Tuesday, February 14, 2006

14. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)

10.
O'Hara olhou pensativamente para o seu motorista, um
agente há pouco saído das rondas nocturnas.
- Pr'á onde, Chefe? - Perguntou o há pouco saído das
rondas nocturnas.
- Olha, vamos para a Park Avenue e depois paras mesmo
à porta do Waldorf, só para chatear.
- Waldorf?! Recebeu uma herança, Chefe?
- Põe-te a caminho, se não quem te dá uma boa herança,
que nunca mais esquecerás, sou eu.
E lá partiram os dois a mirarem-se pelo rectrovisor.
O porteiro olhou desconfiado para a primeira coisa que saiu
do carro: a perna de pau, esticadinha, firme e tudo. Quando ia
a reclamar, ouviu uma voz grave e profunda murmurar:
- Cala-te Jack. Vai para a casota e rói um osso.
Com a dignidade da farda e do posto, o porteiro responde,
solene, qual guarda da rainha, em Londres:
- Muito bom dia, Excelência. Os aposentos reais aguardam
Vossa Excelência. É a suite cor-de-rosa.
- E se fosses levar no cu?
- As sugestões da Polícia são, por vezes, difíceis de cumprir.
Mas, quando Vossa Excelência for para a colina da saudade,
com um pé para a frente, já que o outro é de madeira, levar-
-lhe-ei crisântemos e uma saudação final.
O'Hara deixou passar tanta indignidade, insulto e ironia e
entrou no hotel mancando, obviamente.
Na recepção foi simples: mostrou a carteira com o crachat
e a identificação e perguntou o número da suite. Informaram-
-no logo, logo. O'Hara tinha a pála levantada.
No elevador, o ascensorista de serviço tentava olhar para
o tecto ou para o chão, mas não, não conseguia tirar a vista
daquela órbita vermelha, que parecia o cu de um macaco velho.
Ao primeiro batimento, George abriu a porta.
- Chamo-me O'Hara e sou da Polícia. O velhote pode receber-
-me? Preciso de falar com ele.
George detestava os Estados Unidos e a sua falta de respeito
pelos verdadeiros valores hierárquicos. Por isso replicou em
tom baixo e frio:
- O senhor Hercule Poirot é uma pessoa idosa, não é um
"velhote". Mas... tentarei ver se o poderá receber. Faça o favor
de entrar e de se sentar... - e, olhando para a perna de pau,
acrescentou: - se puder...
Com exagerada dignidade, George dirigiu-se para a segunda
sala da suite alugada por Poirot. Fechou cuidadosamente a meia
porta de comunicação, enquanto mirava, de lado, o perneta.
Poirot escrevia pacientemente, cofiando ocasionalmente o
bigode. Sobre a secratária, fumegante, uma chávena de chocolate
olhava para ele, com significativo tédio.
- O'Hara? Não conheço. Irlandês, talvez...
- Se me permite, senhor...
- Diga, George.
- O senhor que está lá fora não é um cavalheiro.
- Ah! É, como se diz, um... travesti...
- Não, não. É um homem... mas não é um cavalheiro.
- Bien... quer dizer, George, que é da Polícia? Então tenho a
obrigação de o receber.
George, patenteando bem o seu desagrado, retirou-se, para
logo introduzir o visitante.
Hercule Poirot levantou-se para o receber e indicou, com
um gesto amplo, um cadeirão, em frente da sua secretária.
- Queira sentar-se, senhor...
- O'Hara, Chefe da Brigada de Homicídios.
- Faça o favor de dizer.
- Bem. Soube que estava em Nova Iorque e gostaria de
trocar algumas impressões consigo sobre um caso...
- Como deve saber, já me reformei há alguns anos e...
mon chèr ami, vim aos Estados Unidos efectuar vinte
conferências sobre tema bem diferente da criminologia.
- Ah!
- Partirei amanhã para Ohio, onde pronunciarei a
segunda conferência, sob o tema aliciante de "a influência
dos sufixos xé e xinho na civilização assírio-caldaica".
- Muito interessante, mas...
Como sabe, na linguagem corrente, digamos a não
erudita, não cultivada, descobrimos, nos seus pormenores,
verdadeiras pistas culturais. Assim, quando dizemos...
- Desculpe, senhor Poirot, mas tenho quase os minutos
contados e, como não está receptivo a uma consulta, retiro-
-me, OK?
- Un moment. De qualquer modo, sempre gostaria de o
ouvir. É o mínimo que posso fazer por um... bien... confrade.
- Obrigado.
- Et bien...
Por certo já leu alguma coisa sobre as explosões...
- Mais oui! Oui! e não sei onde o homem chegará com
bombas cada vez mais fortes, mais potentes, mais...
- Não estou a falar dessas bombas, mas sim de pessoas
que explodem. Pum! Já está. Explodiu. Tudo em bocadinhos
pequeninos...
- Ah oui! Li uma reportagem ontem num dos vossos
enfadonhos jornais. Muito interessante... quando li,
lembrei-me imediatamente daquele caso das "pílulas
digestivas"... já foi há vinte anos, pardon, vinte e cinco anos.
O assassino oferecia uma pílula digestiva à vítima, após uma
lauta refeição e, horas mais tarde, quando ela fazia um
gesto brusco, caiam-lhe as duas mãos ou... bien, se fosse um
homem, os órgãos sexuais.
- E se fosse mulher?
- Os seios. Muito interessante.
- Nunca ouvi falar dessas pílulas... nem nesse caso mas,
na verdade, há uma certa analogia.
- E agora, que já tem os crimes solucionados, agradecia
que me deixasse continuar a preparar a minha segunda
conferência.
- Os crimes solucionados?!!! Qual solucionados?!!!
- Agradeço-lhe, senhor O'Hara, que não grite.
- Desculpe lá.
- Bien. Já sabe como as pessoas podem ser levadas, bem
contra sua vontade, a explodir; procure os químicos que
preparam as pílulas... ou os líquidos. É fácil, como vê.
- Eu... eu... bem... está bem... muito obrigado... até
breve... adeus...
- Muito bom dia, senhor O'Hara e não se esqueça.
- Esquecer?! Esquecer de quê, senhor Poirot?
- Cherchez la femme.

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