Friday, February 03, 2006


Miguel














O corpo de Miguel, magro, esquálido, sujo e míseras vestes,
apareceu naquela manhã a dormir na rede do armazém. Comprido
como um espargo silvestre, homem adulto isso via-se, roncava
suavemente quando um dos irmãos abriu a porta do armazém de
peixe. Parecia até que o ronronar do motor que fazia frio para uma
câmara frigorífica, se harmonizava com o respirar profundo do
Miguel.
Teotónio, o irmão mais novo, que rondava meio século de
escamas, peixes, caldeiradas, cervejolas, mariscos e demais
atavios, entreténs e histórias de lobisomens - histórias de árabes,
claro, que estamos agora no Algarve -, quedou-se a olhar para
aquila cena.
Chegou-se à rede, estendida entre duas prateleiras, e olhou
para o figurante, nu da cintura para cima e quase também assim
da cintura para baixo.
E não fez mais nada! Para vagabundo e malandro, malandro e
meio. Pega num remo e vai disto. Porrada no Miguel! Que se
levanta de susto e de pecado, e foge porta fora antes que o remo,
em remada mais valente, lhe acertasse na cabeça ou noutras
partes mais sensíveis. Mas correu pouco, pois do outro lado era o
cais e a água da ria que permitia a entrada de traineiras para a
descarga.
O Miguel berrava e o Teotónio gritava "Vagabundo", quando
chega o Agostinho, o mais velho, e tudo fica claro.
O Miguel aparecera não se sabe de onde, na tarde anterior,
cheio de fome e esfarrapado, andara por ali e por além, carregara
umas tecas, rira sem dentes, mastigara umas coisas fritas e
ficou-se, estafado, sentado à porta do Jaime - nome do
ex-sacristão, actual proprietário da cervejaria Cristal. O pai do
Teotónio e do Agostinho viu, deu-lhe uns dinheiros poucos,
dinheiros de uma só mão, perguntou coisas e depois disse que ele
podia ficar no armazém a dormir. "E passas a trabalhar só para
mim, ouviste? Quando os barcos vierem, só de mim recebes
ordens e... porrada quando a mereceres." Mas, na altura, só o
irmão mais velho soube deste trato.
E aquele beldruegas sem passado, mal falando - esguio, magro
e pobre de espírito -, passou a andar sempre atrás do velho. A
dois metros de distância. E com muita ternura o seguia,
pois mesmo que provocado pelos pescadores, nada dizia - bufafa
com a boca e não despregava os olhos das costas do velho
marítimo.
O Teotónio e o Agostinho também lhe criaram amizade. Uma
vez um deles deu-lhe umas calças mas, no dia seguinte, deixou
de se preocupar em acrescentar uma camisa; as calças estavam
todas rotas e antigas como as primeiras.
Como sempre acontece nas terras pequenas, o Miguel foi o
meio-louco aceite pela população, que o disfrutava mas que
também o acarinhava com palavras e comida.
Um dia o velho morreu e aqui começa outra história. Por
aqui deveríamos ter começado, mas não foi assim que
aconteceu. Paciência.
*
Um dia ouvimos os sinos a badalar e vimos o Miguel a
correr, já de si louco e ainda mais se possível, esbracejando, a
caminho do cemitério. E vimos também as pessoas
afastarem-se para lhe darem caminho, sem risos ou ironia
de olhar ou de gesto. Que teria acontecido ao Miguel?
À noite, o Teotónio contou-nos que o Miguel não podia
ouvir as sinetas do cemitério, quando alguém ia a enterrar.
Corria por ali acima e só parava junto à campa do velho que
lhe dera porrada, abrigo, pão e talvez o único quinhão de
ternura que recebera na vida.
E ali se punha, entre as campas do cemitério. Olhos loucos
atentos, mirando os que entravam e saíam, para que ninguém
pisasse a sepultura do seu amigo. De início, houve umas
tentativas de provocação mas o Miguel, de braço comprido e
alma maior, tais lapadas deu nos catraios que tudo ficou por
bem no futuro.
Onde estivesse, com teca de peixe às costas ou não,
ouvindo as sinetas partia à desfilada e deixava o carrego para
quem o quisesse. Sepultura do velho amigo ninguém pisava.

(do livro Histórias do Arco-da-Velha-1
ilustração de Octávio Clérigo)

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