Do sociólogo José Luís Cabaço, divulgamos hoje uma "Carta" do Brasil, com sua autorização mas a devida vénia também, já que é uma honra para o meu blog ter colaboradores deste gabarito.
Das terras de Zumbi e Tiradentes
NO QUINTAL DO MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
O Museu é um regalo para os olhos e os sentidos, dizem todos quantos já o viram. Chama-se o Museu da Língua Portuguesa e é apresentado como uma experiência inédita a nível mundial: um museu sobre um idioma.
Infelizmente, ainda não tive ocasião de percorrer os seus espaços e me maravilhar, a opinião é unânime, com a sua organização, com a impecável metodologia didática e com os recursos tecnológicos surpreendentes que o tornam vivo, interactivo, atraente, uma experiência única.
Foi construído nesta megalópole que dá pelo nome de São Paulo, numa zona empobrecida da cidade, a Estação da Luz, e inaugurado no passado dia 20 de Março. Quem lá esteve falou-me também com emoção da presença numerosa e interessada de jovens brasileiros, e não só, que o visitam diariamente.
Mas o objectivo desta crónica não é o de falar do Museu que, como disse, não conheço, mas sim de uma reportagem publicada no conceituado jornal O Estado de S. Paulo (popularmente conhecido como “O Estadão”) na qual se indicam erros primários na pequena parte dedicada aos países africanos onde se fala português, isto é, na parte que fala de nós.
Segundo aquele quotidiano, a edição do texto é da responsabilidade de um jornalista local, o qual teria trabalhado sobre material compilado pelo Prof. Ivo Castro, chefe do departamento de Lingüística da Universidade de Lisboa. Porquê lingüistas a falar de História é a primeira pergunta que se põe! E porquê, precisamente, um português quando sobre Angola há angolanos especializados, sobre Moçambique historiadores moçambicanos, sobre Timor professores timorenses, etc, etc.?
Mas a questão torna-se mais preocupante quando, lendo o artigo, nos deparamos com as respostas dadas pelo Prof. Castro às questões levantadas pela repórter.
Vejamos alguns exemplos:
Na informação sobre Angola está escrito que a guerra civil terminou em 1999. Como é do conhecimento geral, o trágico conflito prolongou-se até 2002, quando, em Fevereiro, Savimbi morreu em combate o que conduziu à assinatura do acordo de paz entre o governo e a Unita a 4 de Abril desse mesmo ano.
O Prof. Castro justifica a “sua” data (e transcrevo do jornal): “A guerra civil de Angola não acabou num dia certo. Muitos angolanos consideram que o conflito terminou em 2002 mas também alguns pensam que o primeiro ato foi a retirada das tropas da ONU em 1977. Pelo meio, o processo teve muitas peripécias. Importante é que a guerra civil esteja mesmo acabada”.
Transcrevi palavra por palavra porque qualquer forma de discurso indirecto era susceptível de conduzir o leitor, muito justamente, a pensar que eu poderia estar a manipular a declaração, tão incrível que ela é.
Se o critério do Prof. é o do “abandono” das tropas da ONU em 1997, e quem tem boa memória sabe que esse facto ocorreu por pressão do governo angolano denunciando parcialidades e ingerências, com que base estabeleceu, unilateralmente, que a guerra terminou em 1999?
Vamos admitir a hipótese, que reputo de pouco provável, que o Prof. Castro tem critérios próprios sobre como e quando terminam os conflitos militares . Será que, para ele, o fim da II Guerra Mundial ocorreu a 2 de Fevereiro de 1943, dia da rendição nazi em Estalinegrado, que os historiadores do conflito consideram o momento decisivo da inversão dos destinos da guerra? Ou a 6 de Junho de 1944, quando as forças aliadas ocidentais efectuaram o decisivo desembarque em solo europeu? Ou será que reconhece, e então o critério é diferente do usado para Angola, que o fim da II Guerra Mundial foi declarado a 2 de Setembro de 1945, quando o Japão, última potência do Eixo em combate, assinou a sua incondicional rendição a bordo no couraçado Missouri? Que pensaria ele de um linguista moçambicano que inventasse publicamente uma data para o fim da II Guerra Mundial e, contestado, respondesse que o importante é que a guerra tivesse mesmo acabado?
Para além da incongruência histórica, e foi rigor histórico que lhe foi pedido pela consultoria, a sua resposta demonstra uma total falta de respeito por quantos angolanos morreram entre 1999 e 2002 e pela nação angolana que, ainda há poucos dias - no passado dia 4 - celebrou, governo e oposição (incluindo a Unita), o aniversário do acordo de paz em data que, por deputados do MPLA e da Unita, foi decretada como feriado nacional.
Mas não fica por aqui a sobranceria do reputado Prof. de linguística em relação a Angola. Da referida informação consta que a língua portuguesa é falada em Angola por 40% da população. Este dado que, segundo o jornal, surpreenderia os angolanos visitando o museu, contraria as cifras angolanas que apontam para um número bem mais alto. Argumentou, em resposta, o Prof. Castro:
“Sem dúvida, isso acontecerá num futuro talvez não muito distante. Mas não conheço nenhuma estatística que aponte para tal número nos dias de hoje. As estatísticas não são fiáveis em Angola, sendo prudente proceder por analogia com Moçambique: neste país, há poucos anos, calculava-se que 40% dos moçambicanos falavam português. Este mesmo número encontro em várias fontes aplicado a Angola”.
Deveríamos, talvez, ficar gratos ao Prof. pela confiança nos dados das nossas estísticas, mas a indignação pelo desrespeito aos irmãos angolanos não nos permite tal reconhecimento. Não podemos ficar indiferentes perante o facto de, para o Prof. Castro, todas as fontes serem boas e “fiáveis” com excepção das fontes que estão “no terreno”... E com que base se estabelece a analogia entre Angola e Moçambique, países com dois percursos históricos tão diferentes? Porque ambos fomos colonizados por Portugal? Quero estar certo de que não terá sido com base em outros silogismos e generalizações tão correntes no passado!
Pela informação do museu “aprendemos” que a independência de S. Tomé e Príncipe ocorreu em 1974 e que, erro que não é tratado na referida peça jornalística, o país é conhecido, pasmem, por produzir “açúcar e especiarias”... Os dados santomenses - que continuam insistindo que o país proclamou a sua independência em 12 de Julho de 1975 e que, embora em crise, o cacau é ainda a sua principal produção agrícola - não são, pelo vistos, igualmente “fiáveis”. O Prof. Castro não revela, porém, que fontes alternativas inspiraram as informações que produziu para o Museu.
Ficamos a “saber”, ainda (ou o Museu não fosse didático), que a Guiné Bissau ficou independente em 1975 e não em 1973. Instado sobre a dúvida da repórter, o Prof. explica:
“A independência da Guiné ocorreu quando o ocupante colonial partiu, em 1975”.
A História, porém, dá uma versão diferente e fala da proclamação da independência em 24 de Setembro de 1973, no seu reconhecimento pelas Nações Unidas em Novembro desse ano e no posterior reconhecimento pelo novo governo português, saído da chamada Revolução dos Cravos, em 10 de Setembro de 1974. Que fontes terão indicado ao distinto linguista o ano de 1975? O “ocupante colonial” não terá alterado a natureza da sua ocupação depois da proclamação da independência? E que “ocupante colonial” continuou no território depois do reconhecimento por Portugal?
Mas a pouca atenção do Prof. não se cinge às antigas colónias africanas. Também Timor-Leste não escapa ao seu “rigor metodológico” e no Museu consta que a língua oficial é o português, sem qualquer menção ao tetum.
Volto a transcrever O Estadão:
“Escrevi que o português é língua oficial em Timor-Leste, mas não a única”, justifica Ivo Castro, confirmando que o erro ocorreu na hora da adaptação de seu texto.
Daqui é, pois, legítimo inferir que os restantes erros (ou interpretações) são da exclusiva responsabilidade do Prof. Castro e não ocorreram “na hora da adaptação do seu texto”.
Este trabalho jornalístico e principalmente as respostas do chefe de departamento de Linguística da Universidade de Lisboa sugerem, finalmente, algumas interrogações:
a) Até quando, no âmbito da CPLP, se continuará a considerar que a opinião mais abalizada sobre as antigas colónias portuguesas é a opinião de especialistas (?) de Portugal? E as nossas Universidades? E os nossos investigadores? E os Centros de Estudos no Brasil que se dedicam aos países africanos?
b) Quando no Brasil, país com profundas raízes africanas, se começará, de facto, a encarar as relações com as instituições públicas e privadas dos membros não europeus da CPLP como relações com organismos de estados independentes, deixando de as ver como relações tuteladas e mediadas por Portugal?
c) Até quando a nossa História continuará a ser uma “história por analogia”, na feliz expressão do Prof. ugandês Mahmood Mamdani?
d) Quando se começarão a descolonizar as consciências depois de os territórios se terem libertado?
e) Até quando os nossos governos hesitarão em tomar a peito esta batalha diplomática e política pela nossa dignidade, unindo-se para protestarem veementemente contra a falta de respeito pelas nossas lutas, pelos nossos heróis, pela nossa História?
José Luís Cabaço
Tuesday, August 22, 2006
Friday, August 11, 2006
Pedido satisfeito
Pedi à Ana Cardoso Pires (e ela acedeu), que me deixasse publicar aqui o seu conto, tão recente que ainda está morno da sua feitura.
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foste o responsável por eu descobrir que sou claustrofóbica
I
Hoje, entre as 8 e as 9 da manhã, fui visitar-te ao emprego. Não estavas muito mais novo, o que me surpreendeu vagamente. Mas talvez o ambiente, animado de juventude e movimento, instalações modernas a dar para o fácil de manter e sem qualquer prurido de pós-pós decoração, talvez o ambiente, pensei, te estivesse a fazer bem, porque falavas a toda a gente com centelhas nos olhos e entusiasmo na voz. Aquela coisa antiga de fazer a festa com quase nada, só o coração.
Passaram uns senhores alentados, transpirando dinheiro no perímetro dos cintos, de riso bonacheirão. Despediram-se de ti com familiaridade, não excessiva mas firme. “Clientes…!”, disseste. Dos bons, estava implícito no tique malandro e confortado do olho esquerdo.
– Vamos! Vou levar-te a um sítio.
Não era uma ordem. Não era uma proposta. Era a evidência de quem sabia que seguiria o teu entusiasmo nem que fosse ao aterro do lixo.
Não sei se falámos pelo caminho. Mas andámos em passo rápido e gaiato, quase saltitante. Ali perto, abria-se um arco gótico alto, entrada de uma muralha antiga, enquadrando um trecho de uma frente de casario tipo Alfama, mas contínuo, sem vielas a separar os edifícios de formas irregulares. Seguimos para a direita, por uma estrada circular, entre o muro branco ou amarelo descorado e as fachadas. As bermas, que serviam de passeios, eram de calçada portuguesa; a zona de circulação de carros também, mas tinha sido coberta por um vago alcatrão. Não passou nenhum carro por nós. A rua desembocava num largo amplo de geometria estranha e, de repente, havia ruelas tanto para a direita como para a esquerda e em frente. E gente; numa azáfama de feira medieval, para um lado e para o outro, com cestas e sacos nos braços, dando-se tempo para falar com cada conhecido. Não se percebia o que faziam, cá ou lá. Era apenas um ambiente de geral bonomia e descontracção, como figurantes de um filme em intervalo de rodagem.
Virámos na primeira à esquerda. Era uma rua a subir, típica de mouraria. Ou de judiaria. Nessa altura, tu ias a falar, em grande gesticulação, mas não sei a propósito de quê. Como na anedota, fascinou-me a música, mas esqueci-me da letra.
– Vamos almoçar!
E levaste-me a par, com mão firme de dançarino nas minhas costas, por uma porta estreita, à direita. Abria ela num átrio do género dos vãos de escada, relativamente estreito e comprido, cortado a mais de meia largura por um balcão. Do tecto e da parede da direita, pendiam na penumbra semiformas de objectos. Em pele, diria eu. Talvez induzida por algum cheiro, mas que não era marcante. Sim, vendiam correias. E tiras de couro. Se calhar, até um daqueles aventais de que tanto gosto, que tinham os sapateiros quando cortavam sola no colo, com a faca igual à que lamentavelmente perdi e que era do meu pai, quiçá do meu avô. A despropósito, naquele balcão soturno lidava uma rapariga miudinha, loira flamejante, de cabelo encaracolado e sorriso luminoso. Era mesmo a única fonte de luz, tirando a esquadria da porta, que nós tapávamos em grande parte.
Vindos do fundo, passaram por nós, um após outro, os teus clientes obesos, que cumprimentaram de novo com boa disposição e cumplicidade. Saíram e encaminhaste-me pelo espaço que deixaram vago. Não sei como, ultrapassaste-me e meteste por uma porta à esquerda. Estranhei o sítio, porque o balcão acabava encostado à parede do fundo, que tinha uma espécie de janela. Mas que era afinal um género de passa-pratos, porque, do outro lado, estava uma rapariga parecida com a do balcão, mas com olhos tristes, sentada à mesa de tampo grande de liós de uma cozinha. Não me pude deter a focar melhor o que se passava, porque a porta por onde tinhas passado, que abria para dentro, se escancarou, para deixar sair dois homens magros, de fato e chapéu, com ar de judeus ortodoxos. Simpáticos, queriam dar-me passagem, mas não havia espaço. Encolhi-me eu contra a parede do fim do balcão e eles passaram. Um terceiro ficou para trás, num corredor com a largura do acesso, cruzou-se comigo para sair e apontou para a esquerda, por trás da porta, entrefechando-a: “É por ali”.
Com a porta fechada, o corredor quase sem luz seguia por apenas um par de metros. E tinha ainda a estrangulá-lo um móvel pobre, de linhas antigas, dos anos 50 (já devia dizer 1950, pois é, mas sei que também só viveste nos 1900…), com um televisor muito antigo em cima. Da parede do fundo, em tabuado canelado de um azul-turquesa muito feio, berrante, saíram mais dois judeus parecidos com os anteriores – ou talvez não, que um era capaz de ter só o solidéu e não o chapéu de feltro. O recorte da porta era muito baixo e apenas consegui ver que abria para uma escada a pique. Na realidade, não vi a escada; só uma parede branca, logo ali, e os vultos que surgiam no soluço dos degraus. Fiquei escudada na largura do televisor, enquanto passaram em fila indiana por mim, com um sorriso de simpatia.
Mas, quando me aproximei para abrir a porta de onde tinham saído, ela ganhou novas dimensões, diminuindo assustadoramente. Agora, tinha uma altura de não mais de 70 cm, por pouco mais de largura, e abria para cima, do lado de dentro. Percebi que tinha de deslizar directamente para os degraus, como quem abastece as caves de lenha ou de carvão. E entrei em pânico! Subiu-me uma enorme angústia, senti que estava a engordar, a engordar, e que ia ficar entalada na portinha diminuta. Então, pensei que aquele cenário só podia ser assim porque era um ponto de fuga, em caso de assalto à casa. E que, se acontecesse algo enquanto eu estava entalada, a loira da cozinha tinha certamente instruções para empurrar a televisão e o móvel contra a portinha, para a camuflar. E eu ia ter de ficar naquela aflição sem fazer ruído, senão denunciava o esconderijo e as pessoas que estavam lá em baixo. E comecei com falta de ar.
Tinha de sair dali! Mas tu estavas de certeza algures lá no fundo à minha espera para almoçar. E não passava ninguém a quem pudesse pedir que te desse recado de que me ia embora, só porque não conseguia descer a escadinha. Não sei o que me angustiava mais, se a sensação de claustrofobia, se o ir estragar o teu entusiasmo do dia e da perspectiva de me levares a um local único – como aquele.
Venceu a claustrofobia e fugi.
Quando ia a passar pela rapariga esfusiante, a caminho da luz agora intensa do quadro da rua, aflita, duplamente aflita, acordei. Eram 9 horas.
II
Fiquei espantada de me saber claustrofóbica. Nunca me dei a tais alergias, mas é bom que me vá preparando para não ser surpreendida…
Não me apetecia levantar da cama. Revi a chegada ao teu emprego, o arco da muralha, a rua a subir, o balcão na penumbra. Eram correias, sim. Coleiras? Chapéus também, completos e em peças. Peles em bruto, muito macias, de recortes irregulares. Calfe, diria a minha tia Celsa, que tinha as melhores luvas de pele de que tenho memória. Queria perguntar à miúda do balcão se aquele vulto, mais adiante, era do tal avental de cabedal grosso de que me recordo vagamente da infância.
Ela não esperou a pergunta:
– É isso mesmo. Fazemos em molde, para cada cliente. Nunca deixa de ter procura...
E o sorriso radioso, outra vez a iluminar o espaço, dando maior definição às sombras dependuradas. Aumentando a confusão do expositor.
– Vá, vá lá.
E apontou-me, convidativa, a porta à esquerda, já minha conhecida. Voltei a passá-la e a esbarrar no móvel com o obsoleto aparelho de televisão. Aproximei-me do postigo que abria para cima. “E se vem alguém a subir para cá?”
Espreitei para dentro. A escada era de alvenaria, bastante a pique, mais a prumo do que as escadas rolantes do Parque e com degraus mais estreitos. Não vinha gente, mas subiam vozes animadas do fundo e havia uma luz bastante contrastante com a do local onde me encontrava. De repente, ouvi o ruído de uma porta pesada sobre os gonzos e subiu uma lufada de ar fresco. Uma saída normal, lá na fundura. Ia para me interrogar sobre como era possível, numa colina a subir, haver uma porta dois andares para baixo a dar na rua, mas subiram mais dois judeus de chapéu (só agora reparava o que havia de estranho em todos: faltavam-lhes as patilhas kosher encaracoladas!), desviei-me e aos pensamentos que só complicavam a situação, e entrei com os pés para a frente. Literalmente.
Engraçado que não era nada difícil. A grande intensidade da luz afastava a parede, a inclinação do tecto acompanhava a dos degraus de tão perto que não deixava ter medo de me baldar pelas escadas abaixo, o rabo apoiava num degrau enquanto o pé procurava o seguinte no vazio, mas sem qualquer incerteza de o encontrar.
Eram mesmo dois andares para baixo. A meio da escadaria, à esquerda, abria um corredor baixo, tapado por uma porta de madeira a uns dois metros (como nas casas trogloditas, ocorreu-me, talvez pelo contraste da luz branca com o azul-alfazema da madeira). Continuei a descer, sem ver nada para baixo, com os olhos por detrás das mamas, incrivelmente salientes. Quando o tecto recuperou uma forma abobadada horizontal, a porta pesada, de aldraba, que tinha suspeitado lá de cima estava agora ao meu alcance, não fosse mais um par de judeus aguardarem que eu acabasse a descida. Pela primeira vez, o patamar era um espaço relativamente amplo. Sorrimos uns para os outros, desviaram-se para me dar entrada para a passagem (sem porta) à direita, como que assegurando-se de que entrava, e continuaram a bloquear o acesso à saída.
Entrei no que era uma espécie de refeitório. Com má acústica – as vozes ecoavam numa confusão de abóbadas cruzadas. Havia um balcão no canto em frente da entrada. E mesas corridas, paralelas ao balcão, que se repetiam indefinidamente, tanto quanto a vista e a atenção deixavam ver.
Lá estavas na segunda mesa, com o mesmo ar super-animado, achando a minha demora tão natural que nem a comentaste. Mantinhas conversas descontraídas com os utentes das mesas próximas. E ias petiscando coisas várias, que se iam sucedendo.
– Já viste isto? Que tal?
– Não sabia… Tantos judeus…
– Porque não? São como os tipos da pesada: só se vêem à noite.
Recomeçaste a conversar sem letra, mas com uma música, uma inspiração, fascinantes. Lembro-me que nada explicava estarmos ali, eram conversas paralelas. Àquele mundo paralelo. De vez em quando, chegavam mais petiscos. Com ar exótico, de apresentação pouco cuidada mas exalando cheiros de especiarias magnificamente doseadas. Verdadeiramente apetecíveis. Mal lhes toquei. Fiquei que tempos a sorrir, de cotovelo apoiado na mesa, segurando-me o queixo, embalada pelo som modelado, encantatório das tuas histórias entusiásticas, mímicas, coloridas.
O tempo passava e, muito de vez em quando, virava-me para ver se a porta do patamar estava livre. Nunca estava… E eu retomava o presente da tua voz, mal comendo o tempo todo, ainda que sem sacrifício.
Enquanto não se esclarecesse se havia uma saída directa para a rua, não me arriscava a engordar aquele centímetro que me havia de deixar em pânico, entalada na escada do alçapão.
Boa Fé, 9 de Julho de 2006
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foste o responsável por eu descobrir que sou claustrofóbica
I
Hoje, entre as 8 e as 9 da manhã, fui visitar-te ao emprego. Não estavas muito mais novo, o que me surpreendeu vagamente. Mas talvez o ambiente, animado de juventude e movimento, instalações modernas a dar para o fácil de manter e sem qualquer prurido de pós-pós decoração, talvez o ambiente, pensei, te estivesse a fazer bem, porque falavas a toda a gente com centelhas nos olhos e entusiasmo na voz. Aquela coisa antiga de fazer a festa com quase nada, só o coração.
Passaram uns senhores alentados, transpirando dinheiro no perímetro dos cintos, de riso bonacheirão. Despediram-se de ti com familiaridade, não excessiva mas firme. “Clientes…!”, disseste. Dos bons, estava implícito no tique malandro e confortado do olho esquerdo.
– Vamos! Vou levar-te a um sítio.
Não era uma ordem. Não era uma proposta. Era a evidência de quem sabia que seguiria o teu entusiasmo nem que fosse ao aterro do lixo.
Não sei se falámos pelo caminho. Mas andámos em passo rápido e gaiato, quase saltitante. Ali perto, abria-se um arco gótico alto, entrada de uma muralha antiga, enquadrando um trecho de uma frente de casario tipo Alfama, mas contínuo, sem vielas a separar os edifícios de formas irregulares. Seguimos para a direita, por uma estrada circular, entre o muro branco ou amarelo descorado e as fachadas. As bermas, que serviam de passeios, eram de calçada portuguesa; a zona de circulação de carros também, mas tinha sido coberta por um vago alcatrão. Não passou nenhum carro por nós. A rua desembocava num largo amplo de geometria estranha e, de repente, havia ruelas tanto para a direita como para a esquerda e em frente. E gente; numa azáfama de feira medieval, para um lado e para o outro, com cestas e sacos nos braços, dando-se tempo para falar com cada conhecido. Não se percebia o que faziam, cá ou lá. Era apenas um ambiente de geral bonomia e descontracção, como figurantes de um filme em intervalo de rodagem.
Virámos na primeira à esquerda. Era uma rua a subir, típica de mouraria. Ou de judiaria. Nessa altura, tu ias a falar, em grande gesticulação, mas não sei a propósito de quê. Como na anedota, fascinou-me a música, mas esqueci-me da letra.
– Vamos almoçar!
E levaste-me a par, com mão firme de dançarino nas minhas costas, por uma porta estreita, à direita. Abria ela num átrio do género dos vãos de escada, relativamente estreito e comprido, cortado a mais de meia largura por um balcão. Do tecto e da parede da direita, pendiam na penumbra semiformas de objectos. Em pele, diria eu. Talvez induzida por algum cheiro, mas que não era marcante. Sim, vendiam correias. E tiras de couro. Se calhar, até um daqueles aventais de que tanto gosto, que tinham os sapateiros quando cortavam sola no colo, com a faca igual à que lamentavelmente perdi e que era do meu pai, quiçá do meu avô. A despropósito, naquele balcão soturno lidava uma rapariga miudinha, loira flamejante, de cabelo encaracolado e sorriso luminoso. Era mesmo a única fonte de luz, tirando a esquadria da porta, que nós tapávamos em grande parte.
Vindos do fundo, passaram por nós, um após outro, os teus clientes obesos, que cumprimentaram de novo com boa disposição e cumplicidade. Saíram e encaminhaste-me pelo espaço que deixaram vago. Não sei como, ultrapassaste-me e meteste por uma porta à esquerda. Estranhei o sítio, porque o balcão acabava encostado à parede do fundo, que tinha uma espécie de janela. Mas que era afinal um género de passa-pratos, porque, do outro lado, estava uma rapariga parecida com a do balcão, mas com olhos tristes, sentada à mesa de tampo grande de liós de uma cozinha. Não me pude deter a focar melhor o que se passava, porque a porta por onde tinhas passado, que abria para dentro, se escancarou, para deixar sair dois homens magros, de fato e chapéu, com ar de judeus ortodoxos. Simpáticos, queriam dar-me passagem, mas não havia espaço. Encolhi-me eu contra a parede do fim do balcão e eles passaram. Um terceiro ficou para trás, num corredor com a largura do acesso, cruzou-se comigo para sair e apontou para a esquerda, por trás da porta, entrefechando-a: “É por ali”.
Com a porta fechada, o corredor quase sem luz seguia por apenas um par de metros. E tinha ainda a estrangulá-lo um móvel pobre, de linhas antigas, dos anos 50 (já devia dizer 1950, pois é, mas sei que também só viveste nos 1900…), com um televisor muito antigo em cima. Da parede do fundo, em tabuado canelado de um azul-turquesa muito feio, berrante, saíram mais dois judeus parecidos com os anteriores – ou talvez não, que um era capaz de ter só o solidéu e não o chapéu de feltro. O recorte da porta era muito baixo e apenas consegui ver que abria para uma escada a pique. Na realidade, não vi a escada; só uma parede branca, logo ali, e os vultos que surgiam no soluço dos degraus. Fiquei escudada na largura do televisor, enquanto passaram em fila indiana por mim, com um sorriso de simpatia.
Mas, quando me aproximei para abrir a porta de onde tinham saído, ela ganhou novas dimensões, diminuindo assustadoramente. Agora, tinha uma altura de não mais de 70 cm, por pouco mais de largura, e abria para cima, do lado de dentro. Percebi que tinha de deslizar directamente para os degraus, como quem abastece as caves de lenha ou de carvão. E entrei em pânico! Subiu-me uma enorme angústia, senti que estava a engordar, a engordar, e que ia ficar entalada na portinha diminuta. Então, pensei que aquele cenário só podia ser assim porque era um ponto de fuga, em caso de assalto à casa. E que, se acontecesse algo enquanto eu estava entalada, a loira da cozinha tinha certamente instruções para empurrar a televisão e o móvel contra a portinha, para a camuflar. E eu ia ter de ficar naquela aflição sem fazer ruído, senão denunciava o esconderijo e as pessoas que estavam lá em baixo. E comecei com falta de ar.
Tinha de sair dali! Mas tu estavas de certeza algures lá no fundo à minha espera para almoçar. E não passava ninguém a quem pudesse pedir que te desse recado de que me ia embora, só porque não conseguia descer a escadinha. Não sei o que me angustiava mais, se a sensação de claustrofobia, se o ir estragar o teu entusiasmo do dia e da perspectiva de me levares a um local único – como aquele.
Venceu a claustrofobia e fugi.
Quando ia a passar pela rapariga esfusiante, a caminho da luz agora intensa do quadro da rua, aflita, duplamente aflita, acordei. Eram 9 horas.
II
Fiquei espantada de me saber claustrofóbica. Nunca me dei a tais alergias, mas é bom que me vá preparando para não ser surpreendida…
Não me apetecia levantar da cama. Revi a chegada ao teu emprego, o arco da muralha, a rua a subir, o balcão na penumbra. Eram correias, sim. Coleiras? Chapéus também, completos e em peças. Peles em bruto, muito macias, de recortes irregulares. Calfe, diria a minha tia Celsa, que tinha as melhores luvas de pele de que tenho memória. Queria perguntar à miúda do balcão se aquele vulto, mais adiante, era do tal avental de cabedal grosso de que me recordo vagamente da infância.
Ela não esperou a pergunta:
– É isso mesmo. Fazemos em molde, para cada cliente. Nunca deixa de ter procura...
E o sorriso radioso, outra vez a iluminar o espaço, dando maior definição às sombras dependuradas. Aumentando a confusão do expositor.
– Vá, vá lá.
E apontou-me, convidativa, a porta à esquerda, já minha conhecida. Voltei a passá-la e a esbarrar no móvel com o obsoleto aparelho de televisão. Aproximei-me do postigo que abria para cima. “E se vem alguém a subir para cá?”
Espreitei para dentro. A escada era de alvenaria, bastante a pique, mais a prumo do que as escadas rolantes do Parque e com degraus mais estreitos. Não vinha gente, mas subiam vozes animadas do fundo e havia uma luz bastante contrastante com a do local onde me encontrava. De repente, ouvi o ruído de uma porta pesada sobre os gonzos e subiu uma lufada de ar fresco. Uma saída normal, lá na fundura. Ia para me interrogar sobre como era possível, numa colina a subir, haver uma porta dois andares para baixo a dar na rua, mas subiram mais dois judeus de chapéu (só agora reparava o que havia de estranho em todos: faltavam-lhes as patilhas kosher encaracoladas!), desviei-me e aos pensamentos que só complicavam a situação, e entrei com os pés para a frente. Literalmente.
Engraçado que não era nada difícil. A grande intensidade da luz afastava a parede, a inclinação do tecto acompanhava a dos degraus de tão perto que não deixava ter medo de me baldar pelas escadas abaixo, o rabo apoiava num degrau enquanto o pé procurava o seguinte no vazio, mas sem qualquer incerteza de o encontrar.
Eram mesmo dois andares para baixo. A meio da escadaria, à esquerda, abria um corredor baixo, tapado por uma porta de madeira a uns dois metros (como nas casas trogloditas, ocorreu-me, talvez pelo contraste da luz branca com o azul-alfazema da madeira). Continuei a descer, sem ver nada para baixo, com os olhos por detrás das mamas, incrivelmente salientes. Quando o tecto recuperou uma forma abobadada horizontal, a porta pesada, de aldraba, que tinha suspeitado lá de cima estava agora ao meu alcance, não fosse mais um par de judeus aguardarem que eu acabasse a descida. Pela primeira vez, o patamar era um espaço relativamente amplo. Sorrimos uns para os outros, desviaram-se para me dar entrada para a passagem (sem porta) à direita, como que assegurando-se de que entrava, e continuaram a bloquear o acesso à saída.
Entrei no que era uma espécie de refeitório. Com má acústica – as vozes ecoavam numa confusão de abóbadas cruzadas. Havia um balcão no canto em frente da entrada. E mesas corridas, paralelas ao balcão, que se repetiam indefinidamente, tanto quanto a vista e a atenção deixavam ver.
Lá estavas na segunda mesa, com o mesmo ar super-animado, achando a minha demora tão natural que nem a comentaste. Mantinhas conversas descontraídas com os utentes das mesas próximas. E ias petiscando coisas várias, que se iam sucedendo.
– Já viste isto? Que tal?
– Não sabia… Tantos judeus…
– Porque não? São como os tipos da pesada: só se vêem à noite.
Recomeçaste a conversar sem letra, mas com uma música, uma inspiração, fascinantes. Lembro-me que nada explicava estarmos ali, eram conversas paralelas. Àquele mundo paralelo. De vez em quando, chegavam mais petiscos. Com ar exótico, de apresentação pouco cuidada mas exalando cheiros de especiarias magnificamente doseadas. Verdadeiramente apetecíveis. Mal lhes toquei. Fiquei que tempos a sorrir, de cotovelo apoiado na mesa, segurando-me o queixo, embalada pelo som modelado, encantatório das tuas histórias entusiásticas, mímicas, coloridas.
O tempo passava e, muito de vez em quando, virava-me para ver se a porta do patamar estava livre. Nunca estava… E eu retomava o presente da tua voz, mal comendo o tempo todo, ainda que sem sacrifício.
Enquanto não se esclarecesse se havia uma saída directa para a rua, não me arriscava a engordar aquele centímetro que me havia de deixar em pânico, entalada na escada do alçapão.
Boa Fé, 9 de Julho de 2006
Friday, July 28, 2006
MARIA JOÂO PIRES
Uma das maiores concertistas de todos os tempos,
não aguentou mais e foi-se embora para o Brasil.
O país ficou mais pequenino,
mais parolo e
mais pobrezinho.
Pergunto-me se a ministra da Cultura e o
governo em geral, sabem quem é a
Maria João Pires.
Tenho dúvidas que saibam.
E é neste país sempre adiado que vamos
aniversariando todos os anos mas em mágoa
diária.
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não aguentou mais e foi-se embora para o Brasil.
O país ficou mais pequenino,
mais parolo e
mais pobrezinho.
Pergunto-me se a ministra da Cultura e o
governo em geral, sabem quem é a
Maria João Pires.
Tenho dúvidas que saibam.
E é neste país sempre adiado que vamos
aniversariando todos os anos mas em mágoa
diária.
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Thursday, July 20, 2006
"SÓ É NOVO O QUE JÁ ESTÁ ESQUECIDO"
Há muita gente (e boa por sinal), que se interroga por que há cada vez mais ricos e mais pobres. Vejamos o que se passava após a Restauração de Portugal, pela voz do historiador Rafael Valladares.
«A administração Bragança teve de se debater com um dilema aparentemente insolúvel: ou se incompatibilizava com os privilegiados, ou acentuava o mal-estar popular.»
E nenhum governante se incompatibiliza com os privilegiados, porque fazem parte dessa casta.
CHOQUE TECNOLÓGICO
No Carvoeiro, Algarve, uma turista entrou na CGD (onde há mais dinheiro do que a gente julga) e pediu para ir à Net. Responderam-lhe que não podia ser por estar avariado o computador! Mas a solução ainda foi mais brilhante:
- A senhora vá ali à loja da chinesa que tem lá computadores ligados à Net.
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«A administração Bragança teve de se debater com um dilema aparentemente insolúvel: ou se incompatibilizava com os privilegiados, ou acentuava o mal-estar popular.»
E nenhum governante se incompatibiliza com os privilegiados, porque fazem parte dessa casta.
CHOQUE TECNOLÓGICO
No Carvoeiro, Algarve, uma turista entrou na CGD (onde há mais dinheiro do que a gente julga) e pediu para ir à Net. Responderam-lhe que não podia ser por estar avariado o computador! Mas a solução ainda foi mais brilhante:
- A senhora vá ali à loja da chinesa que tem lá computadores ligados à Net.
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Thursday, July 06, 2006
CRIME CRACKER
Inicio a publicação da segunda novela de Ed B. Silverman, que é mais longa que a primeira e que, por isso levará mais tempo a postar.
Quanto à sua biografia poderão encontrar neste blog, aquando da publicação da primeira, o essencial da vida deste antropólogo que, nas horas em que deveria estar a descansar, escreve policiais a gozar com os livros policiais.
Tudo nesta novela é fruto
da imaginação da minha
vizinha que, naqueles três dias
e duas noites de cheia, me contou
esta história como sendo
verdadeira. Datas e tudo.
E.B.S.
ANTES DE...
... começar a ler esta novela, desejo responder a Henry Dalsdale, que assina uma pequena coluna crítica no "Washington Times".
Pegando na minha primeira novela O Caso da Mulher com Um Olho de Vidro, afirma ele (e resumo eu):
Primeiro: Que os personagens estão mal retratados fisicamente;
Segundo: Que não sei descrever cenários (interiores e exteriores) e
Terceiro: Nunca falo do estado do tempo.
Dalsdale tem razão nos três pontos. Portanto o leitor tem de contar com tudo isto à partida.
Só li a sua crítica quando ia a meio desta Crime Cracker e, então, cheio de raiva, fiz um enorme esforço, no Capítulo 15, para descrever o gabinete do encontro. Mas o caso é curioso: como conheço bem aquele gabinete, tive imensa dificuldade em retratá‑lo para o leitor. E esta hein?
Como não gosto de Dalsdale, vou vingar‑me da maneira mais suja, mais torpe.
Henry Dalsdale, um "menino‑família", gordinho, anafadinho, bem vestidinho e cheio de borbulhas na cara, foi meu colega de faculdade, em Antropologia. Quando comecei a publicar umas pequenas crónicas no house organ, considerou‑me seu fã nº.1, pelo que rolava, atrás de mim, lendo‑me, de olhos bolbudos lacrimejantes, uns plágios a Yeats. Um dia, já farto, disse‑lhe, com aquela honestidade que ainda temos na juventude, "tudo quanto escreves é uma merda". Jurou então vingar‑se. Levou trinta anos aguardando a oportunidade.
Depois deste ataque sujo, a defesa.
Não gosto de descrever totalmente certos personagens ao leitor; prefiro que seja este a encontrar, através dos seus comportamentos e maneiras de estar na vida, uma "figura física" para aqueles. Altos, gordos, baixos ou magros, de uma maneira geral, prefiro que seja você a imaginar este ou aquela. De uma maneira geral, claro.
Quanto aos cenários, bem. Tenho algumas peças de Teatro escritas (algumas publicadas e representadas). Quando escrevo novelas, evito cair na descrição normal dramatúrgica; não me sinto bem, nem me apetece, o que é que querem?
Para finalizar: o tempo. Não sei escrever sobre o tempo. Só conheço dois: o bom e o mau. Não conheço o nome das nuvens, os ventos e, além disso, não tenho paciência. Levar três páginas de computador a dizer ao leitor de que maneira é que está mau tempo é, em última análise, a combinação de uma chatice e chamar‑lhe estúpido. "Está mau tempo" - pronto! O leitor agora que, dentro das suas vivências de mau tempo, faça o favor de imaginar o boletim meteorológico. Idem para o "bom tempo".
Mestre Mark Twain disse, na sua novela The American Claimant: "O tempo constitui uma especialidade literária e mãos inexperientes não poderiam tirar qualquer partido dele."
Obrigado, Mestre. E.B.S.
1.
O início da manhã é muito importante. A tarde e a noite têm, quantas vezes e apenas, um sentido de continuidade, um prolongamento das primeiras ocorrências e factos. É como se a vida começasse ao acordar e, as restantes horas de alerta, fossem prismas de desdobramento, não das cores, mas dos factos.
Até à chegada da zona de caça, todos os acontecimentos são de extraordinária importância e quase premonitivos.
Assim, pela manhã o homem em tudo vê premonição. Se o tempo está antipático, borrascoso, se se corta ao fazer a barba, se o café deita por fora, se o atacador do sapato se parte no esticão final, se à camisa que pretendia vestir falta um botão, se não encontra aquele documento-arma que necessita levar para o escritório, se o pneu do carro está esvaído e tristemente esparramado no piso, tudo, mas tudo, pode indicar que o dia vai ser terrível... ou bonançoso. (Falamos, evidentemente, do tipo de homem pessimista ─ e solteiro ─, já que, os do tipo optimista são cada vez mais raros.)
Steve não estava incluído nos 2,7%, mas também não era, o que se pode chamar, um neurótico ou um maníaco‑depressivo. E não era bem um pessimista.
Nas classificações dos psicólogos, não estava com linhas muito acima ou muito abaixo da linearidade do "normal", dos que aceitam esta sociedade‑civilização, sem muita necessidade de álcool ou de drogas.
Steve não tinha recalcamentos de infância. Steve não tinha, aparentemente, qualquer alínea patológica. Mas, mesmo que a mãe passasse a vida a dizer que ele era "um neura", a verdade é que é chato, muito chato, abrir pela manhã a porta do carro e encontrar, deitadinho no banco traseiro, um cadáver.
Steve encontrou o cadáver de um homem bem vestido, penteado, calmo, elegante. Enfim, um cadáver decente, um cadáver classe A.
- Que porra! - Exclamou.
Steve, escriturário na International Insurance Co., não tinha, na verdade, razão para se mostrar optimista. Convenhamos que não dá alegria a ninguém, e logo pela manhã, a presença próxima de um cadáver. E ainda no nosso velho carro.
Julgamos, porém, que um momento já deveria o autor ter tido para apresentar Steve Larson.
Já sabemos que é escriturário numa companhia de seguros e, segundo a mãe (e não temos qualquer razão para duvidar da sua palavra), nasceu há 25 anos em Dayton, Ohio, naquele bairro já antigo, construído no ângulo sul da Biblioteca Nacional.
Quando o pai morreu, ao que consta de cirrose, tinha Steve 17 anos e frequentava o Ginásio, com esperança de frequentar também, dentro em breve, certas garotas do Luna Parque. E foi precisamente uma delas que o levou para Nova Iorque, com o tio, as espingardas e as bonecas de plástico.
Steve habituou‑se depressa a Nova Iorque, em tudo tão diferente de Dayton, mas não às espingardas, aos tiros, ao tio dela e a demais coisas como certos olhares que os atiradores atiravam à miúda. Por isso, após seis meses, trocou aquela família e demais atavios, por um emprego certinho, estudando à noite coisas menos importantes que a anatomia de Mary Lou, mas muito mais rentáveis - segundo imaginou na altura.
Quanto às suas capacidades, Steve não era, como habitualmente dizem as tias, "um rapaz promissor" mas tinha, a seu favor, uma boa apresentação física, um favorável ar ingénuo e uma pitadinha de imaginação. "Um homem comum", como definem os sociólogos; "um homem do povo", como dizem os políticos.
Fazia a sua vida com rigor micrométrico, repleta de hábitos solidamente adquiridos pelo que, um cadáver, mesmo que muito bem vestido e impecavelmente penteado, depositado no seu velho carro, o deixou atónito, primeiro, e muito zangado depois.
"Isto são coisas daquele gajo", pensou, referindo‑se ao Tio de Mary Lou, homem pouco temente a Deus e inimigo declarado da Polícia - de qualquer Polícia. "Isto é vingança, por ter abandonado a sobrinha", continuou a pensar. Mas depois reconheceu o seu erro, pois que nunca mais se tinham visto e que nem Mary Lou, nem o sinistro tio, sabiam onde morava.
- Porra! - Reexclamou.
Ordeiramente, desencostou o carro do passeio, virou à direita e dirigiu‑se para a Esquadra da Polícia.
"Vou chegar atrasado ao emprego". Pensou.
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Tuesday, July 04, 2006
FIM DE UM HERÓI CHAMADO ALFREDO
Quando tirei os olhos do monitor vi, naquele nicho da direita, na “galeria da família”, a foto do Alfredo, um parente afastado morto em Angola. Era o herói da família. Como sabem, todas as famílias têm o seu herói e nós tínhamos, há uns anos atrás, o Alfredo.
Os pais já morreram, os tios também e agora pergunto eu: que faz ali o Alfredo, que quase não conheci, pendurado juntamente com várias figuras e figurões da minha família? E, sem mais aquelas, fui buscar a moldura, desmanchei-a, limpei-a (muito bem o vidro) e, depois de procurar nos jornais e semanários, encontrei: uma foto muito boa, a cores, do Ricardo a voar, com uma rede de pesca em fundo. Ajustei a foto à medida do vidro, montei de novo a moldura e recoloquei-a no lugar onde anteriormente estava.
Voltei para o computador e observei cuidadosamente o efeito do Ricardo no meio das figuras e dos figurões. Ficou bem. Este sim é um verdadeiro herói. De quem nos podemos envaidecer, não desses heróis de pacotilha forjados pelo Estado Novo, não senhores. Este é autêntico e conhecido de toda a gente. Quando entrarem cá em casa vão exclamar: Olha o Ricardo, o que nunca aconteceu com o Alfredo. E estava eu meditando nisto que agora vos conto, quando vejo a foto quase sem contraste, do meu padrinho. Do seu sangue, não tem ninguém. Ninguém está vivo. E já faleceu há 50 anos. Convenhamos que não está ali a fazer nada.
Fui-me a ela e repeti a operação da outra: desmanchar e limpar. Com os jornais todos abertos e espalhados pela sala, foi fácil descortinar uma foto que coubesse bem ali. Havia muitas e a cores, de perfil e de frente. Escolhi uma e montei-a. Vi o resultado. Perfeito!
A casa ficou muito mais alegre e actual. E eu também rejuvenesci dois ou três anos.
Agora, quando levanto os olhos do monitor e olho para a direita, vejo contentes, o herói Ricardo e o eficiente Mister Scolari. Assim, sim. É uma boa galeria.
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Os pais já morreram, os tios também e agora pergunto eu: que faz ali o Alfredo, que quase não conheci, pendurado juntamente com várias figuras e figurões da minha família? E, sem mais aquelas, fui buscar a moldura, desmanchei-a, limpei-a (muito bem o vidro) e, depois de procurar nos jornais e semanários, encontrei: uma foto muito boa, a cores, do Ricardo a voar, com uma rede de pesca em fundo. Ajustei a foto à medida do vidro, montei de novo a moldura e recoloquei-a no lugar onde anteriormente estava.
Voltei para o computador e observei cuidadosamente o efeito do Ricardo no meio das figuras e dos figurões. Ficou bem. Este sim é um verdadeiro herói. De quem nos podemos envaidecer, não desses heróis de pacotilha forjados pelo Estado Novo, não senhores. Este é autêntico e conhecido de toda a gente. Quando entrarem cá em casa vão exclamar: Olha o Ricardo, o que nunca aconteceu com o Alfredo. E estava eu meditando nisto que agora vos conto, quando vejo a foto quase sem contraste, do meu padrinho. Do seu sangue, não tem ninguém. Ninguém está vivo. E já faleceu há 50 anos. Convenhamos que não está ali a fazer nada.
Fui-me a ela e repeti a operação da outra: desmanchar e limpar. Com os jornais todos abertos e espalhados pela sala, foi fácil descortinar uma foto que coubesse bem ali. Havia muitas e a cores, de perfil e de frente. Escolhi uma e montei-a. Vi o resultado. Perfeito!
A casa ficou muito mais alegre e actual. E eu também rejuvenesci dois ou três anos.
Agora, quando levanto os olhos do monitor e olho para a direita, vejo contentes, o herói Ricardo e o eficiente Mister Scolari. Assim, sim. É uma boa galeria.
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Monday, July 03, 2006
Santíssima Casa da Misericórdia
Que uma instituição comemore 508 anos, é obra. E é principalmente importante, tratando-se de uma instituição de caridade. Por certo muito bem tem feito, sendo eu um dos agradecidos por ter salvo minha mãe de morrer à fome, pois sua excelência o profe nobelado Egas Moniz declarara peremptório que “ela não come porque não quer”. Portanto, à Santa Casa no seu todo e a um modesto médico de pobrezinhos, chamado Amândio Pinto, sem condecorações nem comendas, mais uma vez obrigado.
O que já é obnóxio é a campanha dizendo “Fazendo o bem cada vez melhor”, num auto-elogio de giz a riscar quadro preto. O filme narcísico é de produção cara, cuidada, pormenorizada. Trabalho asseado. A campanha vai para o meio mais caro: a televisão e toda esta despesa de centenas de milhares de euros para se afirmar como boazinha, tratando dos pobrezinhos e dos coxinhos com muito carinho. Dá-lhes próteses e caldos de galinha.
Divulgar o programa das comemorações está certo; gastar milhares para chamar as atenções do povão, adjectivando a sua missão, elevando-a, está errado. O Provedor, que tem um ar simpático e também bonzinho, ainda vai a ministro, afianço-vos.
Se a moda pega, será uma benesse para as televisões. O filme do primeiro-ministro: “Eu estou cada vez mais convincente.” Do presidente da República: “Eu sou cada vez melhor Presidente.” Da ministra da Educação: “Eu cada vez sei melhor o que é uma sala de aula.”, e etc.
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O que já é obnóxio é a campanha dizendo “Fazendo o bem cada vez melhor”, num auto-elogio de giz a riscar quadro preto. O filme narcísico é de produção cara, cuidada, pormenorizada. Trabalho asseado. A campanha vai para o meio mais caro: a televisão e toda esta despesa de centenas de milhares de euros para se afirmar como boazinha, tratando dos pobrezinhos e dos coxinhos com muito carinho. Dá-lhes próteses e caldos de galinha.
Divulgar o programa das comemorações está certo; gastar milhares para chamar as atenções do povão, adjectivando a sua missão, elevando-a, está errado. O Provedor, que tem um ar simpático e também bonzinho, ainda vai a ministro, afianço-vos.
Se a moda pega, será uma benesse para as televisões. O filme do primeiro-ministro: “Eu estou cada vez mais convincente.” Do presidente da República: “Eu sou cada vez melhor Presidente.” Da ministra da Educação: “Eu cada vez sei melhor o que é uma sala de aula.”, e etc.
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Sunday, July 02, 2006
Banquete Lusitano
Não tenho tido tempo para "postar" nos últimos dias. Mas com a visita do meu filho Dario Marques, aproveitei um bom texto de sua autoria. Sobre futebol - é o que está a dar...
Ao longo desta Copa tenho apoiado 3 equipas, sendo uma delas a selecção brasileira que se mostrou apática e sem samba, uma equipa cheia de estrelas mas sem brilho, uma sombra daquilo que verdadeiramente é capaz....ou não! Vi um Ronaldo que de "Fenómeno" não tem nada, que seria incapaz de correr nem que a sua vida dependesse disso (presumo que o seu salário no Real Madrid seja pago em géneros alimentícios, provavelmente picanha e paella). Vi um Ronaldinho Gaúcho bêbado e sem ginga, a tropeçar numa bola que mais parecia de bowling quando se encontrava nos seus pés, errando 11 em cada 10 passes. Somente Robinho e Juan mostravam algum resquício de garra mas Carlos Alberto Parreira, com a sua loucura irreversível, negou-se a pôr o jovem talento a titular e nas subtituições tardias só fez merde (perdão pelo meu francês). Vi um quadrado com menos magia que um Luís de Matos sob o efeito de cocaína.... que desilusão!!!
Já a equipa portuguesa, apesar de todas as críticas a Luiz Felipe Scolari (o brasileiro responsável pelo orgulho português nos últimos tempos) , da contestação à lista de convocados (Baía?... Quem??), do hiato de 40 anos em termos de glória futebolística, conseguiu chegar às meias-finas da Copa do Mundo; e, diga-se de passagem, com mérito, apesar da equipa ainda não estar ao seu melhor nível (será preciso rezar mais à Nsa. Sra. do Caravaggio). Os jogadores portugueses em geral têm estado bem, uns melhor, outros pior (Mensagem a Pauleta - A bola NÃO é um queijo limiano!Remata com mais força...CORTA!!).
Isto tudo me lembra um pomposo banquete em que uns comem à fartasana e outros passam fome ancestral. Portugal, até agora, tem sido bem servido; comemos uma laranjas espremidas à força, comemos uns bifes, agora que venham umas boas taças de champagne (como o disse um fã). Só espero que os jogadores continuem com fome e não se esqueçam de levar umas chouriças para impalar a... (Inserir aqui a equipa da lasanha ou da salsicha alemã).
Bon appetit.
Dario Marques
PSS- Anexo ao texto uma foto do Peter Crouch a demonstrar os seus dotes futebolísticos....ou não! Eheheh!!!!!!!
Thursday, June 29, 2006
Ano da Graça de 2006
Ele levantou-se e disse:
- Portugal tem neste momento, contando os números
oficiais e os outros, para cima de 1 milhão de
desempregados.
Goooolo!!! Gooooooooooooooolo de Portugal!!!!!
E continuou a medo:
- Portugal tem o maior índice de analfabetismo e de
abandono escolar. Também na corrupção é o primeiro.
Gooooolo!!!! Não foi ainda. Falhou por pouco. Figo
escorregou!
- Portugal deixou de ser uma democracia para ser uma
mediocracia.
Cristiano Ronaldo dribla um, dribla outro e é.... falta!!!
falta do jogador holandês!!!!
- Já se construíram mais centros comerciais e estádios
de futebol, que hospitais, escolas e infantários.
Olhem Figo, passou um, passou outro... e..... caiu,
escorregou... o jogo continua com a bola na posse...
- Portugal trocou o bom senso por submarinos e por TVGs.
A compra dos submarinos, contudo, compreende-se: este
país quer provar que lá no fundo, no fundo, não é tão
estúpido como dizem.
Go go goooooollllo de Portugal!!!!! Gooooooooollllllllo!!!!!
- Para um jovem pianista do Fundão ir a um concurso
internacional, foi necessário que os comerciantes da cidade
lhe pagassem a viagem, maila professora. O mal deste
pequeno é não saber jogar à bola, mas trouxe para este
paizinho o primeiro prémio.
Goooooooooooooooooooooooooollooooooo!!!!!!!
- Maria João Pires está muito doente. Pela segunda vez
este ano. Nenhuma televisão deu a notícia por não ter
tempo livre senão para o futebol.
Goooooolo.... Não, não foi. É canto para Portugal!
- Fecham as maternidades. Fecham as escolas. Privatizam-se
serviços. Espera-se a todo o momento uma OPA hostil da
Espanha a Portugal.
Ganhámos só por um golo, mas ganhámos!
(A continuar em breve)
- Portugal tem neste momento, contando os números
oficiais e os outros, para cima de 1 milhão de
desempregados.
Goooolo!!! Gooooooooooooooolo de Portugal!!!!!
E continuou a medo:
- Portugal tem o maior índice de analfabetismo e de
abandono escolar. Também na corrupção é o primeiro.
Gooooolo!!!! Não foi ainda. Falhou por pouco. Figo
escorregou!
- Portugal deixou de ser uma democracia para ser uma
mediocracia.
Cristiano Ronaldo dribla um, dribla outro e é.... falta!!!
falta do jogador holandês!!!!
- Já se construíram mais centros comerciais e estádios
de futebol, que hospitais, escolas e infantários.
Olhem Figo, passou um, passou outro... e..... caiu,
escorregou... o jogo continua com a bola na posse...
- Portugal trocou o bom senso por submarinos e por TVGs.
A compra dos submarinos, contudo, compreende-se: este
país quer provar que lá no fundo, no fundo, não é tão
estúpido como dizem.
Go go goooooollllo de Portugal!!!!! Gooooooooollllllllo!!!!!
- Para um jovem pianista do Fundão ir a um concurso
internacional, foi necessário que os comerciantes da cidade
lhe pagassem a viagem, maila professora. O mal deste
pequeno é não saber jogar à bola, mas trouxe para este
paizinho o primeiro prémio.
Goooooooooooooooooooooooooollooooooo!!!!!!!
- Maria João Pires está muito doente. Pela segunda vez
este ano. Nenhuma televisão deu a notícia por não ter
tempo livre senão para o futebol.
Goooooolo.... Não, não foi. É canto para Portugal!
- Fecham as maternidades. Fecham as escolas. Privatizam-se
serviços. Espera-se a todo o momento uma OPA hostil da
Espanha a Portugal.
Ganhámos só por um golo, mas ganhámos!
(A continuar em breve)
Wednesday, June 21, 2006
GRANDE AUSÊNCIA
Por razões diversas não me tem sido possível estar
convosco neste blog. Como não tenho trabalho, o
meu tempo livre é muito diminuto.
"LendoLivros" também pode ser "LendoJornais", Numa
edição do Jornal do Fundão, encontrei esta peça sem
assinatura, de que gostei e, por isso, transcrevo:
"O paternalismo descabido de
um Portugal que não é exemplo
Achei piada à forma como vários "sectores" do nosso
país abordaram o jogo Portugal-Angola. Por alma de
quem é que temos de ser tão paternalistas com os
"palancas negras"? Portugal foi um dos piores colonialistas
da história mundial. Tivemos jeito para descobrir, é
verdade, mas depois não soubemos fazer o nosso trabalho.
Demos a língua e o futebol mas esquecemo-nos do resto.
Quando saímos das ex-colónias, nada ficou - só mesm0 a
miséria. Não os ensinámos nem ajudámos a crescer. Por
isso, não entendo por que motivo ainda hoje alguns
portugueses falam de Angola como um país irmão. Estou
certo de que mais de metade da população lusa vê em Angola
apenas um simples país africano, com os mesmos problemas
de muitos outros países africanos. Não vi nenhum angolano
dizer que somos povos irmãos. Porque será? Talvez porque
eles não têm uma visão tão romântica da situação. São mais
realistas. Nós é que temos a mania de nos armarmos em
irmãos mais velhos quando não temos qualidades para isso
(...)"
convosco neste blog. Como não tenho trabalho, o
meu tempo livre é muito diminuto.
"LendoLivros" também pode ser "LendoJornais", Numa
edição do Jornal do Fundão, encontrei esta peça sem
assinatura, de que gostei e, por isso, transcrevo:
"O paternalismo descabido de
um Portugal que não é exemplo
Achei piada à forma como vários "sectores" do nosso
país abordaram o jogo Portugal-Angola. Por alma de
quem é que temos de ser tão paternalistas com os
"palancas negras"? Portugal foi um dos piores colonialistas
da história mundial. Tivemos jeito para descobrir, é
verdade, mas depois não soubemos fazer o nosso trabalho.
Demos a língua e o futebol mas esquecemo-nos do resto.
Quando saímos das ex-colónias, nada ficou - só mesm0 a
miséria. Não os ensinámos nem ajudámos a crescer. Por
isso, não entendo por que motivo ainda hoje alguns
portugueses falam de Angola como um país irmão. Estou
certo de que mais de metade da população lusa vê em Angola
apenas um simples país africano, com os mesmos problemas
de muitos outros países africanos. Não vi nenhum angolano
dizer que somos povos irmãos. Porque será? Talvez porque
eles não têm uma visão tão romântica da situação. São mais
realistas. Nós é que temos a mania de nos armarmos em
irmãos mais velhos quando não temos qualidades para isso
(...)"
Monday, May 22, 2006
TEMOS BANDEIRA
Aquela bandeira estava realmente bonita. Aquelas
mulheres portuguesas esmeraram-se e os organiza-
dores também. Ficou bonita, vistosa e já vamos entrar
no Guiness. Ou seja: temos bandeira não temos e voz.
Aquela Portugesa nunca teve tanta desafinação. De
pôr as mãos nos ouvidos. Enfim, já todos sabemos que
não se pode ter tudo.
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mulheres portuguesas esmeraram-se e os organiza-
dores também. Ficou bonita, vistosa e já vamos entrar
no Guiness. Ou seja: temos bandeira não temos e voz.
Aquela Portugesa nunca teve tanta desafinação. De
pôr as mãos nos ouvidos. Enfim, já todos sabemos que
não se pode ter tudo.
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Friday, May 19, 2006
FESTIVAL DA CANÇÃO
Vocês viram ontem o festival da canção? Quando será que
os portugueses se convencem que, com amadorismos, não
se deve lá ir? De um modo geral, todas as canções eram
fracas: não traziam nada de novo - nem em melodia nem
em harmonia. Mas foram muito bem interpretadas. As
quatro beldades portuguesas foram apenas isso. Hoje já
não chega ter duas pernas espectaculares para ganhar
seja o que for. Curiosamente, as quatro tinham a voz
mal colocada, mas uma delas então, era um horror. Se os
responsáveis por este tipo de eventos pensa que pode
disfarçar este amadorismo com fatos bonitos e marcações
vistosas, engana-se. Os juris dos outros países sabem
perfeitamente detectar o amadorismo, até porque este
cheira. E à distância. Os telespectadores votantes dos
outros países também, pois não estão habituados a ver
os canais generalistas portugueses.
Depois vi a Revolta dos Pastéis de Nata. Apesar de
pensarem que têm mais graça do que na verdade têm,
dei o tempo por bem ocupado já porque conheci uma menina
que apresentaram como atriz já de corrículo feito. Com uma
dicção pobre e uma permanente preocupação com o cabelo.
Em Portugal ela pareceu só está preocupada com três
ou quatro que lhe podem tirar o lugar; se fosse no Brasil,
estaria preocupada com, pelo menos, duzentas, a dizer
bem e com bom jogo fisionónico. Em Portugal não é
preciso dizer que se tem um olho para se ser rei; basta
dizer que se tem. Como os outros são cegos...
Tudo isto afinal não é para rir.
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os portugueses se convencem que, com amadorismos, não
se deve lá ir? De um modo geral, todas as canções eram
fracas: não traziam nada de novo - nem em melodia nem
em harmonia. Mas foram muito bem interpretadas. As
quatro beldades portuguesas foram apenas isso. Hoje já
não chega ter duas pernas espectaculares para ganhar
seja o que for. Curiosamente, as quatro tinham a voz
mal colocada, mas uma delas então, era um horror. Se os
responsáveis por este tipo de eventos pensa que pode
disfarçar este amadorismo com fatos bonitos e marcações
vistosas, engana-se. Os juris dos outros países sabem
perfeitamente detectar o amadorismo, até porque este
cheira. E à distância. Os telespectadores votantes dos
outros países também, pois não estão habituados a ver
os canais generalistas portugueses.
Depois vi a Revolta dos Pastéis de Nata. Apesar de
pensarem que têm mais graça do que na verdade têm,
dei o tempo por bem ocupado já porque conheci uma menina
que apresentaram como atriz já de corrículo feito. Com uma
dicção pobre e uma permanente preocupação com o cabelo.
Em Portugal ela pareceu só está preocupada com três
ou quatro que lhe podem tirar o lugar; se fosse no Brasil,
estaria preocupada com, pelo menos, duzentas, a dizer
bem e com bom jogo fisionónico. Em Portugal não é
preciso dizer que se tem um olho para se ser rei; basta
dizer que se tem. Como os outros são cegos...
Tudo isto afinal não é para rir.
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FESTIVAL DA CANÇÃO
Vocês viram ontem o festival da canção? Quando será que
os portugueses se convencem que, com amadorismos, não
se deve lá ir? De um modo geral, todas as canções eram
fracas: não traziam nada de novo - nem em melodia nem
em harmonia. Mas foram muito bem interpretadas. As
quatro beldades portuguesas foram apenas isso. Hoje já
não chega ter duas pernas espectaculares para ganhar
seja o que for. Curiosamente, as quatro tinham a voz
mal colocada, mas uma delas então, era um horror. Se os
responsáveis por este tipo de eventos pensa que pode
disfarçar este amadorismo com fatos bonitos e marcações
vistosas, engana-se. Os juris dos outros países sabem
perfeitamente detectar o amadorismo, até porque este
cheira. E à distância. Os telespectadores votantes dos
outros países também, pois não estão habituados a ver
os canais generalistas portugueses.
Depois vi a Revolta dos Pastéis de Nata. Apesar de
pensarem que têm mais graça do que na verdade têm,
dei o tempo por bem ocupado já porque conheci uma menina
que apresentaram como atriz já de corrículo feito. Com uma
dicção pobre e uma permanente preocupação com o cabelo.
Em Portugal ela pareceu só está preocupada com três
ou quatro que lhe podem tirar o lugar; se fosse no Brasil,
estaria preocupada com, pelo menos, duzentas, a dizer
bem e com bom jogo fisionónico. Em Portugal não é
preciso dizer que se tem um olho para se ser rei; basta
dizer que se tem. Como os outros são cegos...
Tudo isto afinal não é para rir.
----------------------
os portugueses se convencem que, com amadorismos, não
se deve lá ir? De um modo geral, todas as canções eram
fracas: não traziam nada de novo - nem em melodia nem
em harmonia. Mas foram muito bem interpretadas. As
quatro beldades portuguesas foram apenas isso. Hoje já
não chega ter duas pernas espectaculares para ganhar
seja o que for. Curiosamente, as quatro tinham a voz
mal colocada, mas uma delas então, era um horror. Se os
responsáveis por este tipo de eventos pensa que pode
disfarçar este amadorismo com fatos bonitos e marcações
vistosas, engana-se. Os juris dos outros países sabem
perfeitamente detectar o amadorismo, até porque este
cheira. E à distância. Os telespectadores votantes dos
outros países também, pois não estão habituados a ver
os canais generalistas portugueses.
Depois vi a Revolta dos Pastéis de Nata. Apesar de
pensarem que têm mais graça do que na verdade têm,
dei o tempo por bem ocupado já porque conheci uma menina
que apresentaram como atriz já de corrículo feito. Com uma
dicção pobre e uma permanente preocupação com o cabelo.
Em Portugal ela pareceu só está preocupada com três
ou quatro que lhe podem tirar o lugar; se fosse no Brasil,
estaria preocupada com, pelo menos, duzentas, a dizer
bem e com bom jogo fisionónico. Em Portugal não é
preciso dizer que se tem um olho para se ser rei; basta
dizer que se tem. Como os outros são cegos...
Tudo isto afinal não é para rir.
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Wednesday, May 17, 2006
E esta hein?!
Diz Albert Ronald Morales no seu livro Frutoterapia,
"A hora da refeição é uma cerimónia; comer em paz,
sem cólera e sem desgostos sentimentais, é muito
recomendável para evitar transtornos digestivos."
Fico a pensar em que estado se encontram milhões de
famílias que auferem o salário mínimo e se sentam à
mesa olhando para o carapau. Quando o há.
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"A hora da refeição é uma cerimónia; comer em paz,
sem cólera e sem desgostos sentimentais, é muito
recomendável para evitar transtornos digestivos."
Fico a pensar em que estado se encontram milhões de
famílias que auferem o salário mínimo e se sentam à
mesa olhando para o carapau. Quando o há.
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Monday, May 15, 2006
Lendo Livros
Obrigado João e LL pelos vossos comentários. Espero os da Milu.
Folheando livros destaquei este pensamento:
"Como pode ser assim tão generosa a vida, que fornece uma
compensação tão sublime à mediocridade?", de Umberto Eco.
É esta a frase que devemos apor ao ecrã dos nossos televisores.
Amanhã há mais.
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Folheando livros destaquei este pensamento:
"Como pode ser assim tão generosa a vida, que fornece uma
compensação tão sublime à mediocridade?", de Umberto Eco.
É esta a frase que devemos apor ao ecrã dos nossos televisores.
Amanhã há mais.
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Saturday, May 13, 2006
Há cada coisa!
Estou a ler um livro que em breve será lançado no
mercado português pela editora A Esfera dos Livros,
intitulado Frutoterapia, nutrição e saúde. Este
interessante e útil livro diz que abusando-se da
romã, poderá duplicar a visão. Vou ver bem como
se faz e experimentar, para quando receber a pensão
de reforma ingerir a quantidade certa de romãs.
Julgam que estou a brincar? Não estou. Mais vale
andar iludido mas feliz por meia hora, do que ser
realista e infeliz durante um mês inteiro. Elementar,
meu caro Watson.
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mercado português pela editora A Esfera dos Livros,
intitulado Frutoterapia, nutrição e saúde. Este
interessante e útil livro diz que abusando-se da
romã, poderá duplicar a visão. Vou ver bem como
se faz e experimentar, para quando receber a pensão
de reforma ingerir a quantidade certa de romãs.
Julgam que estou a brincar? Não estou. Mais vale
andar iludido mas feliz por meia hora, do que ser
realista e infeliz durante um mês inteiro. Elementar,
meu caro Watson.
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SÉRIO PEDIDO DE AJUDA
Algum dos meus leitores poderá indicar-me onde se
compra o papel higiénico preto que agora se anuncia?
Como não tenho roupa dessa cor, preciso do papel
para o transformar em lenço do pescoço nos dias 22 e 23.
Obrigado pela ajuda.
compra o papel higiénico preto que agora se anuncia?
Como não tenho roupa dessa cor, preciso do papel
para o transformar em lenço do pescoço nos dias 22 e 23.
Obrigado pela ajuda.
Friday, May 12, 2006
Coisas...
Coloquei aqui um texto que desapareceu.
Mas prometo agora que já temos o Simplex e o Choque Tecnológico, dar mais tempo ao blog.
Desculpem amigos e inimigos.
A.B.M.
Mas prometo agora que já temos o Simplex e o Choque Tecnológico, dar mais tempo ao blog.
Desculpem amigos e inimigos.
A.B.M.
Tuesday, April 25, 2006
41. Cravos
Hoje vou comemorar o 25 de Abril, com cravos e companheiros alentejanos.
Viva o 25 de Abril! Sempre!
Álvaro
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Viva o 25 de Abril! Sempre!
Álvaro
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Saturday, April 22, 2006
40. NOTÍCIA
Aos meus 3 - leitores -3, informo que até 3ª.Feira
não há nada para ninguém.
Não fiquem assim, caramba! Não é caso para isso.
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não há nada para ninguém.
Não fiquem assim, caramba! Não é caso para isso.
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Friday, April 21, 2006
39. CICLO PREPARATÓRIO
Emília não reparou no degrau e tropeçou. Naquela penumbra
era natural. Natural principalmente para quem entra nervoso
e desconhece a casa.
Ao fundo, uma zona negra onde se adivinham espelhos por via
dos reflexos. Há sempre reflexos na escuridão dos espelhos.
- A menina...
A voz veio da escuridão, à direita do degrau. A voz de homem.
Mas uma voz sem timbre - se tal é possível. Uma voz sem
manifestação de interesse ou de interrogação.
- Procuro a dona Marta... Está?
Agora sim, havia algo na voz. Talvez ironia fedorenta, antiga.
- Realmente ela vive aqui.
Do fundo dos espelhos, a dona Marta atira, rouca:
- Vem cá.
Emília avança cuidadosamente por entre cadeiras e mesas.
Começa a enxergar melhor. Dona Marta, ali sentada, fuma e
bebe qualquer coisa. Talvez água, pensa Emília.
- Senta-te, rapariga.
E aguarda. Ritual costumeiro, sabido.
- Venho recomendada pela minha prima... chama-se também
Emília das Neves.
- Senta-te, já te disse.
Os copos - os da voz sem interesse -, continuam a tocar-se
como chocalhos, lá atrás, talvez mais longe do que a Emília
pensava.
- Queres, então, ficar connosco?
- Sim, minha senhora.
- Dona Maria.
- Sim, dona Maria.
- Então ouve com atenção. Digo-te apenas uma vez... pois tenho
mais que fazer...
E os copos a chocalhar.
- Vais para minha casa, tomas banho e pedes roupa à Rita.
- Sim...
- Vens para cá todas as noites. Das nove às três da manhã.
Todas as noites, percebes? Todas.
- Sim, dona Maria.
- Não há períodos, nem enxaquecas, nem dores de barriga,
nem caganeiras, nem nada. Percebes?
- Sim, dona Maria.
- Receberás mil por dia. Ou mais, se alternares.
- Tenho a mala à entrada da porta. Acha que não a vão
roubar?
- O Joaquim já a trouxe para dentro.
- Qual Joaquim?
- Podes alternar?
- Minha senhora... dona Maria... não sei o que é...
- Se também beberes, receberás uma percentagem sobre
o consumo da mesa, mais cem escudos por cada garrafa
de champanhe nacional e quatrocentos pelo francês. Em
cada coquetel ganhas cinquenta escudos.
- Não estou habituada... fico tonta.
- Não ficas. Os coqueteles são sumos de fruta. Quanto ao
champanhe, nunca bebas mais do que uma taça, mesmo
que venham várias garrafas para a mesa. Não é, Joaquim?
Da entrada formicada, uma voz distante, dolente,
indiferente, atravessou a sala:
- É sim, dona Maria.
- A Rita ensina-te, pois a tua prima já cá não está. Mas vê
lá se fixas - e olha desconfiada para a Emília -, fizeste a
quarta classe? Bem, não interessa. Ouve com atenção.
Quando vier uma garrafa - que tu pedes -, dizes que queres
dançar. Dá cá um fósforo.
- Não tenho. Não fumo, dona Maria.
- Passarás a fumar. Ouve. Quando vier uma garrafa, dizes que queres
dançar. Tropeças ligeiramente na mesa e o champanhe das
taças entorna-se. Pedes desculpa e vai dançar.
Esta rapariga é uma desastrada. Nunca soube fazer nada.
Só pensa em trapos e nas merdas para pôr na cara. Não
arreanjou casamento mas já teve de fazer um aborto. Com
um soldado, vejam lá...
Ó meu querido pai! Pai! Meu quweido pai!
- O Joaquim arranja o frapê com água e gelo. O empregado de
mesa, o criado, quando abre a garrafa, entorna dentro do frapê
um terço, a pretexto de tirar a espuma. Se conseguires mandar
vir segunda garrafa, o truque do encontrão na mesa já não
serve. Pedes licença e vais ao tualete... sabes o que é?...
- Sei, sim...
- Então, vais ao tualete e pedes à dona Conceição, a velha que lá
está, um rolo de papel higiénico, tiras um bom bocado, dobras e
metes entre as mamas. Por estas e por outras, não podes vir
com camisolas de gola alta.
- Pois não.
- Sempre que levares a taça à boca, entornas para o papel
higiénico, isto no meio de risos, de festas e de apalpões. Quando o
papel já estiver ensopado, voltas ao tualete e mudas. O que é?
- Sempre deve escorrer algum pela barriga abaixo...
- Escorre trezentos ou mais escudos...
- Sim dona Maria...
- Se o cliente é dos bons, o Joaquim faz-te sinal. Começas a
fingir-te bêbeda e a dizer disparates. Os homens gostam que as
mulheres digam disparates, asneiras... excita-os...
- Sim, senhora... dona Maria.
- Mantém-te sempre a segurar a taça, a rodá-la entre os dedos.
Sempre que ele se virar ou esteja distraído a aparpar-te,
despejas a taça no frapé. Por isso o balde vai sempre meio de
água. Mas voltas imediatamente a servir-te. Olha: convém
dares à dona Conceição uma muda completa. Todas têm.
- Já chega por hoje.
- Cala-te Joaquim!
Nem ruídos de copos, nem de ventoinhas, nem de cadeiras,
nem de mesas, nem de conversas ou de risos ou de música,
nada. Silêncio.
- E quando me apetecer... realmente... beber um copo?
- Fazes contas com o Joaquim, vais à tua vida, procuras a
tua prima e bebes um copo onde muito bem entenderes,
mas não voltas cá mais. Ah! Não podes sair antes das três.
Depois dessa hora é contigo...
- Sim, senhora... dona Maria. Quando começo?
- Hoje à noite. Vai ter com a senhora Rita. Ela diz-te o
resto. Vai lá.
Emília levantou-se e a dona Maria olhou-a mansamente,
sem curiosidade. Era apenas mais uma.
- Dê-me a minha mala, senhor Joaquim, se faz favor...
- Amanhã vais conhecer o patrão.
- Não é ela?
- Não. O patrão é pior. Adeus, Emília, até logo.
- Até logo, senhor Joaquim.
(Do livro "Histórias do Arco-da-Velha1" - Ed. do autor,
1996)
era natural. Natural principalmente para quem entra nervoso
e desconhece a casa.
Ao fundo, uma zona negra onde se adivinham espelhos por via
dos reflexos. Há sempre reflexos na escuridão dos espelhos.
- A menina...
A voz veio da escuridão, à direita do degrau. A voz de homem.
Mas uma voz sem timbre - se tal é possível. Uma voz sem
manifestação de interesse ou de interrogação.
- Procuro a dona Marta... Está?
Agora sim, havia algo na voz. Talvez ironia fedorenta, antiga.
- Realmente ela vive aqui.
Do fundo dos espelhos, a dona Marta atira, rouca:
- Vem cá.
Emília avança cuidadosamente por entre cadeiras e mesas.
Começa a enxergar melhor. Dona Marta, ali sentada, fuma e
bebe qualquer coisa. Talvez água, pensa Emília.
- Senta-te, rapariga.
E aguarda. Ritual costumeiro, sabido.
- Venho recomendada pela minha prima... chama-se também
Emília das Neves.
- Senta-te, já te disse.
Os copos - os da voz sem interesse -, continuam a tocar-se
como chocalhos, lá atrás, talvez mais longe do que a Emília
pensava.
- Queres, então, ficar connosco?
- Sim, minha senhora.
- Dona Maria.
- Sim, dona Maria.
- Então ouve com atenção. Digo-te apenas uma vez... pois tenho
mais que fazer...
E os copos a chocalhar.
- Vais para minha casa, tomas banho e pedes roupa à Rita.
- Sim...
- Vens para cá todas as noites. Das nove às três da manhã.
Todas as noites, percebes? Todas.
- Sim, dona Maria.
- Não há períodos, nem enxaquecas, nem dores de barriga,
nem caganeiras, nem nada. Percebes?
- Sim, dona Maria.
- Receberás mil por dia. Ou mais, se alternares.
- Tenho a mala à entrada da porta. Acha que não a vão
roubar?
- O Joaquim já a trouxe para dentro.
- Qual Joaquim?
- Podes alternar?
- Minha senhora... dona Maria... não sei o que é...
- Se também beberes, receberás uma percentagem sobre
o consumo da mesa, mais cem escudos por cada garrafa
de champanhe nacional e quatrocentos pelo francês. Em
cada coquetel ganhas cinquenta escudos.
- Não estou habituada... fico tonta.
- Não ficas. Os coqueteles são sumos de fruta. Quanto ao
champanhe, nunca bebas mais do que uma taça, mesmo
que venham várias garrafas para a mesa. Não é, Joaquim?
Da entrada formicada, uma voz distante, dolente,
indiferente, atravessou a sala:
- É sim, dona Maria.
- A Rita ensina-te, pois a tua prima já cá não está. Mas vê
lá se fixas - e olha desconfiada para a Emília -, fizeste a
quarta classe? Bem, não interessa. Ouve com atenção.
Quando vier uma garrafa - que tu pedes -, dizes que queres
dançar. Dá cá um fósforo.
- Não tenho. Não fumo, dona Maria.
- Passarás a fumar. Ouve. Quando vier uma garrafa, dizes que queres
dançar. Tropeças ligeiramente na mesa e o champanhe das
taças entorna-se. Pedes desculpa e vai dançar.
Esta rapariga é uma desastrada. Nunca soube fazer nada.
Só pensa em trapos e nas merdas para pôr na cara. Não
arreanjou casamento mas já teve de fazer um aborto. Com
um soldado, vejam lá...
Ó meu querido pai! Pai! Meu quweido pai!
- O Joaquim arranja o frapê com água e gelo. O empregado de
mesa, o criado, quando abre a garrafa, entorna dentro do frapê
um terço, a pretexto de tirar a espuma. Se conseguires mandar
vir segunda garrafa, o truque do encontrão na mesa já não
serve. Pedes licença e vais ao tualete... sabes o que é?...
- Sei, sim...
- Então, vais ao tualete e pedes à dona Conceição, a velha que lá
está, um rolo de papel higiénico, tiras um bom bocado, dobras e
metes entre as mamas. Por estas e por outras, não podes vir
com camisolas de gola alta.
- Pois não.
- Sempre que levares a taça à boca, entornas para o papel
higiénico, isto no meio de risos, de festas e de apalpões. Quando o
papel já estiver ensopado, voltas ao tualete e mudas. O que é?
- Sempre deve escorrer algum pela barriga abaixo...
- Escorre trezentos ou mais escudos...
- Sim dona Maria...
- Se o cliente é dos bons, o Joaquim faz-te sinal. Começas a
fingir-te bêbeda e a dizer disparates. Os homens gostam que as
mulheres digam disparates, asneiras... excita-os...
- Sim, senhora... dona Maria.
- Mantém-te sempre a segurar a taça, a rodá-la entre os dedos.
Sempre que ele se virar ou esteja distraído a aparpar-te,
despejas a taça no frapé. Por isso o balde vai sempre meio de
água. Mas voltas imediatamente a servir-te. Olha: convém
dares à dona Conceição uma muda completa. Todas têm.
- Já chega por hoje.
- Cala-te Joaquim!
Nem ruídos de copos, nem de ventoinhas, nem de cadeiras,
nem de mesas, nem de conversas ou de risos ou de música,
nada. Silêncio.
- E quando me apetecer... realmente... beber um copo?
- Fazes contas com o Joaquim, vais à tua vida, procuras a
tua prima e bebes um copo onde muito bem entenderes,
mas não voltas cá mais. Ah! Não podes sair antes das três.
Depois dessa hora é contigo...
- Sim, senhora... dona Maria. Quando começo?
- Hoje à noite. Vai ter com a senhora Rita. Ela diz-te o
resto. Vai lá.
Emília levantou-se e a dona Maria olhou-a mansamente,
sem curiosidade. Era apenas mais uma.
- Dê-me a minha mala, senhor Joaquim, se faz favor...
- Amanhã vais conhecer o patrão.
- Não é ela?
- Não. O patrão é pior. Adeus, Emília, até logo.
- Até logo, senhor Joaquim.
(Do livro "Histórias do Arco-da-Velha1" - Ed. do autor,
1996)
Wednesday, April 19, 2006
38. CORREIO DOS LEITORES
Olá, amigos.
Devo possuir o único blog no mundo com dois leitores. Dois.
Um homem e uma mulher. O que é notável. Esfalfei-me
para lhes dar uma novela de Ed B. Silverman, mas não posso
dar-vos a segunda. Tem um problema técnico que ainda não
sei resolver. A tradução da terceira novela está a meio... há
três anos. Mas, para vocês dois, todos os sacrifícios são poucos.
Um abraço, amigos
O editor.
Devo possuir o único blog no mundo com dois leitores. Dois.
Um homem e uma mulher. O que é notável. Esfalfei-me
para lhes dar uma novela de Ed B. Silverman, mas não posso
dar-vos a segunda. Tem um problema técnico que ainda não
sei resolver. A tradução da terceira novela está a meio... há
três anos. Mas, para vocês dois, todos os sacrifícios são poucos.
Um abraço, amigos
O editor.
Saturday, April 15, 2006
37. O caso da mulher com um olho de vidro (final)
18.
Com as persianas devidamente ajustada, o sol entrava
suavemente pelo quarto de Bronco Vale, no St. James
Hospital. O mesmo hospital. O mesmo quarto.
Na cadeira habitual, a sra. Marlowee vigiava as
reacções do detective. Ele estava, nesse momento,
a sair de uma calma sesta.
- Como se sente?
- Melhor... fisicamente.
- Correu tudo bem, Bronco. O dr. Kildaire diz que são
dez dias para convalescer e recuperar.
- Correu tudo mal, Linda.
- Não percebo. O que é que correu mal, para além do
tiro?
Bronco Vale pensou. Pensou devagar. Talvez, nesse
momento, fosse um verdadeiro homem.
- Sou realmente um puto pouco esperto, como disse
o Chefe O'Hara. E, os pouco espertos, putos ou não,
é que decidem sobre a vida dos outros.
- Calma, Bronco.
- Pois claro, Linda. Calma.
- Chegou a ler os jornais?
- Sim, A enfermeira teve a atenção de me trazer dois.
Maureen, aliás Lys Anderson, explodiu no carro
celular, a caminho da prisão. No dia seguinte foi a vez
de Boyle. Eu... eu vou ser condecorado.
- Não se canse, Bronco.
- Rockfeller continua apanhado da cabeça. Tem um
problema de pituitária, tudo lhe cheira mal. Ficou com
a pituitária destruída... parece.
Silêncio. Linda, por hábito, ajeita a saia sobre os
joelhos.
- Ficámos sós, Bronco.
- Para quê? Para que o puto pouco esperto volte a
matar amigos que querem ser felizes?
Como sempre, Linda só compreendia o que lhe
convinha.
- Deixe essa profissão, Bronco. Deixe de ser detective
e de defender uma personalidade que não corresponde
verdadeiramente à sua.
E, com determinação, levanta-se, curva-se sobre a
cama e beija-o ternamente na boca. O beijo de uma
mulher para um homem. Um beijo adulto, um pouco
sôfrego, talvez.
- Porra! - exclamou da porta o dr. Kildaire, voltando
a fechá-la apressadamente.
(Final da novela de Ed. B. Silverman)
Com as persianas devidamente ajustada, o sol entrava
suavemente pelo quarto de Bronco Vale, no St. James
Hospital. O mesmo hospital. O mesmo quarto.
Na cadeira habitual, a sra. Marlowee vigiava as
reacções do detective. Ele estava, nesse momento,
a sair de uma calma sesta.
- Como se sente?
- Melhor... fisicamente.
- Correu tudo bem, Bronco. O dr. Kildaire diz que são
dez dias para convalescer e recuperar.
- Correu tudo mal, Linda.
- Não percebo. O que é que correu mal, para além do
tiro?
Bronco Vale pensou. Pensou devagar. Talvez, nesse
momento, fosse um verdadeiro homem.
- Sou realmente um puto pouco esperto, como disse
o Chefe O'Hara. E, os pouco espertos, putos ou não,
é que decidem sobre a vida dos outros.
- Calma, Bronco.
- Pois claro, Linda. Calma.
- Chegou a ler os jornais?
- Sim, A enfermeira teve a atenção de me trazer dois.
Maureen, aliás Lys Anderson, explodiu no carro
celular, a caminho da prisão. No dia seguinte foi a vez
de Boyle. Eu... eu vou ser condecorado.
- Não se canse, Bronco.
- Rockfeller continua apanhado da cabeça. Tem um
problema de pituitária, tudo lhe cheira mal. Ficou com
a pituitária destruída... parece.
Silêncio. Linda, por hábito, ajeita a saia sobre os
joelhos.
- Ficámos sós, Bronco.
- Para quê? Para que o puto pouco esperto volte a
matar amigos que querem ser felizes?
Como sempre, Linda só compreendia o que lhe
convinha.
- Deixe essa profissão, Bronco. Deixe de ser detective
e de defender uma personalidade que não corresponde
verdadeiramente à sua.
E, com determinação, levanta-se, curva-se sobre a
cama e beija-o ternamente na boca. O beijo de uma
mulher para um homem. Um beijo adulto, um pouco
sôfrego, talvez.
- Porra! - exclamou da porta o dr. Kildaire, voltando
a fechá-la apressadamente.
(Final da novela de Ed. B. Silverman)
Monday, April 10, 2006
36. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
17.
Eram nove e meia da manhã quando Eugene O'Hara subiu
de elevador até ao apartamento de Maureen. Levava a
arma destravada, no amplo bolso do sobretudo.
Maureen acabara de se arrumar. Uma camisola branca de
malha, de gola alta, e umas calças de veludo vermelho,
justas ambas ao corpo, realçavam a sua silhueta. A casa
cheirava ao café da manhã, acabado de fazer. Acendeu um
cigarro e pegou na TV News.
O toque da campainha não a incomodou. Foi atender
indiferente.
- Quem é?
- Eugene O'Hara
Abriu.
Especado, olhando-a fixamente com um só olho, estava
O'Hara.
Maureen sentiu o sangue subir-lhe ao rosto. Uma pequena
vertigem levou os seus pensamentos, em turbilhão, a
uma rápida sequência de infância, adolescência e presente.
O coração acelerou. "Oh não! Não pode ser! Como é
possível?!"
A muito custo, o polícia disse, como em segredo:
- Ainda me chamo Eugene - e estendeu a mão humana.
Maureen cada vez mais perturbada, pegou nela
carinhosamente e puxou-o para dentro de casa.
Olharam-se atónitos.
- Finalmente, querido! Óh, meu Deus! Não pode ser! Não
acredito! Não é verdade! Essas coisas não acontecem...
não há milagres...
E, esquecendo-se de fechar a porta, abraçou-se a O'Hara,
passando-lhe as mãos pela cabeça e pelas costas, com
inexcedível carinho, mas também um certo sentido de
posse.
- Lys, meu amor - murmurou O'Hara, com voz rouca. -
Lys... sempre andei perdido... sempre andei perdido
sem ti...
Maureen, aliás Lys Anderson, fechou a porta de entrada
e ajudou o detective a despir o sobretudo.
- Querido. Soube que tinhas ficado estropiado no
Vietnam, mas ninguém me soube dizer mais nada. Cheguei
a falar com o adjunto do secretário de estado da Defesa.
Tratou-me e falou como se tivesses deixado de existir.
Fez-se um silêncio total à tua volta. Sofri tanto...
- Um atentado à bomba. Não vim directamente para os
Estados Unidos. Por questões de segutança, fiquei alguns
anos em Inglaterra. Combinação entre as suas secretas.
- Anda, meu querido, senta-te.
Ainda confuso, sentindo a irrealidade do momento,
sentou-se no sofá e estendeu a perna de pau sobre uma
cadeira.
- Porquê O'Hara? Ouvi falar do "Chefe O'Hara"... nunca
imaginaria que fosses tu.
- Trabalhei na contra-espionagem. Parece que fiz algumas
coisas de jeito, pelo que há vários sócios que me apagarão
com todo o prazer. O departamento sugeriu uma longa
estadia em Inglaterra e que usasse o apelido de meu avô.
Que desaparecesse da circulação. Assim... sem um olho,
sem perna e sem mão, será difícil reconhecerem-me... e
não penso que ainda andem à minha procura... acabou tudo.
Saí da agência e ingressei na Polícia... para mais segurança.
- Conheci-te logo.
- Não foi pela vista que me conheceste; foi pelo coração.
- Pela vista... como podes observar, também eu tive um
problema.
- Conta-me, Lys, meu amor.
- Espera, querido. Temos tanto que dizer um ao outro...
vamos tomar um café, meu amor...
Lys pouco demorou na cozinha. O café da manhã já estava
pronto. Durante estes breves momentos, O'Hara
murmurava apenas : "Ó meu Deus! Ó meu Deus!"
Ela trouxe uma bandeja com duas chávenas e um globo de
vidro de café. A bandeja tremia-lhe nas mãos. Serviram-se,
sorrindo um para o outro, como dois parvos adolescentes.
- Fui operada, após o acidente com o carro. O vidro da
frente estilhaçou-se e um pedaço cortou-me uma vista.
Nada se pôde fazer. Coloquei, então, este olho artificial.
De início incomoda, mas depois o hábito faz o resto.
- Quase que não se nota, Lys. Precisamente na mesma cor e
formato do outro, do bom.
- Queres experimentar, Eugene?
- Pôr o teu olho? Posso?
- O meu não. Anda cá.
Pegou-lhe na mão e levou-o para o quarto. De um pequeno
armário, retirou uma bonita caixa envernizada. Abriu-a.
Dentro, sobre veludo branco, uma colecção de olhos de
várias cores e tamanhos. Parecia uma multidão curiosa
a espreitar para Lys e para o polícia.
- Nem sempre temos os olhos da mesma cor. Há suaves
tonalidades que cambiam consoante a nossa disposição
e a luz do dia. Com esta colecção, estou sempre mais apta
a escolher.
- Mas... e os tamanhos?
- Bem... se bebemos um pouco mais, à noite, no outro dia
temos os olhos maiores...
O'Hara retirou um olho, levantou rapidamente a pála e
colocou-o na cavidade ocular, mirando-se no espelho do
toucador. Estava com um olho castanho e outro verde-
-escuro. Ou melhor, o castanho vigiando curiosamente
o verde-escuro.
- Esse não te fica bem, querido. Experimenta este
castanho.
-Áh! - exclamou O'Hara, mirando-se novamente ao
espelho.
Parecia verdadeiramente outro homem. Quae não se
notava a diferença entre o olho verdadeiro e o falso,
excepto quando se olhava para um dos lados e o outro
se recusava a acompanhar o parceiro. O'Hara
endireitou-se, cresceu e abraçou fogosamente Lys.
Beijaram-se como há quinze anos, com extremo ardor
e primaveril juventude.
- Eugene, meu amor... - balbuciou ternamente Lys, mas
logo se recompôs.
- Pronto, Eugene. Vamos para a sala. Temos de falar...
anda, querido.
Regressaram, arfando, para a sala, devorando-se
mutuamente, cada um com o seu olho são.
O'Hara sorriu da ideia.
- Lys. Se na rua, fores sempre do meu lado direito,
poderemos vermo-nos perfeitamente, já que o meu olho
falso é o esquerdo e o teu é o direito...
Lys riu-se também, sem complexos; já os ultrapassara
há muito.
Fez-se então o silêncio que ambos temiam. O café, nas
chávenas, esperava.
- Eugene.
- Sim.
- Vieste prender-me?
- Vim.
- Acreditas no bem, na moral, na humanidade, em
ideologias políticas, na fraternidade, no amor, na Cruz
Vermelha, na UNICEF...
- Talvez... mas menos que antigamente.
Em tom calmo e baixo continuou:
- Quantos mataste no Vietnam, entre agentes e inocentes,
entre soldados e civis indefesos?
O'Hara atravessava agora a pior crise da sua vida.
- Lys, peço-te...
- Querido. Tem coragem e encara a verdade da vida,
frontalmente. Quantos? Quantos mataste?
- Dezenas... talvez centenas... não sei.
- E a que título? Com que direito? E, possivelmente, alguns
com as tuas próprias mãos.
O'Hara tremeu e baixou a cabeça, caindo-lhe no tapete o
olho artificial.
- Não podes ter lágrimas nos olhos, Eugene. Terás de fazer
exercícios com a pálpebra e semicerrar os olhos. Ensinar-te-ei
se... houver tempo e ainda quiseres.
- Eu quero-te, Lys. Sempre te quis. Depois de ti, não houve
mais ninguém na minha vida.
- Então esperamos o quê? Agora já falámos. Já sei o que queria
saber. E tu? Também já sabes tudo...
E começou a despir-se, sem pressa, mas com adulta
determinação. Peça a peça, até ficar nua. Um belo e ainda
jovem corpo de mulher.
- Eugéne. Não estamos a três dias da tua partida para a
guerra. Somos mais adultos agora e mais experientes.
O'Hara levantou-se com dificuldade. A perna de pau
escorregara juntamente com o tapete. Equilibrou-se e cobriu
Lys com o seu corpo. Abraçaram-se e beijaram-se com
fúria, numa bebedeira de desejo. De amor.
No chão, o olho castanho de O'Hara parecia divertidíssimo.
Só ao segundo toque ouviram a campainha da porta.
O'Hara teve reflexos mais rápidos do que Lys. Deu-lhe o
sobretudo e atirou as peças de roupa de Lys para debaixo
do sofá. A cena não enganava ninguém, mas estava mais
composta, segundo o pensamento de Eugene O'Hara.
Foi abrir a porta, enquanto Lys vestia o amplo sobretudo.
Bronco Vale, de mãos dolentes repousando nos bolsos,
sorria para O'Hara.
- Posso entrar?
E entrou, apesar de ninguém o ter convidado. Tirou o chapéu
e cumprimentou, irónico:
- Viva, Maureen. É Maureen, não é? Não imaginava que
fosse tão bonita... apesar desse velho sobretudo, que julgo
pertencer aqui ao Chefe O'Hara. A propósito: Já lhe deu
ordem de prisão?
- Sente-se, Bronco... se puder.
- Posso, de lado. Mas não me quero sentar.
- Como chegou até aqui?
Lys, sentada numa ampla almofada e apertando ao corpo o
sobretudo, olhava para um e para o outro, aparentemente
calma.
- Segui o seu percurso. Falei com o cego que me deu o
nome. Depois foi fácil. A ordem que me deu pelo telefone,
para eu estar quieto, não era para respeitar, como deve ter
calculado. Os crimes estão esclarecidos. O Bone explodiu
no gabinete do Inspector-Chefe. Julgo que era um dos
implicados.
- Continue...
- No seu apartamento encontraram-se elementos que
levarão, talvez neste momento, à prisão de um químico
chamado Boyle e que mora no Bronx. Bone passava droga e,
ultimamente, parecia andar muito assustado.
- Já sabia tudo isso, Bronco.
- Ah já?! Agora sou eu que lhe digo "curioso"...
E de novo o silêncio. Lys olhava agora fixamente para
O'Hara. Esperava, de maãos nos bolsos do sobretudo.
- Então, Chefe. Leva-a ou não?
O'Hara respirou fundo e disse, baixinho:
- Não.
- Não sei se estou a perceber.
- Julgo que está a perceber. Eu e ela vamos desaparecer
da circulação... recuperar quinze anos da nossa vida.
Recuperá-la completamente.
- Não, Chefe. Não vão desaparecer. Tenho obrigação de a
prender. Depois já não é comigo.
- Não, Bronco Vale. Você apenas quer é o nome nos joanais
e nas televisões. Você continua a ser um puto que pouco
ou nada sabe da vida. Julga que sabe, lá por ter andado na
guerra, mas não sabe. Todos os homens que andaram na
guerra julgam saber mais do que os outros, como se a
guerra fosse uma universidade. Também andei na guerra
e não sei nada. Vocês também não sabem mais, por vezes
até sabem menos.
Olhou com ternura para Lys e continuou:
- Neste caso, vai ficar quietinho e voltar para o seu
escritório. Os crimes acabaram. Já não há Bone e o
químico não se deixará prender. De Maureen não há
rasto, nem qualquer denúncia ou documento ou prova. Só
há você, que vai ser um bom menino e esquecer o que viu
e que encontrou Maureen.
- Porquê?
- Porque assim será melhor para a minha vida e... para
a dela.
- Já se esqueceu dos seus agentes mortos?
- Linda Marlowe já não teria esquecido o marido?
- Velho esperto! Por acaso já está a esquecer... já não tenho
cliente para representar. Mas, quer você deixe quer não,
vou levar a dama comigo... e agora.
Três factos se passaram então em fracções de segundo: dois
movimentos e um disparo.
Bronco faz um gesto na direcção a Lys, ao mesmo tempo que
O'Hara avança, colocando-se à sua frente, para o impedir de
continuar e recebendo, nas costas, a bala que Lys endereçara,
com determinação, ao detective particular.
O'Hara cai, devagar, segurado pelos braços de Bronco. Lys
abraçase no chão a O'Hara, enquanto Bronco permanece
estupidificado, sem saber o que fazer.
- Querido! Meu amor!
- Lys... minha amante antiga... não vou morrer... esse estúpido...
não vai destruir a nossa... felicidade... o nosso encontro, a
nossa vida...
Estremece nos braços de Lys, junto ao seu corpo nu, golfando
sobre ele o seu sangue quente. O'Hara morre.
Lys gritou. Não um grito histérico, ou de medo, ou de vingança.
Apenas um grito, como se lhe tivessem partido as cordas
ocultas da vida. Levanta-se então lentamente. Mete a mão no
bolso do sobretudo e volta a disparar, caindo-lhe o olho
artificial, devido às lágrimas.
Bronco, atónito com toda aquela cena, não teve reflexos para
impedir ou para fugir ao disparo, que lhe atravessou o ombro
direito e o derrubou, a um metro de O'Hara.
-----------
(De Ed B. Silverman. Termina amanhã a novela.)
Eram nove e meia da manhã quando Eugene O'Hara subiu
de elevador até ao apartamento de Maureen. Levava a
arma destravada, no amplo bolso do sobretudo.
Maureen acabara de se arrumar. Uma camisola branca de
malha, de gola alta, e umas calças de veludo vermelho,
justas ambas ao corpo, realçavam a sua silhueta. A casa
cheirava ao café da manhã, acabado de fazer. Acendeu um
cigarro e pegou na TV News.
O toque da campainha não a incomodou. Foi atender
indiferente.
- Quem é?
- Eugene O'Hara
Abriu.
Especado, olhando-a fixamente com um só olho, estava
O'Hara.
Maureen sentiu o sangue subir-lhe ao rosto. Uma pequena
vertigem levou os seus pensamentos, em turbilhão, a
uma rápida sequência de infância, adolescência e presente.
O coração acelerou. "Oh não! Não pode ser! Como é
possível?!"
A muito custo, o polícia disse, como em segredo:
- Ainda me chamo Eugene - e estendeu a mão humana.
Maureen cada vez mais perturbada, pegou nela
carinhosamente e puxou-o para dentro de casa.
Olharam-se atónitos.
- Finalmente, querido! Óh, meu Deus! Não pode ser! Não
acredito! Não é verdade! Essas coisas não acontecem...
não há milagres...
E, esquecendo-se de fechar a porta, abraçou-se a O'Hara,
passando-lhe as mãos pela cabeça e pelas costas, com
inexcedível carinho, mas também um certo sentido de
posse.
- Lys, meu amor - murmurou O'Hara, com voz rouca. -
Lys... sempre andei perdido... sempre andei perdido
sem ti...
Maureen, aliás Lys Anderson, fechou a porta de entrada
e ajudou o detective a despir o sobretudo.
- Querido. Soube que tinhas ficado estropiado no
Vietnam, mas ninguém me soube dizer mais nada. Cheguei
a falar com o adjunto do secretário de estado da Defesa.
Tratou-me e falou como se tivesses deixado de existir.
Fez-se um silêncio total à tua volta. Sofri tanto...
- Um atentado à bomba. Não vim directamente para os
Estados Unidos. Por questões de segutança, fiquei alguns
anos em Inglaterra. Combinação entre as suas secretas.
- Anda, meu querido, senta-te.
Ainda confuso, sentindo a irrealidade do momento,
sentou-se no sofá e estendeu a perna de pau sobre uma
cadeira.
- Porquê O'Hara? Ouvi falar do "Chefe O'Hara"... nunca
imaginaria que fosses tu.
- Trabalhei na contra-espionagem. Parece que fiz algumas
coisas de jeito, pelo que há vários sócios que me apagarão
com todo o prazer. O departamento sugeriu uma longa
estadia em Inglaterra e que usasse o apelido de meu avô.
Que desaparecesse da circulação. Assim... sem um olho,
sem perna e sem mão, será difícil reconhecerem-me... e
não penso que ainda andem à minha procura... acabou tudo.
Saí da agência e ingressei na Polícia... para mais segurança.
- Conheci-te logo.
- Não foi pela vista que me conheceste; foi pelo coração.
- Pela vista... como podes observar, também eu tive um
problema.
- Conta-me, Lys, meu amor.
- Espera, querido. Temos tanto que dizer um ao outro...
vamos tomar um café, meu amor...
Lys pouco demorou na cozinha. O café da manhã já estava
pronto. Durante estes breves momentos, O'Hara
murmurava apenas : "Ó meu Deus! Ó meu Deus!"
Ela trouxe uma bandeja com duas chávenas e um globo de
vidro de café. A bandeja tremia-lhe nas mãos. Serviram-se,
sorrindo um para o outro, como dois parvos adolescentes.
- Fui operada, após o acidente com o carro. O vidro da
frente estilhaçou-se e um pedaço cortou-me uma vista.
Nada se pôde fazer. Coloquei, então, este olho artificial.
De início incomoda, mas depois o hábito faz o resto.
- Quase que não se nota, Lys. Precisamente na mesma cor e
formato do outro, do bom.
- Queres experimentar, Eugene?
- Pôr o teu olho? Posso?
- O meu não. Anda cá.
Pegou-lhe na mão e levou-o para o quarto. De um pequeno
armário, retirou uma bonita caixa envernizada. Abriu-a.
Dentro, sobre veludo branco, uma colecção de olhos de
várias cores e tamanhos. Parecia uma multidão curiosa
a espreitar para Lys e para o polícia.
- Nem sempre temos os olhos da mesma cor. Há suaves
tonalidades que cambiam consoante a nossa disposição
e a luz do dia. Com esta colecção, estou sempre mais apta
a escolher.
- Mas... e os tamanhos?
- Bem... se bebemos um pouco mais, à noite, no outro dia
temos os olhos maiores...
O'Hara retirou um olho, levantou rapidamente a pála e
colocou-o na cavidade ocular, mirando-se no espelho do
toucador. Estava com um olho castanho e outro verde-
-escuro. Ou melhor, o castanho vigiando curiosamente
o verde-escuro.
- Esse não te fica bem, querido. Experimenta este
castanho.
-Áh! - exclamou O'Hara, mirando-se novamente ao
espelho.
Parecia verdadeiramente outro homem. Quae não se
notava a diferença entre o olho verdadeiro e o falso,
excepto quando se olhava para um dos lados e o outro
se recusava a acompanhar o parceiro. O'Hara
endireitou-se, cresceu e abraçou fogosamente Lys.
Beijaram-se como há quinze anos, com extremo ardor
e primaveril juventude.
- Eugene, meu amor... - balbuciou ternamente Lys, mas
logo se recompôs.
- Pronto, Eugene. Vamos para a sala. Temos de falar...
anda, querido.
Regressaram, arfando, para a sala, devorando-se
mutuamente, cada um com o seu olho são.
O'Hara sorriu da ideia.
- Lys. Se na rua, fores sempre do meu lado direito,
poderemos vermo-nos perfeitamente, já que o meu olho
falso é o esquerdo e o teu é o direito...
Lys riu-se também, sem complexos; já os ultrapassara
há muito.
Fez-se então o silêncio que ambos temiam. O café, nas
chávenas, esperava.
- Eugene.
- Sim.
- Vieste prender-me?
- Vim.
- Acreditas no bem, na moral, na humanidade, em
ideologias políticas, na fraternidade, no amor, na Cruz
Vermelha, na UNICEF...
- Talvez... mas menos que antigamente.
Em tom calmo e baixo continuou:
- Quantos mataste no Vietnam, entre agentes e inocentes,
entre soldados e civis indefesos?
O'Hara atravessava agora a pior crise da sua vida.
- Lys, peço-te...
- Querido. Tem coragem e encara a verdade da vida,
frontalmente. Quantos? Quantos mataste?
- Dezenas... talvez centenas... não sei.
- E a que título? Com que direito? E, possivelmente, alguns
com as tuas próprias mãos.
O'Hara tremeu e baixou a cabeça, caindo-lhe no tapete o
olho artificial.
- Não podes ter lágrimas nos olhos, Eugene. Terás de fazer
exercícios com a pálpebra e semicerrar os olhos. Ensinar-te-ei
se... houver tempo e ainda quiseres.
- Eu quero-te, Lys. Sempre te quis. Depois de ti, não houve
mais ninguém na minha vida.
- Então esperamos o quê? Agora já falámos. Já sei o que queria
saber. E tu? Também já sabes tudo...
E começou a despir-se, sem pressa, mas com adulta
determinação. Peça a peça, até ficar nua. Um belo e ainda
jovem corpo de mulher.
- Eugéne. Não estamos a três dias da tua partida para a
guerra. Somos mais adultos agora e mais experientes.
O'Hara levantou-se com dificuldade. A perna de pau
escorregara juntamente com o tapete. Equilibrou-se e cobriu
Lys com o seu corpo. Abraçaram-se e beijaram-se com
fúria, numa bebedeira de desejo. De amor.
No chão, o olho castanho de O'Hara parecia divertidíssimo.
Só ao segundo toque ouviram a campainha da porta.
O'Hara teve reflexos mais rápidos do que Lys. Deu-lhe o
sobretudo e atirou as peças de roupa de Lys para debaixo
do sofá. A cena não enganava ninguém, mas estava mais
composta, segundo o pensamento de Eugene O'Hara.
Foi abrir a porta, enquanto Lys vestia o amplo sobretudo.
Bronco Vale, de mãos dolentes repousando nos bolsos,
sorria para O'Hara.
- Posso entrar?
E entrou, apesar de ninguém o ter convidado. Tirou o chapéu
e cumprimentou, irónico:
- Viva, Maureen. É Maureen, não é? Não imaginava que
fosse tão bonita... apesar desse velho sobretudo, que julgo
pertencer aqui ao Chefe O'Hara. A propósito: Já lhe deu
ordem de prisão?
- Sente-se, Bronco... se puder.
- Posso, de lado. Mas não me quero sentar.
- Como chegou até aqui?
Lys, sentada numa ampla almofada e apertando ao corpo o
sobretudo, olhava para um e para o outro, aparentemente
calma.
- Segui o seu percurso. Falei com o cego que me deu o
nome. Depois foi fácil. A ordem que me deu pelo telefone,
para eu estar quieto, não era para respeitar, como deve ter
calculado. Os crimes estão esclarecidos. O Bone explodiu
no gabinete do Inspector-Chefe. Julgo que era um dos
implicados.
- Continue...
- No seu apartamento encontraram-se elementos que
levarão, talvez neste momento, à prisão de um químico
chamado Boyle e que mora no Bronx. Bone passava droga e,
ultimamente, parecia andar muito assustado.
- Já sabia tudo isso, Bronco.
- Ah já?! Agora sou eu que lhe digo "curioso"...
E de novo o silêncio. Lys olhava agora fixamente para
O'Hara. Esperava, de maãos nos bolsos do sobretudo.
- Então, Chefe. Leva-a ou não?
O'Hara respirou fundo e disse, baixinho:
- Não.
- Não sei se estou a perceber.
- Julgo que está a perceber. Eu e ela vamos desaparecer
da circulação... recuperar quinze anos da nossa vida.
Recuperá-la completamente.
- Não, Chefe. Não vão desaparecer. Tenho obrigação de a
prender. Depois já não é comigo.
- Não, Bronco Vale. Você apenas quer é o nome nos joanais
e nas televisões. Você continua a ser um puto que pouco
ou nada sabe da vida. Julga que sabe, lá por ter andado na
guerra, mas não sabe. Todos os homens que andaram na
guerra julgam saber mais do que os outros, como se a
guerra fosse uma universidade. Também andei na guerra
e não sei nada. Vocês também não sabem mais, por vezes
até sabem menos.
Olhou com ternura para Lys e continuou:
- Neste caso, vai ficar quietinho e voltar para o seu
escritório. Os crimes acabaram. Já não há Bone e o
químico não se deixará prender. De Maureen não há
rasto, nem qualquer denúncia ou documento ou prova. Só
há você, que vai ser um bom menino e esquecer o que viu
e que encontrou Maureen.
- Porquê?
- Porque assim será melhor para a minha vida e... para
a dela.
- Já se esqueceu dos seus agentes mortos?
- Linda Marlowe já não teria esquecido o marido?
- Velho esperto! Por acaso já está a esquecer... já não tenho
cliente para representar. Mas, quer você deixe quer não,
vou levar a dama comigo... e agora.
Três factos se passaram então em fracções de segundo: dois
movimentos e um disparo.
Bronco faz um gesto na direcção a Lys, ao mesmo tempo que
O'Hara avança, colocando-se à sua frente, para o impedir de
continuar e recebendo, nas costas, a bala que Lys endereçara,
com determinação, ao detective particular.
O'Hara cai, devagar, segurado pelos braços de Bronco. Lys
abraçase no chão a O'Hara, enquanto Bronco permanece
estupidificado, sem saber o que fazer.
- Querido! Meu amor!
- Lys... minha amante antiga... não vou morrer... esse estúpido...
não vai destruir a nossa... felicidade... o nosso encontro, a
nossa vida...
Estremece nos braços de Lys, junto ao seu corpo nu, golfando
sobre ele o seu sangue quente. O'Hara morre.
Lys gritou. Não um grito histérico, ou de medo, ou de vingança.
Apenas um grito, como se lhe tivessem partido as cordas
ocultas da vida. Levanta-se então lentamente. Mete a mão no
bolso do sobretudo e volta a disparar, caindo-lhe o olho
artificial, devido às lágrimas.
Bronco, atónito com toda aquela cena, não teve reflexos para
impedir ou para fugir ao disparo, que lhe atravessou o ombro
direito e o derrubou, a um metro de O'Hara.
-----------
(De Ed B. Silverman. Termina amanhã a novela.)
Thursday, April 06, 2006
35. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)
16.
Linda Marlowe esperava-o já com a porta aberta.
- Entre, Bronco.
Isto enquanto a ambulância seguia em silêncio.
- Olá, Linda.
- Entre, tire essa bata e ponha-se à vontade.
A pequena sala estava cuidadosamente decorada, com
sofás confortáveis, uma estante repleta de livros,
quadros nas paredes, um pequeno aquário iluminado e
um discreto bar, perto de uma das janelas. Uma alcatifa
cor de mostarda cobria o chão. Sobre três pequenas
mesas e no bar, várias jarras com flores, por certo
gentileza para saudar o visitante, no clássico estilo
"diga-o com flores". As cortinas semicerradas, davam
uma luz acolhedora ao ambiente.
- Sente-se, Bronco.
- Tenho de me estender... sobre este lado...
- Estenda-se e descontraia-se. Isso. Agora vou servir-lhe
um uísque. Fraquinho, claro, por causa dos antibióticos.
- Que gosto terá?
Bronco sentou-se de lado, encostando-se a dois
almofadões de veludo.
Linda dominava-se quase bem; estava nervosa e
excitada.
Preparara a recepção com cuidado, não faltando ainda os
aperitivos e a alta-fidelidade sussurrando um trecho
suave.
Na gaveta da cómoda, no seu quarto, dormia uma foto
12 por 18 de Edgar Marlowe, com uma dedicatória
simples: Para a minha adorada Linda. Teu Edgar.
Sorria, o estúpido.
- Quer com mais gelo?
- Está bem assim, Linda.
Bebeu e acendeu um cigarro.
Linda sentou-se num pequeno tamborete e ajeitou a
saia.
- Tenho um recado para si. O Chefe O'Hara disse que
estava suspenso o convite para jantar e que mais tarde
falaria consigo.
O detective continuou a bebida. Linda, que, como já
dissemos, ocultava mal o nervosismo, acrescentou:
- E eu... eu queria, quero pedir-lhe para parar com as
investigações... acho que é inútil, quero dizer, para quê?
Edgar morreu. Ninguém lhe dará de novo a vida.
Levantou-se e foi servir-se também de uma bebida.
- Linda. Não tenciono desistir.
- Oiça-me. Eu amava Edgar. Edgar morreu. Não quero
que me atinja uma segunda morte...
Foi interrompida pela campainha do telefone.
- Linda Marlowe.... Sim, Chefe. Um momento. - É para
si, Bronco. É o Chefe O'Hara. Deixe-se estar. Levo aí o
telefone.
E levou mesmo. Gentilmente.
- Olá, velho. Já estava a achar muito milho papar-lhe
um jantar no seu requintado apartamento de solteiro...
não arranjou dinheiro para a comida? Foi?
E ficou à escuta, cada vez mais sério. Fez sinal a Linda
para lhe servir mais uísque e continuou a escutar,
soltando ocasionais monossílabos.
- Compreendo, Chefe. Quando chega a altura de receber
os louros, correm-se com os mastins de terceira. OK. mas
não vou parar. Pois... Dê-me um tiro e fica tudo resolvido.
E desligou, pensativo.
- Tome, Bronco.
E Linda meteu-lhe o copo na mão, pegou no seu e
sentou-se de novo no tamborete.
- Eles não vão desistir, Bronco. Não deveria andar por aí.
Preparei tudo para que possa cá ficar... já que não tem
ninguém para tomar conta de si...
- Obrigado mas não posso.
- As flores e tudo o mais foi em sua honra, em sua
intenção e... não bebia um uísque desde que o Edgar...
Começou a chorar suavemente, sem ruído; só as
lágrimas caindo pelas suas belas e pálidas faces. O
choro de uma mulher que sabia dominar-se.
- Desculpe, Linda... Amei muito uma mulher e perdi-a.
Pensava nela agora, sem conseguir recordar-me já das
suas feições. Como esquecemos depressa as feições...
Linda esboçou um leve sorriso por entre as lágrimas.
- Essa imagem de dureza, mesmo de rudeza, é só
aparente. Vi isso quando o conheci...
Bronco baixou os olhos candidamente, sorveu outro
gole e confessou:
- Uma defesa?! Talvez. Uma vida dura, numa
profissão dura e cruel. Não tive família. O resto foi
trabalho ordinário, rasteiras e guerra. O Governo
deu-me gratuitamente um curso completo de assassino.
O único curso superior que tenho. Sei matar de várias
maneiras e estilos, com vários utensílios e sem eles. Sou
formado.
E restou, entre eles, o silêncio pesado das recordações.
A tarde caía. As sombras invadiam já a sala e um turpor,
misto de drogras e de álcool, invadiu Bronco Vale.
Linda desligou a alta-fidelidade e, do seu quarto, trouxe
uma manta, cobrindo com cuidado o detective que,
entretanto, adormecera no amplo sofá. E ficou de pé,
olhando-o, não com amor, mas com uma certa ternura,
quase desejando-o.
-----------------
(De Ed. B. Silverman)
Linda Marlowe esperava-o já com a porta aberta.
- Entre, Bronco.
Isto enquanto a ambulância seguia em silêncio.
- Olá, Linda.
- Entre, tire essa bata e ponha-se à vontade.
A pequena sala estava cuidadosamente decorada, com
sofás confortáveis, uma estante repleta de livros,
quadros nas paredes, um pequeno aquário iluminado e
um discreto bar, perto de uma das janelas. Uma alcatifa
cor de mostarda cobria o chão. Sobre três pequenas
mesas e no bar, várias jarras com flores, por certo
gentileza para saudar o visitante, no clássico estilo
"diga-o com flores". As cortinas semicerradas, davam
uma luz acolhedora ao ambiente.
- Sente-se, Bronco.
- Tenho de me estender... sobre este lado...
- Estenda-se e descontraia-se. Isso. Agora vou servir-lhe
um uísque. Fraquinho, claro, por causa dos antibióticos.
- Que gosto terá?
Bronco sentou-se de lado, encostando-se a dois
almofadões de veludo.
Linda dominava-se quase bem; estava nervosa e
excitada.
Preparara a recepção com cuidado, não faltando ainda os
aperitivos e a alta-fidelidade sussurrando um trecho
suave.
Na gaveta da cómoda, no seu quarto, dormia uma foto
12 por 18 de Edgar Marlowe, com uma dedicatória
simples: Para a minha adorada Linda. Teu Edgar.
Sorria, o estúpido.
- Quer com mais gelo?
- Está bem assim, Linda.
Bebeu e acendeu um cigarro.
Linda sentou-se num pequeno tamborete e ajeitou a
saia.
- Tenho um recado para si. O Chefe O'Hara disse que
estava suspenso o convite para jantar e que mais tarde
falaria consigo.
O detective continuou a bebida. Linda, que, como já
dissemos, ocultava mal o nervosismo, acrescentou:
- E eu... eu queria, quero pedir-lhe para parar com as
investigações... acho que é inútil, quero dizer, para quê?
Edgar morreu. Ninguém lhe dará de novo a vida.
Levantou-se e foi servir-se também de uma bebida.
- Linda. Não tenciono desistir.
- Oiça-me. Eu amava Edgar. Edgar morreu. Não quero
que me atinja uma segunda morte...
Foi interrompida pela campainha do telefone.
- Linda Marlowe.... Sim, Chefe. Um momento. - É para
si, Bronco. É o Chefe O'Hara. Deixe-se estar. Levo aí o
telefone.
E levou mesmo. Gentilmente.
- Olá, velho. Já estava a achar muito milho papar-lhe
um jantar no seu requintado apartamento de solteiro...
não arranjou dinheiro para a comida? Foi?
E ficou à escuta, cada vez mais sério. Fez sinal a Linda
para lhe servir mais uísque e continuou a escutar,
soltando ocasionais monossílabos.
- Compreendo, Chefe. Quando chega a altura de receber
os louros, correm-se com os mastins de terceira. OK. mas
não vou parar. Pois... Dê-me um tiro e fica tudo resolvido.
E desligou, pensativo.
- Tome, Bronco.
E Linda meteu-lhe o copo na mão, pegou no seu e
sentou-se de novo no tamborete.
- Eles não vão desistir, Bronco. Não deveria andar por aí.
Preparei tudo para que possa cá ficar... já que não tem
ninguém para tomar conta de si...
- Obrigado mas não posso.
- As flores e tudo o mais foi em sua honra, em sua
intenção e... não bebia um uísque desde que o Edgar...
Começou a chorar suavemente, sem ruído; só as
lágrimas caindo pelas suas belas e pálidas faces. O
choro de uma mulher que sabia dominar-se.
- Desculpe, Linda... Amei muito uma mulher e perdi-a.
Pensava nela agora, sem conseguir recordar-me já das
suas feições. Como esquecemos depressa as feições...
Linda esboçou um leve sorriso por entre as lágrimas.
- Essa imagem de dureza, mesmo de rudeza, é só
aparente. Vi isso quando o conheci...
Bronco baixou os olhos candidamente, sorveu outro
gole e confessou:
- Uma defesa?! Talvez. Uma vida dura, numa
profissão dura e cruel. Não tive família. O resto foi
trabalho ordinário, rasteiras e guerra. O Governo
deu-me gratuitamente um curso completo de assassino.
O único curso superior que tenho. Sei matar de várias
maneiras e estilos, com vários utensílios e sem eles. Sou
formado.
E restou, entre eles, o silêncio pesado das recordações.
A tarde caía. As sombras invadiam já a sala e um turpor,
misto de drogras e de álcool, invadiu Bronco Vale.
Linda desligou a alta-fidelidade e, do seu quarto, trouxe
uma manta, cobrindo com cuidado o detective que,
entretanto, adormecera no amplo sofá. E ficou de pé,
olhando-o, não com amor, mas com uma certa ternura,
quase desejando-o.
-----------------
(De Ed. B. Silverman)
Thursday, March 30, 2006
34. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
15.
Bronco Vale estava pronto pra sair. Tivera alta. Vestia
bata branca de enfermeiro e utilizava o pequeno
disfarce dos óculos escuros.
Nas traseiras do St. James Hospital, uma ambulância
aguardava, com o motor a trabalhar. Bronco não podia
arriscar-se a levar o último tiro da sua vida. Assim, o
esquema tinha sido preparado pelo Chefe O'Hara, com
a colaboração da direcção do hospital.
- Então? - perguntou O'Hara ao dr. Kildaire. - Você
está melhor?
- Conhece o orifício que existe no meio das nádegas,
no sítio onde as costas perdem o nome?
O'Hara afastou-se para assistir à saída de Bronco
e para melhor vigiar as cercanias. Tinha o pistolão no
bolso do sobretudo, pronto a fazer fogo. Era um
profissional.
O dr. Kildaire, fumando nervosamente, quedou-se,
no passeio, a ver partir a ambulância.
Qual das câmaras é que estaria a captá-lo naquele
momento?
O'Hara despediu-se:
- Tome Vallium, Kildaire.
Ele não ouviu.
-------------------
De Ed B. Silverman.
Nota: só na próxima 3ª.Feira haverá outro
capítulo. O penúltimo.)
Bronco Vale estava pronto pra sair. Tivera alta. Vestia
bata branca de enfermeiro e utilizava o pequeno
disfarce dos óculos escuros.
Nas traseiras do St. James Hospital, uma ambulância
aguardava, com o motor a trabalhar. Bronco não podia
arriscar-se a levar o último tiro da sua vida. Assim, o
esquema tinha sido preparado pelo Chefe O'Hara, com
a colaboração da direcção do hospital.
- Então? - perguntou O'Hara ao dr. Kildaire. - Você
está melhor?
- Conhece o orifício que existe no meio das nádegas,
no sítio onde as costas perdem o nome?
O'Hara afastou-se para assistir à saída de Bronco
e para melhor vigiar as cercanias. Tinha o pistolão no
bolso do sobretudo, pronto a fazer fogo. Era um
profissional.
O dr. Kildaire, fumando nervosamente, quedou-se,
no passeio, a ver partir a ambulância.
Qual das câmaras é que estaria a captá-lo naquele
momento?
O'Hara despediu-se:
- Tome Vallium, Kildaire.
Ele não ouviu.
-------------------
De Ed B. Silverman.
Nota: só na próxima 3ª.Feira haverá outro
capítulo. O penúltimo.)
Tuesday, March 28, 2006
33.O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
13. Naquela noite o canal 76 ("Este é o calibre 76. Carregue no telecomando e mate a sua vizinha"), tinha anunciado uma nova série, escrita por Ed McBain e passada numa esquadra de polícia, com um detective chamado Steve Carella. Rockfeller aninhou-se para assistir. No momento exacto da transmissão, depois de cento e dezoito comerciais, toda a sua zona ficou às escuras. Um corte geral de energia. Rockfeller acabou a lata de cerveja. Foi até à janela. Abriu as cortinas. Tudo negro. Só ao longe algumas luzes vermelhas nos telhados dos arranha-céus, pontinhos marcando presença. Viu pois em negrume a sua cidade. Quando sentiu lágrimas nos olhos, dirigiu-se para o seu quarto, para se deitar. É tão triste, sofredora e abnegada a vida de um inspector- -chefe! 14. Na manhã seguinte Rockfeller estava deprimido, apesar da neve se ter derretido durante a noite e o dia se apresentar menos agreste, quase ameno, com o Sol como deve ser. Percorreu o longo corredor até ao seu gabinete, resmungando quando o saudavam. Resmungou ainda quando viu quem o esperava: Bone. - Bom dia, senhor. - Hum... entre. Entraram. Rockfeller deixou-se cair na sua ampla cadeira e apontou para a outra, na sua frente. Era uma ordem. Bone sempre atento compreendeu-a. Quando abriu a boca para falar, soou a campainha do telefone. - Rockfeller - disse o dito, com evidente enfado. E ficou escutando, cada vez mais interessado. Pronunciou uns quantos monossílabos e terminou, dizendo: - Bem trabalho, O'Hara. Mate-a! Nada de julgamentos. Mate-a, mas antes que denuncie a pandilha toda - e desligou. Bone ficou pálido. Muito pálido. - Afinal, Bone, o que quer de mim? Bone atrapalhou-se. Tossiu e, em seguida, acendeu um cigarro. - Bem, Inspector. Estive a rever todo o processo das explosões e não encontrei qualquer ponta, qualquer pista. Só vi que nos faltava a informação sobre o tal cientista búlgaro. - Ah! Esse! Sem interesse. Nem fiz a nota para o processo. O agente descobriu que ele andava aos pulinhos, sempre contente e a rir, porque a irmã e o cunhado, que vivem na Alemanha, jogaram em nome dele num concurso qualquer, tendo ganho um milhão de marcos. Não tem nada a ver com o nosso caso. Mas você está doente, Bone. Está cada vez mais pálido. - Sim... realmente não me sinto lá muito bem... E, mal acabou esta frase, um violentíssimo estrondo abalou as paredes, partiu os vidros das janelas, atirou ao chão o Inspector-Chefe e fez voar a porta do gabinete. Quase imeditamente, a sereia de alarme do edifício desatou num desalmado berreiro de alerta, para que todas as portas exteriores fossem fechadas. O gabinete e Rockfeller estavam irreconhecíveis. Bocadinhos de Bone tinham-se espalhado por toda a sala, como confetti de várias cores, com predominância para o magenta e o rosa-truta, para além do castanho, claro. O Inspector batera com a cabeça no chão e perdera os sentidos. Contudo, a secretária tinha-o protegido um pouco. Vários detectives e agentes acorreram olhando, da entrada, para aquela tremenda imagem de destruição. Alguns retiraram-se para vomitar. Uma porcaria pegada. Um escalracho. Uma vergonha e um nojo aquilo tudo. Merda por todos os lados. E um cheio pestilento. Os repórteres não se fizeram esperar, mas foram impedidos de entrar e não havia ainda qualquer comunicado oficial. Contudo, a edição do meio-dia do Brooklin Herald informava em manchete, que uma bomba, colocada pelos comunistas, tinha destruído, quase na totalidade, o edifício da Central da Polícia, havendo já 18 mortos e 127 feridos, dos quais dois detidos e ainda uma criancinha de colo. Após a primeira assistência médica, Rockfeller recolheu a uma clínica psiquiátrica, com distúrbios e profundas depressões verticais. O assunto assumiu, claro, cariz nacional. Nathaniel B. Clarck (NBC na intimidade partidária e familiar, como já se informou o leitor), Governador, ligou para a Casa Branca. Após vários contactos conseguiu o que queria. O secretário, nas suas memórias mais tarde publicadas ("My Life with the President"), referenciou o diálogo pormenoriza- damente. "- É grave, senhor. - Na própria Central? - Na própria! - Que medidas tomou? - perguntou o senhor. - Todas. - Os meus assessores acreditam que a mão da foice e do martelo é que accionou tudo isto. - Talvez a Nicarágua, senhor. - Mas os problemas com o Médio Oriente já estão praticamente solucionados, ou em via disso. - Mas a Nocarágua não é no Médio Oriente, senhor. - Ah não?! Pois claro que não. É na África Austral. Silêncio. - Está? - Estou, senhor. - Mobilize todas as forças. Não esquecendo as agências. - Muito bem, senhor. - Ponha-me ao corrente a qualquer hora do dia ou da noite. - Muito bem, senhor." E desligaram. ---------------------- (de Ed. B. Silverman) |
Saturday, March 25, 2006
32. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
12. Mesmo à esquina da 72 com a Nona Avenida, há vários anos que um cego monta a sua banca, com ou sem autorização da Polícia. A neve, na última semana, fizera com que este diligente comerciante em nome individual, só exercesse a actividade por breves períodos, preferencialmente à tarde. Ou por maldade inqualificável do fornecedor ou por pessoal sofisma, entre canetas esferográficas, alguns livros, revistas e atacadores, apresentava bolsas de preservativos, os quais, quando lhe apetecia, anunciava como balões. E vendia. Naquela tarde o Sol conseguiu animar-se um pouco por volta das três pelo que, vinte minutos após este regalo, já o vendedor cego se encontrava instalado, protegendo-se do frio com um amplo gorro soviético e botas de plástico amarelas; como abafo geral, um velho sobretudo militar, que vira já bons tempos e talvez francesas. O'Hara, enterrando a perna de pau na leve camada de neve, já o aguardava, bufando hálito quente para as duas mãos, aquecendo obviamente uma e enferrujando a outra. Pelo sim, pelo não, comprou um "balão" e atirou-se à conversa. - Sou da Polícia. - Já percebi... pelo cheiro. - Hum...Há uma senhora que mora aqui no West Side e que o cumprimenta amistosamente. Fez isso na última quinta-feira. - Há muitas senhoras que me vêm cumprimentar. Sou cego mas não sou impotente. - Lá isso não sei. - Mas sei eu. E tenho muita saída. Os cegos nunca podem fazer prova. Um cego, no tribunal, não pode virar-se para o juiz e afirmar, com o dedo apontando, que foi com aquela dama que dormiu na noite de 35 de Outubro. O advogado largar-se-ia a chorar no ombro do cliente. "Balões!Balões!" - Tá bem, tá bem. - Como é essa senhora? - É alta, dizem que bonita e parece que também tem um problema num olho. - Ah! Essa! "Esferos! Esferos quase dados! Promoção de Inverno: quem comprar duas leva um balão de graça! Ajudem o ceguinho!" - Conheces então a senhora? - Mais ou menos. - Fala-me do "mais". O cego, através dos negros óculos, parecia fixar-se muito para além de O'Hara, como se ele ali não estivesse especado, mesmo à sua frente. O'Hara, por sua vez, estava quase a perder a calma. - Só posso falar do "menos" pois ela não é dessas, nem mãe de qualquer polícia. É estupidamente séria. - E gritou bem alto, mesmo para a cara de O'Hara: "-Ajudem o ceguinho, que nem sabe o que é uma árvore de Natal, coitadinho! Nunca viu um pinheiro aceso... nem apagado. Nunca viu os Reis Magos... nem a estrela. Ajudem o ceguinho!" - Então? - rosnou O'Hara. - Então o quê? - rosnou o cego. - Fala-me dela. - Bem... Conversa às vezes comigo sobre o estado do tempo, uma vez por mês compra-me uma caneta e todas as semanas a TVNews. Quer uma, chui? - Não, obrigado. Quero apenas saber onde mora. - "Ajudem o ceguinho, que não vê a mãe desde que nasceu!" Por acaso sei onde mora, mas não digo. Só à porrada! - Não te vou dar porrada! - É pena. Estou cheio de frio... sempre aquecia. "Balões! Balões para o menino e para a menina! Balões!" Mas para que é que quer a morada?, pode um cego perguntar? "Balões!" O'Hara já estava farto da conversa, mas era fundamental para a investigação que a levasse a bom termo. No cego estava o eixo de toda a investigação. Tentando mostrar-se afável, com a sua voz grave, bordou uma história. - Bem. Encontrámos num cais o cadáver de um velho. Entre a papelada, há referências a uma filha que tem um olho de vidro. Era só para confirmar. Se for ela, tenho de lhe comunicar a triste notícia e pedir-lhe a identificação oficial do morto. - E, nesses papéis - perguntou o cego cheio de gozo -, não havia nada a dizer o nome da família e a morada da filhinha?... - Não... quase nada se lia por causa da água.. estavam todos molhados... Uma avozinha friorenta, com o netinho pela mão, de fugida, apressadinha, pede um balão. O cego dá-lhe uma carteirinha, recebe o dinheiro, passa-o lentamente pelos dedos e guarda-o num bolso do militar sobretudo. - "Que se divirtam muito!" - desejou. - "Ajudem o ceguinho!" Muito bem, sargento. Você tem imaginação, mas só deve convencer a sua mãezinha, na hipótese de a ter conhecido. O'Hara estava gelado e farto. O seu temperamento foi superior a todos os considerandos e interesses. - Ouve, meu cego da merda. Ou me dizes onde ela mora ou vais dentro e tão cedo não venderás a ponta de um corno, percebes? Meto-te numa instituição cá dos meus conhecimentos e nunca mais verás a luz do dia! - Claro, sargento, sou cego! E ficaram os dois mudos, um ruminando vinganças, o outro imaginando como se defenderia do ataque seguinte, - Falas ou não falas? - Oiça, sargento. Digo-lhe o nome e você procura, e acabou-se! Ou, então, vamos para a porrada. Um jornalista meu amigo havia de gostar. Título de primeira página: "Sargento da Polícia bate desalmadamente num pobre cego!". Ein? Que bela manchete! "Canetas!" - És um bom espertalhaço! - Como poderia ser de outra maneira? Já me teriam roubado a mercadoria, o dinheiro e até a bengala, que este mundo só tem ladrões e polícias. Os cegos tentam viver no meio. "Canetas! Canetas!" - Deixa-te de filosofias baratas. Diz lá o nome. - E vai-se embora? Promete que se vai embora? A sua presença prejudica o negócio e a minha reputação. - Vou. - Vai mesmo?! A sério? - Porra, vou! - Então chama-se Maureen. Três blocos para sul. Adeus sargento. - Eu não sou sargento, cego! - E quem lhe disse que eu era cego? Almirante de recolha de corpos? O'Hara atirou a bolsinha dos "balões" para a banca do cego e seguiu em direcção à 96. O cego apanhou facilmente a bolsinha, conferiu se estava intacta e atacou imediatamente a promoção de Inverno. - "Canetas! Dadas! Absolutamente dadas! Ajudem o ceguinho que nem braile sabe!" Isto tudo, continuando a olhar para O'Hara, que se afastava manquejando. ---------------- (de Ed. B. Silverman) |
Monday, March 20, 2006
31. O Caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
11. O dr. Kildaire saía do quarto de Bronco Vale, quando O'Hara, vindo do elevador, o abordou mancando. - Como está ele, doutor? - Está vivo. - Isso sei eu. E quando poderá sair? - Amanhã, depois, às onze e um quarto, ao pôr-do-sol, de madrugada, se quiser! - respondeu o médico em tom brusco. - Estou a chateá-lo? O célebre médico respirou fundo e desabafou com violência: - Está! A merda do seriado da televisão deu cabo da minha vida! - E, imitando a voz que os adultos fazem parvamente quando falam com crianças, disse: - O dr. Kildaire é uma simparia; o dr. Kildaire tem um coração de ouro; o dr. Kildaire é altamente responsável; o dr. Kildaire estuda cada caso com uma profundidade catedrática; o dr. Kildaire é profundamente humano. Que porra! - Calma aí, homem! - Está aí dentro uma gaja, no quarto do seu amigo que, quando me viu, revirou os olhos e ficou em transe. Pegou-me nas mãos e disse: "Salve-o, dr. Kildaire! Só o senhor o pode salvar!" Porra! Apenas um tiro na grande rabada. - Pare lá com isso, homem! Vá a um psiquiatra ou faça uma cura de repouso, mas não me lixe a cabeça! O dr. Kildaire acendeu um cigarro (também é proibido fumar nos corredores do St, James Hospital). Mais calmo, perguntou: - Afinal, quem é você e o que quer? - Chamo-me Eugene O'Hara e sou Chefe da Brigada de Homicídios de Nova Iorque. - e mostrou a identificação. - E que mais? - Preciso do Bronco cá fora, rapidamente. - Quer assistir a uma cena da tal série de televisão? Quer? Dê atenção. Compõe a bata e o cabelo, faz um suave sorriso amistoso, untuoso, tipo cardeal aos domingos e, em voz baixa, culta, controlada, diz: - Quanto ao paciente seu amigo, examinei o orifício de entrada e o de saída. Como sabe, meu caro amigo, o de saída é maior do que o de entrada. Examinei a força dos músculos das pernas, a fim de verificar se o nervo ciático tinha ficado lesionado, se tinha a sensibilidade intacta. E tinha. Não foi lesada qualquer estrutura nervosa importante. Fiz a excisão da ferida, exploração e lavagem do trajecto. Coloquei um dreno seco, de borracha, tipo Penrose. Está com uma cobertura antibiótica, analgésicos e repouso absoluto. Nada de cuidado. - Tá bem, doutor, tá bem! Só falta agora uma enfermeira loira e muito boa a pedir-lhe, como se falasse com Deus, para ir com urgência ao segundo piso. O dr. Kildaire recompõe-se, tornando-se naturalmente chato. - Amanhã já pode sair. Agora é só descanso. Perdeu muito pouco sangue; só andou dez metros até aqui. Levar um tiro à porta de um hospital é altamente conveniente. Sai muito mais barato. - Vou lá dentro falar com ele. - Falar com ele? Tente. Até aqui se ouve o gajo a ressonar. Não ouve? Além de zarolho, maneta e perneta também é surdo? - E se o doutor fosse à merda?! Kildaire pareceu não ter ouvido. Seguiu pelo corredor abanando a cabeça. O'Hara também abanou a cabeça, como quem diz "caso perdido" e entrou. A sra. Marlowe, sentada na única cadeira existente no quarto, fechou o livro e olhou para o visitante. Depois, suavemente, aveludadamente, alcatifadamente, disse: - Amanhã já poderemos falar com ele, Chefe O'Hara. - Então conhece-me? - Conheço e por isso lhe baixei a cabeça num cumprimento outro dia. O senhor era o chefe do meu marido, Edgar Marlowe. - É a viúva! Ele explodiu, não foi? Não se aproveitou mesmo nada! Uma porcaria tudo aquilo. Trampa por todos os lados... como há pessoas que cheiram tão mal por dentro! Linda Marlowe deslizou da cadeira e caiu no chão. Estava desmaiada. Bronco Vale continuava a ressonar placidamente. Mancando, O'Hara saiu à procura de uma enfermeira, virou no corredor à esquerda e deu de caras, de novo, com o dr. Kildaire que falava, calmo, com uma jovem e esbelta senhora, a quem pegava bondosamente nas mãos. - Sra. Morris. Tudo sairá bem. A operação é muito simples. Venha ao meu gabinete para lhe explicar tudo em presença das radiografias. - Siiim, senhoooor doutoooooor. --------------------------- (Da novela de Ed B. Silverman) |
Friday, March 17, 2006
30. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
10.
O'Hara entrou no bar também duas horas antes de este abrir.
Tal como na visita de Bronco, Joe, no seu posto, limpava copos
como habitualmente àquela hora. Gostava de os ter a brilhar.
- Olá, Joe.
- Hum...
- Vale falou contigo há três dias.
- Outro chui!!!
- Talvez um inválido da guerra, em férias, mas duro como aço
americano.
Joe, olhando para a mão metálica e para a pála, tentou um
sorriso irónico. Quase o conseguiu.
O'Hara meteu a mão natural no bolso, retirou uma folha de
papel dobrada em quatro e, com a ajuda dos ganchos da outra,
desdobrou-a. Tudo sem pressas e parecendo não ter visto o
ameaço do sorriso irónico.
- Vejamos. "Martinez, Juan Angel Martinez, mais conhecido
por Joe. De 35 anos de idade. Filho de porto-riquenhos.
Instrução primária completa. Impedido de ir para o Vietnam
devido a lesões pulmonares. Preso cinco vezes por pertencer
a bandos de delinquentes. Assaltos a postos de gasolina. Duas
vezes absolvido por falta de provas ou deficiente identificação
testemunhal. Preso de novo dois anos depois por vender droga
num bar em Manhattan. Condenado a três anos de prisão que
cumpriu. Pensa-se que continua metido no negócio, mas mais
discretamente."
Joe já tinha partido um copo. As mãos tremiam-lhe.
Preparava-se para partir outro. O'Hara continuou, em voz
baixa e calma:
- Aquando do último julgamento, o juiz Stephan Corbert avisou
que, da proxima vez, poderias ser recambiado para Porto Rico.
Podes, não podes?
- Não fiz nada! Estou limpo!
- Não acredito mas, por agora, está bem. Canta.
- Nunca mais me meti com eles! Não quero mais sarinhos!
- Canta, Joe.
- Oiça, senhor. Não quero perder o meu emprego. Não quero
voltar a ser preso. Organizei a minha vida.
- Mas não disseste tudo ao Vale.
- Não, isso é verdade... Não gostei da cara dele... Desculpe...
ele é seu colega, mas não gostei dele.
- Ele não é meu colega, Joe.
Joe parou com os tremeliques nas mãos. Compreendia agora
que O'Hara era mesmo duro como o aço (americano). Por este
tipo de chuis tinha verdadeiro respeito ou, talvez, medo. Bebeu
um copo de água sem o deixar cair nem verter.
- Bem... ela não voltou cá... mas vi-a.
- Ela quem?
- Não sei o nome.
- Conta o resto.
- Sim, senhor. Na 72ª, antes do Parque.
- Já é qualquer coisa.
- Bem... é destas coisas que a gente observa... não parecia
ir com destino, percebe?
- Não.
- Passeava. Parecia que vivia ali. Quando moramos num sítio,
andamos de maneira diferente. Observava as montras sem
pressas e até conversou com o cego das revistas, nas calmas.
Reparei nisto tudo por causa das perguntas do outro chui.
Para ocupar as mãos, começou a limpar outro copo. Mais
tarde apanharia os cacos do chão.
- Viste de onde partiu o tiro?
- Não, senhor. Daqui não se vê nada lá para fora.
- A quem deste o número do telefone do Bronco Vale, do gajo
que cá esteve?
- A ninguém, juro!
- Não o deste a ninguém...
- Não. Para quê?
O único olho são de O'Hara parecia uma teleobjectiva
apontada a Joe.
- Ouve, meu filho. Mais cedo ou mais tarde virei a saber e,
se o bichanaste a alguém, não serás deportado, não terás
saúde para a viagem.
- Não o dei a ninguém e, se quisesse, não poderia. Assim que
o gajo saiu, rasguei o seu cartão. Farto de merdas estou eu.
- Não te esqueças de mim, Joe. E nunca te rias quando vires
um gajo sem um olho, sem uma mão e sem uma perna. Um
dia fodes-te!
Mancando, O'Hara saiu. Juan Martinez prendeu uma mão na
outra. Tinham voltado a tremer.
- Mas que merda! Que merda!
E tossiu. Os pulmões não estavam tão bons como ele pensava.
Esta coisa de assaltar postos de conveniência aos 17 anos, faz
muito mal à saúde. Por causa da humidade da noite. Toda a
gente o sabe.
-------------------
(da novela de Ed B. Silverman)
O'Hara entrou no bar também duas horas antes de este abrir.
Tal como na visita de Bronco, Joe, no seu posto, limpava copos
como habitualmente àquela hora. Gostava de os ter a brilhar.
- Olá, Joe.
- Hum...
- Vale falou contigo há três dias.
- Outro chui!!!
- Talvez um inválido da guerra, em férias, mas duro como aço
americano.
Joe, olhando para a mão metálica e para a pála, tentou um
sorriso irónico. Quase o conseguiu.
O'Hara meteu a mão natural no bolso, retirou uma folha de
papel dobrada em quatro e, com a ajuda dos ganchos da outra,
desdobrou-a. Tudo sem pressas e parecendo não ter visto o
ameaço do sorriso irónico.
- Vejamos. "Martinez, Juan Angel Martinez, mais conhecido
por Joe. De 35 anos de idade. Filho de porto-riquenhos.
Instrução primária completa. Impedido de ir para o Vietnam
devido a lesões pulmonares. Preso cinco vezes por pertencer
a bandos de delinquentes. Assaltos a postos de gasolina. Duas
vezes absolvido por falta de provas ou deficiente identificação
testemunhal. Preso de novo dois anos depois por vender droga
num bar em Manhattan. Condenado a três anos de prisão que
cumpriu. Pensa-se que continua metido no negócio, mas mais
discretamente."
Joe já tinha partido um copo. As mãos tremiam-lhe.
Preparava-se para partir outro. O'Hara continuou, em voz
baixa e calma:
- Aquando do último julgamento, o juiz Stephan Corbert avisou
que, da proxima vez, poderias ser recambiado para Porto Rico.
Podes, não podes?
- Não fiz nada! Estou limpo!
- Não acredito mas, por agora, está bem. Canta.
- Nunca mais me meti com eles! Não quero mais sarinhos!
- Canta, Joe.
- Oiça, senhor. Não quero perder o meu emprego. Não quero
voltar a ser preso. Organizei a minha vida.
- Mas não disseste tudo ao Vale.
- Não, isso é verdade... Não gostei da cara dele... Desculpe...
ele é seu colega, mas não gostei dele.
- Ele não é meu colega, Joe.
Joe parou com os tremeliques nas mãos. Compreendia agora
que O'Hara era mesmo duro como o aço (americano). Por este
tipo de chuis tinha verdadeiro respeito ou, talvez, medo. Bebeu
um copo de água sem o deixar cair nem verter.
- Bem... ela não voltou cá... mas vi-a.
- Ela quem?
- Não sei o nome.
- Conta o resto.
- Sim, senhor. Na 72ª, antes do Parque.
- Já é qualquer coisa.
- Bem... é destas coisas que a gente observa... não parecia
ir com destino, percebe?
- Não.
- Passeava. Parecia que vivia ali. Quando moramos num sítio,
andamos de maneira diferente. Observava as montras sem
pressas e até conversou com o cego das revistas, nas calmas.
Reparei nisto tudo por causa das perguntas do outro chui.
Para ocupar as mãos, começou a limpar outro copo. Mais
tarde apanharia os cacos do chão.
- Viste de onde partiu o tiro?
- Não, senhor. Daqui não se vê nada lá para fora.
- A quem deste o número do telefone do Bronco Vale, do gajo
que cá esteve?
- A ninguém, juro!
- Não o deste a ninguém...
- Não. Para quê?
O único olho são de O'Hara parecia uma teleobjectiva
apontada a Joe.
- Ouve, meu filho. Mais cedo ou mais tarde virei a saber e,
se o bichanaste a alguém, não serás deportado, não terás
saúde para a viagem.
- Não o dei a ninguém e, se quisesse, não poderia. Assim que
o gajo saiu, rasguei o seu cartão. Farto de merdas estou eu.
- Não te esqueças de mim, Joe. E nunca te rias quando vires
um gajo sem um olho, sem uma mão e sem uma perna. Um
dia fodes-te!
Mancando, O'Hara saiu. Juan Martinez prendeu uma mão na
outra. Tinham voltado a tremer.
- Mas que merda! Que merda!
E tossiu. Os pulmões não estavam tão bons como ele pensava.
Esta coisa de assaltar postos de conveniência aos 17 anos, faz
muito mal à saúde. Por causa da humidade da noite. Toda a
gente o sabe.
-------------------
(da novela de Ed B. Silverman)
Thursday, March 16, 2006
29. O caso da mulher com um olho de vidro (cont.)
9.
A porta principal do St. James Hospital. Apenas duas
escadas e uma rampa a separavam de uma rua larga
que rasga um pequeno jardim com dois acessos - um
de entrada e outro de saída de veículos.
Bronco Vale aguarda que Linda Marlowe traga o carro
do parque de estacionamento, enquanto o dr. Kildaire,
de mãos nos bolsos da impecável bata branca, fita um
horizonte distante, próprio de íntimos e profundos
pensamentos, não se apercebendo de que a recepcionista
o comia com os olhos, já que não o poderia fazer com
outras partes físicas.
Vale não estava particularmente atento, mas um
reflexo de vidraça, num dos prédios em frente, deu-lhe
o alerta. Atirou-se ao chão e rolou para junto de uma
ambulância vazia estacionada um pouco mais à frente.
A bala bateu no passeio, fez um ricochete no Sol bemol
da terceira oitava e quebrou um dos amplos vidros
laterais do hospital.
Já várias pessoas se aproximam, estupidamente
curiosas (roxas de curiosidade), quando segundo tiro
partiu, de outro ponto do quarteirão, acertando na anca
direita de Bronco. Este, apesar das dores intensas,
coitado, consegue apontar a arma para a janela de onde
partira o primeiro tiro, do outro lado da rua. Mas seria
inútil. Estava deserta.
Os roxos de curiosidade ficaram brancos-cal de medo e
desapareceram, alguns soltando gazes.
O detective, com incalculável esforço, conseguiu içar-se
para a cabina da ambulância e, assim, proteger-se do
segundo atirador.
Silêncio sólido, pesado, daqueles mesmo que se ouvem.
À porta do hospital, alguns maqueiros e um perneta de
muletas, espreitavam a cena. Deliciados, os sacanas. Mas
nisto o perneta vai até ao meio da rua e, tansformando
uma das muletas em metralhadora, aponta para o prédio
e faz com a boca rá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
A recepcionista aproveitava-se da confusão para se
agarrar nervosa ao braço do dr. Kildaire, encostando-
-lhe o mamilo esquerdo, como se de um berbequim se
tratasse. O parvo nem dava por isso.
Como um aviso final, terceira bala furou o chapéu de
Bronco, caído no passeio, a dois passos do perneta. Um
discurso concludente.
Linda Marlowe chegou então, conduzindo o seu carro
azul-marinho chamado Ford. Estava boa, boa, boa.
Com o Kildaire já recomposto, Linda e o médico
correram para a ambulância onde, sentado de lado,
Bronco Vale gemia e sangrava. Tiraram-no, com a
ajuda dos dois maqueiros e o detective voltou a entrar
no hospital.
A recepcionista, que já tinha arquivado o processo do
detective e agora, com um mamilo mais pequeno que o
outro, abriu a gaveta e retirou, de novo, aquele modesto
sobrescrito que dizia apenas Bronco C. Vale.
Preencheu novo impresso e olhou para o corredor, com
ar infeliz. Ao longe, as costas do dr. Kildaire marcavam
a dignidade e a competência, a caminho do elevador.
Linda Marlowe segurava na mão do detective que
seguia na maca. Com dores.
Jane, a recepcionista, deu uma palmada no balcão de
recepção com tanta força que parecia um tiro. Depois
sentou-se. O que havia ela de fazer? Entretanto, o
perneta caíra desamparado no meio da rua.
------------------
(de Ed B. Silverman)
A porta principal do St. James Hospital. Apenas duas
escadas e uma rampa a separavam de uma rua larga
que rasga um pequeno jardim com dois acessos - um
de entrada e outro de saída de veículos.
Bronco Vale aguarda que Linda Marlowe traga o carro
do parque de estacionamento, enquanto o dr. Kildaire,
de mãos nos bolsos da impecável bata branca, fita um
horizonte distante, próprio de íntimos e profundos
pensamentos, não se apercebendo de que a recepcionista
o comia com os olhos, já que não o poderia fazer com
outras partes físicas.
Vale não estava particularmente atento, mas um
reflexo de vidraça, num dos prédios em frente, deu-lhe
o alerta. Atirou-se ao chão e rolou para junto de uma
ambulância vazia estacionada um pouco mais à frente.
A bala bateu no passeio, fez um ricochete no Sol bemol
da terceira oitava e quebrou um dos amplos vidros
laterais do hospital.
Já várias pessoas se aproximam, estupidamente
curiosas (roxas de curiosidade), quando segundo tiro
partiu, de outro ponto do quarteirão, acertando na anca
direita de Bronco. Este, apesar das dores intensas,
coitado, consegue apontar a arma para a janela de onde
partira o primeiro tiro, do outro lado da rua. Mas seria
inútil. Estava deserta.
Os roxos de curiosidade ficaram brancos-cal de medo e
desapareceram, alguns soltando gazes.
O detective, com incalculável esforço, conseguiu içar-se
para a cabina da ambulância e, assim, proteger-se do
segundo atirador.
Silêncio sólido, pesado, daqueles mesmo que se ouvem.
À porta do hospital, alguns maqueiros e um perneta de
muletas, espreitavam a cena. Deliciados, os sacanas. Mas
nisto o perneta vai até ao meio da rua e, tansformando
uma das muletas em metralhadora, aponta para o prédio
e faz com a boca rá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
A recepcionista aproveitava-se da confusão para se
agarrar nervosa ao braço do dr. Kildaire, encostando-
-lhe o mamilo esquerdo, como se de um berbequim se
tratasse. O parvo nem dava por isso.
Como um aviso final, terceira bala furou o chapéu de
Bronco, caído no passeio, a dois passos do perneta. Um
discurso concludente.
Linda Marlowe chegou então, conduzindo o seu carro
azul-marinho chamado Ford. Estava boa, boa, boa.
Com o Kildaire já recomposto, Linda e o médico
correram para a ambulância onde, sentado de lado,
Bronco Vale gemia e sangrava. Tiraram-no, com a
ajuda dos dois maqueiros e o detective voltou a entrar
no hospital.
A recepcionista, que já tinha arquivado o processo do
detective e agora, com um mamilo mais pequeno que o
outro, abriu a gaveta e retirou, de novo, aquele modesto
sobrescrito que dizia apenas Bronco C. Vale.
Preencheu novo impresso e olhou para o corredor, com
ar infeliz. Ao longe, as costas do dr. Kildaire marcavam
a dignidade e a competência, a caminho do elevador.
Linda Marlowe segurava na mão do detective que
seguia na maca. Com dores.
Jane, a recepcionista, deu uma palmada no balcão de
recepção com tanta força que parecia um tiro. Depois
sentou-se. O que havia ela de fazer? Entretanto, o
perneta caíra desamparado no meio da rua.
------------------
(de Ed B. Silverman)
Wednesday, March 15, 2006
28. O caso da mulher com um olho de vidro (Cont.)
8.
Maureen acendeu segundo cigarro. Não estava nervosa,
apenas apreensiva. As mulheres, às vezes, estão também
apreensivas.
Bone, esse sim, estava nervoso e demonstrava-o,
passeando de um lado para o outro e do outro para o um
da pequena sala.
O televisor estava desligado, mas Maureen sabia que
faltavam 15 minutos para que o canal 27 ("Crime, só
crime"), transmitisse uma nova série policial.
- Não deverias ter cá vindo - afirmou Maureen em tom
coloquial.
- Pois não... mas alguns telefonemas podem estar sob
escuta. É coisa que ainda não consegui saber.
- Estão a ir mais longe na investigação?
- Penso que sim... o problema é começar a estar fora da
jogada, não a podendo controlar. Pode ser impressão
minha, mas parece que me afastaram das investigações.
E ficaram a olhar. Umas vezes um para o outro.
Ela: Teria sido ele a encomendar a gargantilha?
Este bastardo nunca prestou para nada. Está
cheio de medo. Teria sido ele? Deveria ter feito
o Hamlet falar. Só faltam dez minutos para o
filme.
- Queres beber alguma coisa?
- Em tua casa?! Nem penses!
Maureen sorriu apenas com a boca, mostrando uma bela
dentadura branca. Autêntica.
- Não tenhas medo, Bone. Não mato os amigos.
- Não estarei cá para confirmar...
- Como queiras, mas senta-te. Vou buscar uma bebida
para mim.
Ela: Já não me serve para nada. Não está dentro
das investigações e está quase a borrar-se de
medo. Um merdas! Por acaso nem fui eu que o
meti nisto... foi o loudo do Boyle Mariote. Estará
com medo de mim e, por isso, encomendou a
gargantilha? Olhem pr'aquela cara...
- Quantos dias faltam, Maureen?
- Bem sabes que dez.
- É muito. Talvez não tenha sido boa ideia a explosão
daqueles vinte agentes e não creio que devamos agora
limpar vinte barmen.
Ele: Ela não pode saber que fui eu... o Hamlet não
iria falar... Esta gaja está nas calmas... E se ela
sabe? Não posso tomar nada cá em casa... pelo
sim pelo sim. Dói-me a barriga... Isto vai acabar
mal... pois... podes beber à vontade... a droga
está contigo... que bom traseiro... continua boa
como milho... Mas se isto der certo, que bela
vida! Milionário... América do Sul... gajas
melhores que ela... e menos esquivas, raios a
partam! E não está nervosa, a filha da puta! Nas
calmas... e eu com uma sede...
- Já te disse para te sentares. Ainda me fazes um buraco
na alcatifa.
- Às vezes este plano assusta-me... é demasiado grande
para mim.
- Desde o início que conheces o esquema. Aceitaste-o e...
também não és novo nisto. Boyle tem tudo pronto e, como
sabes, testado. A morte dos agentes foi necessária e foi,
também, o primeiro passo para o ultimato. Dentro de dez
dias o ultimato seguirá com o primeiro pedido: quinhentos
biliões de dólares, colocados numa conta especial no
estrangeiro. Sabes isto tudo. É só para ouvires falar em
milhões?! Biliões?!
- Maureen... às vezes olho para ti e penso como ficaste
diferente... não eras assim... Não odiavas a humanidade.
Ela ficou parada com o copo na mão. Em segundos
visualizou o filme da sua vida e dos seus desencontros.
Sempre andou desencontrada. Sempre se colocou na fila
que não andava, ou que andava mais devagar que as
outras. Mas sempre deu tudo - o que tinha e o que,
muitas vezes, não tinha. E, com uma certa ironia,
respondeu:
- Fui traída, meu filho. Passa adiante, se tens mais coisas
para dizer. Se não tens, rua.
- Bem... não te irrites.
Ficaram-se mirando sem qualquer amizade.
- Já estão prontos os passaportes?
E ela com enfado:
- Já. Na altura própria serão distribuidos. Boyle tem tudo
pronto. Depois, por cada dia que demorem a pôr o
dinheiro no estrangeiro, explodirá uma pessoa, de
preferência escolhida, seleccionada.
- Vai morrer ainda muita gente.
- Não queres ficar milionário? Alguma vez te importou o
resto? Morrer pessoas... - a ironia de Maureen era
cortante -, tu nunca amaste ninguém na vida. Eu já. Tu
odeias tudo e todos mas, no fundo... Olha, no fundo
somos puros: não temos nem consciência nem moral.
Mas não nasci assim; tu sim. (Lá se foi o filme.) Quantas
pessoas matas por dia com essa porra da droga? Quantos
miúdos drogas por dia? Quantos?
- Bem... eu...
- És um refinado filho da puta! Eu nasci pura e com
esperança na vida. E tu? "Ai vai morrer muita gente".
Que queres dizer? Que te importas? Nasceste deformado
e hás-de morrer deformado.
Bone explodiu, em linguagem, claro.
- Vai à merda mais o discurso! Vamos é localizar o Bronco
Vale. O espertinho está a andar por aí.
- E então, menino Bone?! Ein? Que estás à espera?
Esmaga-o. Ou queres que também seja eu a ir à sua
procura?
Bone levantou-se e voltou a passear de um lado para o
outro. Sentia que Maureen tinha razão e sentia ainda que
deveria dar-lhe motivos de mais confiança nele.
Olharam-se com rancor. Bone gostaria de ter força para
dominar aquela mulher, mas sempre fora um fraco, um
pau-mandado, um merdas. Reconhecia-o, o que já era uma
virtude.
- Onde guardaste o produto?
Maureen olhou-o de viés.
- Não sabes?
- Sei o que me disse o Boyle.
- E o que te disse o Boyle?
Bone pensou que ela estava a gozá-lo, mas não estava.
- Bem... que te tinha dado as garrafas, foi o que ele disse e
que tu saberias muito bem o que fazer delas.
- Pronto. Está respondido, não está?
Bone passeou pela sala, enquanto Maureen bebia e o
observava sem interesse. Maureen resolveu acrescentar
que as tinha todas seladas num local altamente secreto
e que utilizara apenas um pequeno frasco que o Boyle lhe
dera... para as emergências e que, mesmo esse, estava no
cofre de um banco. A quase totalidade, claro...
- Olha: sempre tomo uma bebida, Maureen. Bem... tens
razão. Ando demasiadamente nervoso. Esta história de
ter sido retirado da investigação...
Maureen foi à cozinha e trouxe uma bebida para Bone,
voltando a encher o seu copo.
- Faço-te companhia.
Beberricaram. Outra vez.
Maureen estava agora descontraída.
- Como calculas, Bone, também não é muito agradável
passar aqui os dias e as semanas à espera... o Boyle está
cada vez mais louco... (Vai-te embora!)
- Tens falado com ele?
(Onde é que este gajo quer chegar?)
- Falei ontem. Ou, melhor: foi ele que ligou para mim.
- O que é que ele queria?
Maureen não gostava mesmo de Bone. Era um merdas
que ela detestava. Resolveu então cultivar esse ódio.
- Saber se tu, Bone, te estavas a portar bem. Diz que tu
és instável e que temos de te trazer debaixo de olho.
- Instável?! Mas que porra é essa? Eu? Instável?! Não
tenho dado provas de...
- Entende-te com ele e não me chateies...
Bone bebeu o resto da bebida.
- Bem... até breve, Maureen.
- Adeus, Bone.
Bone saiu de cabeça baixa.
Logo que a porta se fechou, Maureen correu para o
televisor. Ligou-o no canal 27. O filme já ia a meio.
Maureen sorriu e acabou a sua bebida. Em seguida,
tirou cuidadosamente o olho de vidro e meteu-o dentro
de uma taça com um líquido esbranquiçado.
------------
(do livro de Ed B. Silverman)
Maureen acendeu segundo cigarro. Não estava nervosa,
apenas apreensiva. As mulheres, às vezes, estão também
apreensivas.
Bone, esse sim, estava nervoso e demonstrava-o,
passeando de um lado para o outro e do outro para o um
da pequena sala.
O televisor estava desligado, mas Maureen sabia que
faltavam 15 minutos para que o canal 27 ("Crime, só
crime"), transmitisse uma nova série policial.
- Não deverias ter cá vindo - afirmou Maureen em tom
coloquial.
- Pois não... mas alguns telefonemas podem estar sob
escuta. É coisa que ainda não consegui saber.
- Estão a ir mais longe na investigação?
- Penso que sim... o problema é começar a estar fora da
jogada, não a podendo controlar. Pode ser impressão
minha, mas parece que me afastaram das investigações.
E ficaram a olhar. Umas vezes um para o outro.
Ela: Teria sido ele a encomendar a gargantilha?
Este bastardo nunca prestou para nada. Está
cheio de medo. Teria sido ele? Deveria ter feito
o Hamlet falar. Só faltam dez minutos para o
filme.
- Queres beber alguma coisa?
- Em tua casa?! Nem penses!
Maureen sorriu apenas com a boca, mostrando uma bela
dentadura branca. Autêntica.
- Não tenhas medo, Bone. Não mato os amigos.
- Não estarei cá para confirmar...
- Como queiras, mas senta-te. Vou buscar uma bebida
para mim.
Ela: Já não me serve para nada. Não está dentro
das investigações e está quase a borrar-se de
medo. Um merdas! Por acaso nem fui eu que o
meti nisto... foi o loudo do Boyle Mariote. Estará
com medo de mim e, por isso, encomendou a
gargantilha? Olhem pr'aquela cara...
- Quantos dias faltam, Maureen?
- Bem sabes que dez.
- É muito. Talvez não tenha sido boa ideia a explosão
daqueles vinte agentes e não creio que devamos agora
limpar vinte barmen.
Ele: Ela não pode saber que fui eu... o Hamlet não
iria falar... Esta gaja está nas calmas... E se ela
sabe? Não posso tomar nada cá em casa... pelo
sim pelo sim. Dói-me a barriga... Isto vai acabar
mal... pois... podes beber à vontade... a droga
está contigo... que bom traseiro... continua boa
como milho... Mas se isto der certo, que bela
vida! Milionário... América do Sul... gajas
melhores que ela... e menos esquivas, raios a
partam! E não está nervosa, a filha da puta! Nas
calmas... e eu com uma sede...
- Já te disse para te sentares. Ainda me fazes um buraco
na alcatifa.
- Às vezes este plano assusta-me... é demasiado grande
para mim.
- Desde o início que conheces o esquema. Aceitaste-o e...
também não és novo nisto. Boyle tem tudo pronto e, como
sabes, testado. A morte dos agentes foi necessária e foi,
também, o primeiro passo para o ultimato. Dentro de dez
dias o ultimato seguirá com o primeiro pedido: quinhentos
biliões de dólares, colocados numa conta especial no
estrangeiro. Sabes isto tudo. É só para ouvires falar em
milhões?! Biliões?!
- Maureen... às vezes olho para ti e penso como ficaste
diferente... não eras assim... Não odiavas a humanidade.
Ela ficou parada com o copo na mão. Em segundos
visualizou o filme da sua vida e dos seus desencontros.
Sempre andou desencontrada. Sempre se colocou na fila
que não andava, ou que andava mais devagar que as
outras. Mas sempre deu tudo - o que tinha e o que,
muitas vezes, não tinha. E, com uma certa ironia,
respondeu:
- Fui traída, meu filho. Passa adiante, se tens mais coisas
para dizer. Se não tens, rua.
- Bem... não te irrites.
Ficaram-se mirando sem qualquer amizade.
- Já estão prontos os passaportes?
E ela com enfado:
- Já. Na altura própria serão distribuidos. Boyle tem tudo
pronto. Depois, por cada dia que demorem a pôr o
dinheiro no estrangeiro, explodirá uma pessoa, de
preferência escolhida, seleccionada.
- Vai morrer ainda muita gente.
- Não queres ficar milionário? Alguma vez te importou o
resto? Morrer pessoas... - a ironia de Maureen era
cortante -, tu nunca amaste ninguém na vida. Eu já. Tu
odeias tudo e todos mas, no fundo... Olha, no fundo
somos puros: não temos nem consciência nem moral.
Mas não nasci assim; tu sim. (Lá se foi o filme.) Quantas
pessoas matas por dia com essa porra da droga? Quantos
miúdos drogas por dia? Quantos?
- Bem... eu...
- És um refinado filho da puta! Eu nasci pura e com
esperança na vida. E tu? "Ai vai morrer muita gente".
Que queres dizer? Que te importas? Nasceste deformado
e hás-de morrer deformado.
Bone explodiu, em linguagem, claro.
- Vai à merda mais o discurso! Vamos é localizar o Bronco
Vale. O espertinho está a andar por aí.
- E então, menino Bone?! Ein? Que estás à espera?
Esmaga-o. Ou queres que também seja eu a ir à sua
procura?
Bone levantou-se e voltou a passear de um lado para o
outro. Sentia que Maureen tinha razão e sentia ainda que
deveria dar-lhe motivos de mais confiança nele.
Olharam-se com rancor. Bone gostaria de ter força para
dominar aquela mulher, mas sempre fora um fraco, um
pau-mandado, um merdas. Reconhecia-o, o que já era uma
virtude.
- Onde guardaste o produto?
Maureen olhou-o de viés.
- Não sabes?
- Sei o que me disse o Boyle.
- E o que te disse o Boyle?
Bone pensou que ela estava a gozá-lo, mas não estava.
- Bem... que te tinha dado as garrafas, foi o que ele disse e
que tu saberias muito bem o que fazer delas.
- Pronto. Está respondido, não está?
Bone passeou pela sala, enquanto Maureen bebia e o
observava sem interesse. Maureen resolveu acrescentar
que as tinha todas seladas num local altamente secreto
e que utilizara apenas um pequeno frasco que o Boyle lhe
dera... para as emergências e que, mesmo esse, estava no
cofre de um banco. A quase totalidade, claro...
- Olha: sempre tomo uma bebida, Maureen. Bem... tens
razão. Ando demasiadamente nervoso. Esta história de
ter sido retirado da investigação...
Maureen foi à cozinha e trouxe uma bebida para Bone,
voltando a encher o seu copo.
- Faço-te companhia.
Beberricaram. Outra vez.
Maureen estava agora descontraída.
- Como calculas, Bone, também não é muito agradável
passar aqui os dias e as semanas à espera... o Boyle está
cada vez mais louco... (Vai-te embora!)
- Tens falado com ele?
(Onde é que este gajo quer chegar?)
- Falei ontem. Ou, melhor: foi ele que ligou para mim.
- O que é que ele queria?
Maureen não gostava mesmo de Bone. Era um merdas
que ela detestava. Resolveu então cultivar esse ódio.
- Saber se tu, Bone, te estavas a portar bem. Diz que tu
és instável e que temos de te trazer debaixo de olho.
- Instável?! Mas que porra é essa? Eu? Instável?! Não
tenho dado provas de...
- Entende-te com ele e não me chateies...
Bone bebeu o resto da bebida.
- Bem... até breve, Maureen.
- Adeus, Bone.
Bone saiu de cabeça baixa.
Logo que a porta se fechou, Maureen correu para o
televisor. Ligou-o no canal 27. O filme já ia a meio.
Maureen sorriu e acabou a sua bebida. Em seguida,
tirou cuidadosamente o olho de vidro e meteu-o dentro
de uma taça com um líquido esbranquiçado.
------------
(do livro de Ed B. Silverman)
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