Wednesday, February 15, 2006

15. O Farol

- Quando é que é a minha vez, mãe?- Perguntou o miúdo
com alguma ansiedade.
- A próxima.
E arrumou os pratos no armário de madeira com portas de
rede. O miúdo ficou a olhar para o fogo e a imaginar a sua
futura aventura se não mesmo glória.
O pai chegou, entrou, fechou a porta e encaminhou-se para o
fogo, sem nada dizer. Bateu com as sapatorras no chão. Soprou
nas mãos geladas. Olhou para a mesa e pediu comida. Foi
então que o miúdo disse:
- Eu sou o próximo.
- Eu sei - disse o pai olhando para o prato da comida que a
mulher lhe punha na mesa.
A torcida do candeeiro a petróleo foi erguida mais um pouco.
Ouvia-se o pai a comer e o fogo também uma a uma as
achas com que era alimentado periodicamente.
***
Há trezentos anos já que Erris Head se chamava Erris Head.
Os seus habitantes viviam da pesca e de algum milho plantado
nos parcos e pedregosos terrenos de Leste. Havia dois moinhos
e algumas espécies animais: porcos, cabritos, coelhos e galinhas.
Nos Invernos agrestes das marés brabas, morriam muitos
pescadores por Erris Head não ter um farol. Zona de escolhos
e de pequenas rochas pontiagudas submersas, os barcos
desfaziam-se antes de entrar naquela pequena reentrância da
costa. Muitos barcos e homens se perdiam e a população, não
o dizendo explicitamente, lastimava mais a perca dos primeiros
que dos segundos - os homens só interessavam à família, mas
os barcos pertenciam à comunidade e fazer um novo levava anos.
Resolveram então construir uma lanterna grande e um farol.
Das terras de Leste carrearam enormes pedras que foram
colocando umas sobre as outras. mesmo na ponta de Erris Head.
Mulheres, homens e crianças ajudaram, entre gritos, pragas e
silêncios. Faltavam cerca de três semanas para a aspereza do
Inverno e o vento já se anunciava com rajadas sacanas,
principalmente durante a noite.
Quando a torre, espécie de menir gigante, ficou pronta, o filho de
McFee, com cerca de catorze anos, levou até lá acima a lâmpada
com óleo de peixe, acendeu-a, desceu e ficaram todos em redor a
olhar para cima. O pai sorriu para o filho.
Pelos desentendimentos do destino, o Inverno começou três
semanas mais cedo e, nessa mesma noite, a lâmpada apagou-se
e caiu, bem como se desmoronou todo aquele menir tão
laboriosamente construído.
Na semana seguinte todos repetiram as mesmas operações,
os mesmos gritos, as mesmas imprecações e os mesmos sorrisos.
No domingo, ao final do dia, o aglomerado de pedras e a enorme
e amolgada lâmpada marcavam novamente presença útil na
pontinha de Erris Head. E todos acenaram de satisfação com a
cabeça pela grande obra realizada.
Que durou três dias.
Ventos fortíssimos e ondas de oito metros varreram, na terceira
madrugada, Erris Head e o menir gigante mais a lâmpada
condizente se destroçaram e, por infeliz acaso, um barco
desfez-se nos rochedos e dois dos cinco homens que nele iam
morreram - pelo menos desapareceram, pois mais ninguém os
viu. No Purgatório deveriam estar, pois eram maus, brutos e
gananciosos, segundo afirmava aquele povo que era mau, bruto
e ganancioso.
***
Reunidos na taverna decidiram então que não seriam mais
utilizadas pedras e que tudo se resolveria com um pouco de
sacrifício e de boa-vontade.
Com a concordância geral, todas as noites "o farol" seria formado
por rapazes dos oito aos catorze anos, os mais velhos em baixo,
os mais novos em cima, o último dos quais segurava a lâmpada
assente sobre a cabeça de um deles. Assim ficavam desde o
entardecer ao alvorecer e era já uma honra pertencer ao grupo
do farol.
Por vezes, em noites bravias, desfazia-se parte da pirâmide
humana, mas logo se recompunha. As ondas vinham e
açoitavam-nos. O frio gelava-os. O vento abanava-os, mas a sua
determinação e honra alicerçavam o farol, para que este marcasse
presença acautelar nas noites frias, brumosas ou tempestuosas
de Inverno.
Algumas crianças morriam todos os Invernos de hipotermia,
outras de pneumonia, mas nunca mais se perdeu um barco.
(do livro Scrabble)

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