Sunday, February 12, 2006

13. A mulher com um olho de vidro (cont.)

9.
Uma hora mais tarde, entrou pesadamente no seu gabinete
o Inspector-Chefe Rockfeller. Apresentava nessa manhã um
estranho ar. Camisa aberta, gravata fora do sítio, barba por
fazer. Parecia que tinha dormido vestido, tapando-se com um
guarda-fato. Na mão esquerda, uma ponta de cigarro
amachucada.
- Entre.
- Bom dia, patrão.
- Bom dia, Bone. Trate-me por inspector.
- Muito bem, inspector.
- Tem aí um fósforo?
E acendeu a beata.
- Então o instector já não gosta de cachimbo?
- Não. Dá-me cabo dos dentes.
- É verdade, é. Olhe, a minha avó, que fumava cachimbo de
loiça, um dia...
- Olhe, Bone. Mais uma explosão. Um tipo chamado Hamlet,
colaborador de uma firma de importações e de exportações, a
Tom & Jerry, Killers. Gente séria.
- Ouvi o noticiário. Vim mais cedo por causa disso. Poderia
precisar de mim. A Brigada, que foi para o local, ainda não
regressou. Telefonaram apenas a pedir pinças e saquinhos de
plástico.
- Hum... Que pensa destes casos, Bone, destas explosões?
- Vamos ver. E sentou-se, sem prévia permissão, o que
parece não ter incomodado o Inspector-Chefe Timoteo
Rockfeller.
- Dê-me outro fósforo.
- Pode ficar com a carteira. Tenho mais na minha secretária.
- Não, não. É sua. Quando precisar, peço-lhe.
- Tá bem, inspector. Quanto ao caso, vejamos pelo ângulo das
vítimas. A primeira era um visitante búlgaro que, além de fazer
contrabando de cassetes vídeo, estava ligado a certos segredos
especiais e aos raios lazer.
- Até aí sei eu.
- É só para fazer uma revisão da matéria de facto.
- Continue, Bone. Vai muito bem.
- A segunda, um detective particular pouco conhecido, meio
apanhado da cuca, que parecia andar à cata de qualquer coisa.
Há testemunhas que o viram a seguir esse Gustav. Até ao
momento, não sabemos quem era o cliente do detective.
- Nem iremos saber.
- Pois não. Bem... até aqui as coisas rimam, têm uma certa
lógica. Mas a explosão deste Hamlet não entra no puzzle. Só se...
- Só se.... o quê?
- Talvez tivesse sido um erro ou... uma experiência.
- Onde estava esse Hamlet ontem à noite, digamos entre as
vinte e as vinte e quatro horas?
- Não se sabe. Quando vier o Chefe O'Hara teremos mais
qualquer coisa, não acha?
Neste momento tocou o telefone. O Inspector atendeu.
- Rockfeller. Muito bem. Venha até aqui. - E desligou, tentando
entortar o olho esquerdo, como vira fazer ao detective televisivo.
- Dê-me um fósforo, Bone.
- Acabaram-se. Eu vou buscar mais carteiras.
- Não é preciso. Entre! Entre O'Hara.
O Chefe da Brigada de Homicídios, Eugene O'Hara era um
possante descendente de irlandeses e, obviamente, um seu
antepassado fora grumete do "Mayflower" ou, talvez até,
ajudante de timoneiro.
O'Hara possuía uma vigorosa perna de pau, resultado final
de uma bala e depois ferida gangrenada, e ainda uma mão
metálica, enluvada a cabedal preto. Uma pála na vista esquerda
completava a figura descuidada do simpático detective.
O'Hara sentou-se e colocou cuidadosamente a perna de pau
sobre a secretária de Rockfeller. Em seguida levantou a pála e
mirou os circunstantes com uma vermelha e repelente cama ocular,
o que os obrigou, repugnados, a desviar a vista.
E começou a falar, com um timbre idêntico ao de Boris Christoff.
- Uma porcaria aquilo tudo! Não há nada como um estrangula-
mento. Muito mais asseado. Muito mais higiénico. Sim, tá bem, ficam
os olhos esbugalhados e a língua de fora, rôxa e tudo, mas sempre é
mais limpo que isto. Tudo borrado e um cheiro a fossa, que até agonia
os piolhos da cabeça.
- Tem um fósforo, O'Hara? Obrigado. Agora dê-me os factos, antes
de fazer o relatório.
- Bem... o gajo explodiu e não há hipótese de autópsia. Não ficámos a
saber o que tinha no estômago ou nos intestinos. Nada. Pelos noticiários
já sabem o principal. A cabine do elevador foi para o caneco e há dois
tipos feridos. Um levou com uma dentadura num olho e uma velha ia
matando um puto de dez anos com uma cabeçada. Está nos cuidados
intensivos.
- A velha?
- Não, o puto.
E, ao dizer isto, baixou a pála, talvez por causa do frio que vinha da
janela. E continuou:
- Tenho o Williams a investigar a vida desse gajo, desse Hamlet. Ah!
A tia já apareceu a pedir o corpo. Qual corpo?! Desfeito em partículas de
meio milímetro. Ainda tentámos com pinças, mas não deu nada que se
visse... nem cem gramas.
- Posso fazer uma pergunta? - Pediu o Bone, olhando para o inspector.
- Pode, mas dê-me primeiro um fósforo. Ah! Você já não tem fósforos.
Obrigado O'Hara. Fale, Bone.
- Chefe O'Hara: já conseguiu saber com quem contactou ontem, e nos
dias anteriores, esse Hamlet? Com quem jantou e coisas assim?
- Meu filho - replicou rápido O'Hara. - Ainda você andava de cueiros
e já eu era sargento. Percebe?! É isso que estamos agora a investigar.
Espalhei vinte agentes pelos dancings de demais antros, com inctruções
para encontrar uma mulher com um olho de vidro.
- Vinte agentes, todas as noites, nos cabarés?! - Explodiu Rockfeller. -
Vai ser uma conta bonita!
- Talvez não. Consultei o ficheiro de todos os nossos homens e escolhi
dois abstémios, um ulcerado duodenal, um hepático e outro com um
princípio de cirrose; e os restantes só bebem cerveja. Distribuí também
recadinhos pelos informadores habituais. Agora é só esperar. Há sempre
uma fase nas investigações em que não há trabalho; é só esperar.
Percebeu, menino Bone?
- Sim, senhor.
- O'Hara, dê-me outro fósforo, por favor.
- Que raio! Você apaga os cigarros de propósito? Já ultrapassou a fase
do cachimbo?!
E assim terminou aquela reunião.
E Rockfeller já conseguia entortar o olho esquerdo.
Impecavelmente.

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