou. Reconsiderou.
- De acordo. Mas tome cuidado... não rebente também você
por aí. Mas, se tiver que rebentar, que não seja nas nossas
instalações. Como sabe, foi tudo pintado há dois meses.
- Pegue lá o meu requerimento. Peço-lhe apenas que me
afecte um carro com condutor, mas não o do Comando.
- Isso nem parece seu, O'Hara! É muito arriscado. Férias
com carro da Polícia?! Nem pensar! Acho melhor você
alugar um carro com condutor, claro. Aí numa agência
qualquer, mas que não tenha negócios connosco. Depois
arranjarei maneira da tesouraria pagar a conta...
- A sua ideia é, realmente, melhor. Muito melhor do que
a minha. Bem, vou indo.
- Vá dando notícias. Boas férias, O'Hara...
Mancando, O?hara saiu do gabinete, não se despediu de
ninguém e foi até à rua, fumando calmamente.
Saiu pela porta lateral. Junto ao passeio esperava-o um
carro particular com motorista sem farda. Cor preta.
O'Hara entrou.
- Acha bem, senhor? - perguntou o jovem motorista.
- Muito bem. É este mesmo o tipo de carro que eu tinha
ontem pedido à agência. - E sorriu com o olhinho bom
cheio de lágrimas de gozo e de malícia.

(do livro de Ed B. Silverman)
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