Entramos agora na segunda parte desta novela de Ed B.
Silverman, em que aparece o célebre detective Bronco Vale,
o homem que resolvia crimes e atraía balas dispersas ou
distantes. Silverman continua ridicularizando os livros
policiais, utilizando obviamente a sua estrutura.
2ª.Parte
1.
O detective particular Bronco Vale, depois de lhe ter dado uma
vista de olhos, amachucou o jornal e atirou-o contra o
bengaleiro.
A neve caía. A única janela do seu gabinete estava branca. Num
canto da sala, um pequeno aquecedor eléctrico, velho e ferrugento,
tentava vencer o frio, mas sem resultado - nada denotava o seu
honesto mas asmático esforço.
Bronco abriu a última gaveta da sua velha secretária e, tremendo
de frio, retirou uma garrafa ainda meia de uísque. Serviu-se
generosamente pelo gargalo. Tossiu. Voltou a beber e tornou a
tossir.
Mais um mês sem um único cliente. Tinha já dois meses de renda
em atraso, não só no escritório como também no apartamento
e ingeria apenas uma refeição por dia, no "Joho", aquela
espelunca infecta na 38ª.
Acendeu um cigarro e começou a limpar a arma, como via fazer
nos filmes, ou seja, não limpar nada. Passando apenas um pano
amarelo e olhando sem interesse para o interior do cano. Apenas
um ritual.
Tremeu novamente de frio e voltou a ter um novo e violento
ataque de tosse. Emborcou, mais uma vez, umas avantajadas
goladas de uísque. Olhou para a garrafa. Como o nível da garrafa
baixava! O processo de evaporação deveria ser mais rápido no
uísque do que nos outros líquidos. Quanto mais caro,
mais evapora; isto é uma grande porra. E uma grande verdade.
Foi então que, fulminantemente, entrou na pequena sala a
garota mais sexy que Bronco já vira nos dias da sua vida.
Bem, garota já não era muito. Coisa aí para os 25 anos estimados
e aconchegadinhos.
Vestia um pesado casaco forrado a pele de chinchila e, na cabeça,
um gorro da mesma pele a condizer. Uns elegantes botins
vermelhos davam-lhe um toque final, não de distinção, mas de
sábia elegância. Sob o casaco, adivinhavam-se interessantes e
variadas curvas.
E falou. Ela falava! Não demasiadamente alto. Não
demasiadamente baixo. No volume certo e com um timbre meio
grave. No registo com que começam algumas oratórias de Bach.
- Se já bebeu tudo, poderá atender-me - disse, fria como aquela
manhã de Janeiro.
Bronco, reflectindo que tinha a defender uma imagem, não só na
América como no mundo, levantou-se lentamente, como já tinha
visto uma vez fazer ao velho Gary Cooper e foi sacudir a única
cadeira "extra" do escritório. Pegou depois no jornal e deitou-o
para o cesto dos papéis. E, com um gesto sóbrio, convidou-a a
sentar-se e voltou para o seu lugar. Tudo feito pausadamente.
Não te excites, sacana.
- Obrigada. Sou Linda Marlowe. Senhora Marlowe e sou viúva.
Bronco Vale continuou a devorá-la. Fazia os possíveis para não
se babar. Passara-lhe completamente o frio. Até sentia um pouco
de calor em certas partes do corpo.
- O seu nome foi-me indicado por um amigo. Chama-se Bronco
Vale, não chama?
- Chamo.
- Ele disse-me que você não era muito inteligente, mas que
compensava essa falha natural com a honestidade e a
perseverança.
- E que mais?
- Mais nada.
- São cinqienta dólares por dia, fora as despesas e cinco dias
adiantados.
Até a tosse me ajuda...
Voltou a ter um violento ataque de tosse. Bebeu outro golo de
uísque e ofereceu, estendendo o braço, a garrafa à sra. Marlowe,
enquanto limpava a boca com as costas da mão direita.
- Não bebo, obrigado. Pelo menos a esta hora... e muito menos
pela garrafa...
Com gestos rápidos, a sra. Marlowe abriu a carteira, retirando
uma pequena bolsa para notas, com cantos arredondados em
ouro. Contou 250 dólares e depositou-os na secretária, em frente
dele.
- Sra. Marlowe. Eu ainda não disse que aceitava o trabalho.
- Pois não, senhor Vale. Mas vai aceitar pois está nas últimas.
- O seu amigo também lhe disse isso?
- Não, senhor Vale. Mas qualquer pessoa, olhando para si, vê
imediatamente que não come uma refeição decente há, pelo
menos, dez anos.
- Diga lá.
- O quê?
- Diga lá o que quer de mim.
A sra. Marlowe abriu de novo a carteira, retirando um recorte de
jornal. Abriu-o, endireitou-o com a mãozinha direita esticada e
enluvada e entregou-o ao detective.
- Leia.
Bronco Vale deu-lhe apenas um rápido olhar.
- Eu sei. É o comunicado oficial da morte dos vinte agentes da
Polícia do Estado de Nova Iorque.
- Leia então o primeiro nome da lista.
- Hum. Edgar Marlowe, agente de 1ª. classe, 28 anos de idade,
casado e sem filhos.
- Era o meu marido.
- Já percebi.
- Quero que descubra quem o assassinou.
Bronco olhou bem para dentro dos olhos da sra. Marlowe.
- Só?
- Só.
Resignado, Bronco apontou para o maço de notas e respondeu
baixinho:
- Pode guardá-lo.
- Não aceita?
- Oiça. Neste momento o assassino do seu marido e de mais
dezanove, fora os civis, anda a ser procurado por toda a
Polícia metropolitana, pela Brigada de Homicídios, pelo FBI e
pela CIA. A esta equipa juntaram-se ainda uns cretinos
professores da Escola Superior da Polícia e três inspectores
reformados.
- E daí?
- Eles nada conseguiram ainda. Nada. Absolutamente nada. E
vou ser eu, o brilhante detective particular, de baixo QI, a
descobrir tudo! Passe Bem, senhora Marlowe.
Ela, com ar duro e cerrando os dentes, latiu:
- Covarde!
Perco a grana e ainda sou insultado?
Bronco, com meio sorriso e calmamente, como já tinha visto
fazer ao velho James Cagney, bebeu o resto da garrafa e,
atirando-a para o cesto dos papéis, ergueu o seu metro e
oitenta, contornou a secretária, levantou pelos sovacos a sra.
Marlowe, virou-se e ferou-lhe duas violentas palmadas no
traseiro, acto mais que simbólico, já que o espesso casaco
forrado impedia qualquer dano em tão bom material.
Linda Marlowe, afogueada mas aparentemente calma, voltou
a sentar-se. Os olhos só transmitiam ira. Uma enorme ira mas
também uma forte determinação. Sibilou:
- Está satisfeito?
Bronco tossiu, aparentemente indiferente. Um duro! Só visto.
- Não me retiro já porque, realmente senhor Vale, me disseram
que obtinha resultados. Na vida, só me interessam os
resultados.
Bronco sentou-se. Acendeu um cigarro e, por entre o fumo,
mirou-a com admiração. Um longo silêncio os envolveu.
- Não quer, ao menos, tentar?
Quis ser ordinário, para quebrar a força de vontade e a
determinação daquela mulher:
- Dormir consigo?
- Não, senhor Vale. Tente investigar durante cinco dias e, depois,
desista. Mas só depois. Não o cansará muito.
Levantou-se, ajeitou o casaco e, já com a porta aberta para sair,
disse depreciativamente:
- ... e, entretanto, compre umas garrafas de uísque, por minha
conta, claro.
A porta fechou-se suavemente.
Bronco Vale sorriu. Achava que a cena tinha sido muito boa.
Qualquer autor policial a gostaria de ter escrito. Não tinha fugido,
nem no gesto nem na palavra, ao guião. Meteu o dinheiro no bolso
esquerdo do sobretudo e a arma na sovaqueira de cabedal. Depois
da arma entrar na bainha, deu-lhe mais um toque aconchegante
com as pontas dos dedos, quase terno.
Tossiu, escarrou para o cesto dos papéis, pegou no telefone e
marcou. Mas, antes, aspirou como qualquer rafeiro, o perfume da
base da cadeira. Era suave e altamente excitante. Esta era a
mulher dos seus sonhos deste os 13 anos de idade e, ainda por
cima, viúva e com dinheiro. Parecia...
- Ralph? Bronco. Preciso de ti. Vinte e cinco por dia. Está bem para
ti? Dentro de meia hora no "Quatro de Espadas", ok?
Desligou o aquecedor e saiu, sem fechar a porta da rua. Para quê?
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Sunday, February 26, 2006
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