Thursday, February 02, 2006

12. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)

7.
Eram onze da noite quando Maureen, com grande surpresa, ouviu
a campainha da porta. O canal 38 (o "sempre acção"), estava a
transmitir um interessante filme policial, com um detective, um
tenente desleixado, que parecia dormir com a gabardina, sempre sem
fósforos, com os cigarros soltos e amachucados nos bolsos e
ligeiramente estrábico.
- Quem é?
- Hamlet, o justiceiro.
Contrariada, abriu a porta. Mas logo se recompôs.
- Caramba, Hamlet. Há mais de três anos que não te via. Estás a
ficar careca.
E ele entrando:
- Tu, em contrapartida, continuas óptima. Boa, boa como a brisa da
Primavera... o perfume das flores... a elegância das garças.... a...
- Tira as mãos!
- Os gestos das mãos são a ênfase do sentimento, da paixão, da
oratória... e também, por vezes, do ódio.
- Deixa ficar a ênfase sossegadinha, está bem?!
- Mal. Como eu gosto da ênfase!
- Se gostas, guarda-a num cofre. Queres um copo?
- Óbvio, senhora.
Maureen desligou, com mágoa, o televisor e foi à cozinha preparar
dois uísques com gelo.
Beberricaram como velhos amigos.
Voltaram a beberricar como velhos amigos, mas mirando-se.
Maureen ainda queria apanhar o final do filme, por isso atacou:
- Que queres, afinal?
- Recebi uma estranha encomenda: uma gargantilha para ti.
Maureen riu-se, aparentemente deliciada.
- Já vão aí?! - desabafou baixinho. - Já?!
- Pois é.
- E o que dizem os teus patrões?
- Estão fora de cena. Não entram neste acto. Estão nos camarins...
- Tencionas mesmo apagar-me?
- Ainda não sei. Está em jogo o meu crédito junto do clero e da
nobreza. Quanto ao povo, quero que ele se lixe.
Maureen acendeu, com mão firme, dois cigarros, oferecendo um
a Hamlet. Em seguida, fazendo realçar as curvas das ancas, pegou
nos copos e foi enchê-los de novo na cozinha. Hamlet pensava
intensamente.
- Olha, Hamlet - disse Maureen, regressando da cozinha -, dá-me
vinte e quatro horas. Talvez eu decida desaparecer definitivamente.
Se tal acontecer, não haverá o mínimo rasto. Não terás problemas.
Hamlet, de tanto pensar, já tinha dores de cabeça.
Maureen continuou:
- Também tenho uma missão... mas falarei primeiro com os meus
chefes.
- Tu não tens chefes...
- Há alguém que não o tenha? Até os presidentes, até os
secretários-gerais da ONU... até Jesus Cristo...
- E os reis...
- Acaba a bebida e sai. Preciso de pensar e de fazer alguns
telefonemas, como compreenderás.
- Em breves instante se decidem os destinos, como o irregular
voo das andorinhas...
- Pois...
Quando Hamlet saiu, Mareen correu para o televisor e voltou a
ligá-lo. Já estava no fim, com o tenente estrábico a desmascarar
o assassino, um professor universitário que vivia numa piscina,
rodeado de miúdas curvilíneas por todos os lados e mais uma
mansão à volta.

8.
Às oito da manhã do dia seguinte, no elevador que transportava
ao 27º. piso, onde se instalava a firma Tom & Jerry, Killers, Ltd.,
o senhor Hamlet, este explodiu.
Vários passageiros ficaram feridos e o elevador quase totalmente
destruído. Um dos feridos vomitou, provocando um curto-circuito
no selector, que começou a arder. Um outro ferido, distribuidor de
correio, apresentava uma vista empapada em sangue, devido a ter
sido atingido pela placa dentária superior de Hamlet.
Quando levou com a placa no olho direito, largou o saco do
correio que atingiu uma velhinha num pé. Esta, que já estava semi-
morta, caiu para a frente dando uma cabeçada num puto ranhoso
que, antes da explosão, mascava pastilha elástica.
Uma porcaria aquilo tudo.
Um nojo. Trampa e berros por todos os lados.
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